STF, a mídia e o veredicto do povo 
 
 
Por João Quartim de Moraes, no sítio Vermelho:
 
Estamos incontestavelmente diante de um progresso da civilização 
brasileira: habituada a chegar ao poder, uma vez derrotada nas urnas, 
pela rude técnica do golpe de Estado, a direita aposta agora no STF. Dos
 tanques na rua às nunca inocentes casuísticas e filigranas elaboradas 
pelas eminências togadas que compõem o pretório excelso, o avanço dos 
métodos é indiscutível; pode-se compará-lo ao que ocorreu com a extração
 de dentes graças à invenção da anestesia.
A extrema direita cavernosa, a tucanagem e outros 
neoliberais vibraram com o empolgante espetáculo que lhes proporcionou 
Joaquim Barbosa, conduzindo com zelo de Grande Inquisidor a ação penal 
470, dita do “mensalão”. Intelectuais de programa e pensadores de 
aluguel, a serviço dos barões da imprensa, tratam de herói o novo 
presidente do STF, graças ao qual veteranos da resistência clandestina à
 ditadura, fundadores do PT, que tinham sido, durante os anos de chumbo,
 presos, torturados, deportados, foram condenados a penas muito pesadas,
 no caso de alguns, nomeadamente de José Dirceu, sem qualquer prova 
documental.
Dir-se-á que um passado de militância corajosa e de alto risco não 
confere imunidade para atos delituosos. Sem dúvida. Mesmo porque dizem 
que a lei é igual para todos. Mas será mesmo? Vinte anos atrás, alegando
 falta de provas e outras chicanas, o pretório excelso absolveu Fernando
 Collor de um delito pelo qual ele fora condenado pelo Congresso. Para 
avaliar o tamanho da gentileza dos sabichões togados, basta lembrar que 
PC Farias, parceiro e cúmplice do presidente decaído, teria desviado 
para a quadrilha da “Casa da Dinda” mais de um bilhão de dólares, 
conforme apurou a polícia federal, que indiciou cerca de quatrocentas 
firmas suspeitas e mais de cem grandes capitalistas. Não obstante, os 
aparelhos judiciário e mediático enterraram um inquérito de cerca de 
100.000 páginas.  
 
Tudo prescreveu, ninguém pagou. Salvo PC Farias, 
eliminado num motel em circunstâncias convenientemente misteriosas.
A tucanagem também se beneficiou muito da benevolência judiciária. A 
compra de votos no Congresso em 1997 para alterar a Constituição de modo
 a tornar possível a reeleição de FHC, a escandalosa privatização da 
Telebrás e outros assaltos ao dinheiro público, documentadamente 
denunciados pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. em "A Privataria Tucana" 
(livro ocultado pela censura dos barões da imprensa) não mobilizaram a 
indignação seletiva do pretório excelso. Fábio Comparato lembrou a 
propósito dessa ética versátil, que “alguns Ministros do Supremo 
Tribunal Federal, ao votarem no processo do ‘mensalão’, declararam que 
os crimes aí denunciados eram “gravíssimos”. 
Ora, os mesmos Ministros que assim se pronunciaram, chamados a votar no 
processo da lei de anistia, não consideraram como dotados da mesma 
gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão,
 durante o regime empresarial-militar: a saber, a sistemática tortura de
 presos políticos, muitas vezes até à morte, ou a execução sumária de 
opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres 
[...]. O severíssimo relator do “mensalão”, alegando doença, não 
compareceu às duas sessões de julgamento.”
O nervo da questão está na eufemisticamente chamada “mudança de 
entendimento” do STF. A mesma “falta de provas” que garantiu impunidade a
 colloridos e tucanos (embora as provas documentais fossem muitas) não 
foi obstáculo para a condenação de José Dirceu. 
 
No afã de encontrar 
algum fundamento jurídico para sua sanha contra o ex-chefe da Casa Civil
 de Lula, Barbosa buscou apoio na doutrina dita do “domínio dos fatos”, 
que considera autor de um crime não só quem o executa, mas também quem 
tinha poder para tomar decisões numa hierarquia funcional formal ou 
informal. 
Entretanto, o jurista alemão Claus Roxin, formulador dessa doutrina, 
desmentiu o uso que Barbosa e colegas fizeram de suas ideias. “Quem 
ocupa posição de comando tem de ter, de fato, emitido a ordem. E isso 
deve ser provado”, disse Roxin, reprovando a decisão do STF. Julgamento 
ainda mais severo foi o que povo exerceu por meio do sufrágio universal:
 a despeito da persistente campanha de intoxicação mental empreendida 
pelo punhado de “famiglie” que manda nos grandes meios de comunicação, a
 grande maioria do corpo eleitoral não se deixou impressionar. Votou 
como votaria se o STF não existisse.