quinta-feira, 5 de maio de 2011

Contraponto 5302 - "Demasiadamente desumano"

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05/05/2011
Demasiadamente desumano

Mair Pena Neto*

A morte de Osama Bin Laden foi um circo dos horrores com todos os elementos que atestam a precariedade de nossa condição humana. Um homem, por pior que ele seja, foi executado, seu corpo jogado ao mar e as pessoas sairam às ruas para comemorar em júbilo, como se estivessem no coliseu vibrando com cristãos jogados às feras. Desumano, demasiadamente desumano.

Compreende-se toda a revolta dos americanos e não americanos que perderam pessoas queridas no atentado de 11 de setembro de 2001. Nada justifica tamanha atrocidade, mas a reação não pode ser proporcional em termos de irracionalidade e nem ser considerada natural, como se fossemos todos selvagens. A humanidade evoluiu ao longo dos séculos. Conquistamos direitos e desenvolvemos valores que devem ser respeitados. Execução sumária é crime e não pode ser estimulada. Seja a de Bin Laden ou do chefe do tráfico de um morro carioca.

A operação teve requintes de sadismo. Obama pode acompanhá-la ao vivo por meio de imagens geradas por câmaras montadas nos capacetes dos fuzileiros navais que invadiram a fortaleza do líder da Al Qaeda, no Paquistão, e depois disse que a justiça foi feita. Que tipo de justiça? A vingança, o olho por olho dente por dente?

Bin Laden estava desarmado e segundo o porta-voz da Casa Branca, Jay Carney, teria resistido. Como? Será que pulou no pescoço de um marine armado até os dentes? Se estava desarmado, por que não foi detido e levado a interrogatório e julgamento. Será que a captura do principal líder da maior organização terrorista não teria sido útil para obter mais informações e desmantelá-la definitivamente? Ou Bin Laden se tornaria um prisioneiro incômodo, cujas revelações poderiam constranger e comprometer muita gente na inteligência e no governo americanos?

A versão inicial foi a de que Bin Laden teria sido morto numa troca de tiros. O que provocou a mudança na história? O porta-voz da Casa Branca disse que foi a necessidade de dar detalhes imediatos de uma complexa operação militar. Não convenceu. Se ela foi acompanhada ao vivo por Obama e seus auxiliares, como foi transmitida para o público de maneira diferente da que foi testemunhada?

A raiva das ruas não teria se transferido para os bem preparados marines sem ordens superiores. A execução que se revela a cada dia teria destroçado o líder da Al Qaeda. Essa é uma das razões porque sua imagem não pode ser exibida. Bin Laden estaria dilacerado e desfigurado pela execução por armas de alto impacto. Pelos relatos divulgados até agora, uma das mulheres de Bin Laden ficou ferida. Onde ela se encontra? Seria importante saber sua versão do ataque.

A falta de uma imagem de Osama morto alimenta teorias conspiratórias. O mundo tem que acreditar no que o governo dos Estados Unidos afirma. Que o líder terrorista foi morto nessa operação, que exames de DNA comprovam que era ele mesmo e que seu corpo foi jogado ao mar. Quando Che Guevara foi executado na selva da Bolívia, seu corpo foi fotografado e suas mãos cortadas para identificação posterior que não deixasse dúvidas de que o guerrilheiro que assombrava os EUA tinha sido morto. O requinte macabro não impediu a criação do mito e a inspiração que exerceu sobre gerações.

Seria pouco provável que os EUA blefassem com a morte de Bin Laden, já que o governo poderia ser desmoralizado por uma futura aparição do líder da Al Qaeda em algum vídeo enviado a Al Jazeera, fora a derrota de Obama na próxima eleição. Mas os EUA estão condenados a provar o fato, o que deve causar constrangimento e novas cenas de barbárie. O porta-voz da Casa Branca afirma que a imagem macabra pode ferir sensibilidades, mas o diretor da CIA, Leon Panetta, acha que em algum momento elas terão que vir a público.

Discussão repugnante, que assim como a morte de Bin Laden não representa o fim do terrorismo. As transformações democráticas em curso no Oriente Médio prometiam reduzir o espaço para a Al Qaeda e similares. A fúria irracional pode renascer agora.

*Mair Pena Neto. Jornalista carioca. Trabalhou em O Globo, Jornal do Brasil, Agência Estado e Agência Reuters. No JB foi editor de política e repórter especial de economia.

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