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16/10/2012
A saudável crítica ao STF
Miguel do Rosário
Vindo para o escritório, muito cedo, passei por uma dessas kombis que vendem hamburguer e bebidas. Havia um punhado de homens consumindo cerveja. Um moralista barato pensaria estar diante de vagabundos, e os condenaria em silêncio, estendendo a condenação ao país inteiro, como sói acontecer a nossos reacionários sem pedigree. Um observador mais atento talvez descobrisse que são trabalhadores, que passaram o final de semana inteiro, em turnos sucessivos, ralando em algumas das centenas de casas de show e bares da Lapa; e que agora, com dinheiro no bolso, descontraem-se e trocam ideias. Cada um sabe o que fazer para conservar a saúde mental: uns se entopem de rivotril, outros bebem cerveja, alguns cancelam a assinatura do Globo.
Estamos sempre julgando os outros segundo nossos padrões, e por isso mesmo sempre cometendo injustiças. Um empregado de escritório, que há trinta anos acorda cedo para ir ao trabalho, de segunda a sexta, terá dificuldade para entender aquele personagem bebendo cerveja às seis horas da manhã numa kombi da Mem de Sá. No entanto, ambos são trabalhadores dignos, pagadores de impostos e cidadãos que contribuem para o nosso desenvolvimento econômico e social. Seria ridículo estabelecer uma hierarquia moral entre os dois.
A Constituição proíbe um magistrado, por exemplo, de “receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas e privadas” e “dedicar-se à atividade político-partidária”.
Já um político vive uma situação diametralmente oposta. O capítulo dedicado aos partidos políticos, na Constituição Federal, é bastante sucinto. Deixa bem claro, porém, em seu artigo primeiro, que eles têm autonomia para adotar “os critérios de escolha e regime de suas coligações eleitorais, sem vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal”. Podem receber recursos financeiros de pessoas físicas, entidades privadas, e tem direito, por lei, a um fundo partidário bancado pelo erário público.
Realidades completamente opostas, que encetam, naturalmente, formas diferentes de pensar.
Outro dia, li um artigo da Teresa Cruvinel, esta sim uma decana em democracia, porque vivenciou durante décadas, como repórter política, a realidade dos partidos, no qual ela explica aos ministros do STF, que não existe esse negócio de “entressafra” eleitoral. Os partidos caçam recursos e batalham eleitoralmente o tempo inteiro. E existe, sim, solidariedade financeira entre eles. Ayres Britto e cia, data venia, demonstraram uma grandiosa ignorância acerca da realidade dos partidos nacionais.
Aqui entra o preconceito contra quem é diferente. Pior, percebe-se uma visão rancorosa contra a democracia. Não se pode amar verdadeiramente a democracia, no entanto, sem ter uma visão benevolente sobre suas entranhas. Nem é o caso de brandir uma supostamente salvadora “reforma política”. Nenhuma reforma política irá “limpar” a democracia de sua característica fundamental: os candidatos e partidos concorrem entre si. Se há concorrência, impõem-se as leis da concorrência, que nenhum “financiamento público exclusivo” irá resolver. Ganha a eleição quem persuadir o eleitor, e para isso concorrerá a qualidade da divulgação. Seja com dinheiro público ou privado, essa qualidade deve ser paga, porque qualquer coisa que envolva mão-de-obra e trabalho, envolve dinheiro.
Sou favorável ao financiamento público de campanha, mas sem proibir o privado. Porque é justamente a proibição que leva ao crime. O pecado nasce da lei, já ensinava São Paulo.
Grande ingenuidade, por sua vez, e os fascismos nasceram, em boa parte, de intenções ingênuas, querer separar totalmente dinheiro e campanha política. Anunciar que “não ganho um real, faço campanha por ideal” é uma verdade muito relativa. Trabalho não existe sem dinheiro, ou sem algum retorno, nem que seja intelectual, ou na forma de benefícios futuros (como defender um candidato que apóia expansão da universidade e, anos depois, ser beneficiado por esta expansão). Seria até engraçado se depois de criminalizar a política e a democracia, houvesse uma campanha (estimulada por nossos mais brutais capitalistas) para criminalizar os benefícios da política. Até um escravo trabalha em troca de alguma coisa, só que na forma de alimentação e moradia. No caso, ele não é livre, e essa é a diferença. Se um jovem trabalha numa campanha sem ganhar nada, é porque seu pai está bancando; ou ele mesmo o faz, com vistas a um ganho futuro, para ele ou para o segmento social do qual faz parte.
Enfim, vivemos um clima curioso de perseguição à democracia, em todos os sentidos. Curioso porque ocorrem ao mesmo tempo em que os valores democráticos são exaltados como se fossem princípios religiosos. Só que democracia não é religião. Tampouco é uma filosofia. Na religião, persegue-se um ideal de fé. Na filosofia, um ideal de verdade. Na política, persegue-se o poder. O valor da democracia, a sua virtude, o que a torna supostamente superior a outros regimes, reside na fonte do poder, conforme consta no Artigo primeiro da Carta Magna:
Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Não se pode criminalizar o poder. Ele é o insumo básico da política. É pelo poder que se luta. Operários, camponeses, industriais, professores, bancários, empreiteiros, todos querem um naco. A pluralidade política de um país como o Brasil estará sempre assegurada em função dos interesses diversos. Os ministros do STF não podem criminalizar o que é a essência da política: a luta para alcançar o poder e, quando alcançado, mantê-lo. Alguns filósofos, como Schopenhauer, Nietzsche e Espinoza, consideravam inclusive que esta luta é a essência da própria vida, o que eu acho que faz muito sentido.
Toda coisa almeja – na medida em que isso está em seu poder – permanecer em si mesma, diz Espinoza.
Alguns companheiros instruídos e inteligentes têm zombado das fortes críticas que emergem na blogosfera acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Penal 470. Deveriam, contudo, agradecer, porque estas críticas fortalecem a nossa democracia. Cito novamente o artigo de Teresa Cruvinel, no qual ela menciona o célebre penalista Nelson Hungria: “o Supremo tem apenas o privilégio de errar por último”. Frase bonita, simples e filosófica. Tão diferente do que li hoje na coluna de Paulo Guedes, no Globo, que termina dizendo que os réus petistas foram condenados porque “ofenderam aos deuses do Supremo, e por eles serão punidos”.
Isso é uma brincadeira de péssimo gosto! Não se pode atribuir qualidades divinas, nem como figura de linguagem, a uma entidade republicana.
O fato de haver críticas à atuação do STF é sinal de vitalidade democrática. Deve ser estimulado, e na verdade o que vemos na grande imprensa é um enorme desequilíbrio, porque as opiniões críticas ficam num longínquo segundo plano, enquanto os elogios se tornaram ridiculamente laudatórios. Joaquim Barbosa agora é desenhado por Chico Caruso com uma coroa na cabeça, e o Gois já divulgou o site em que se defende a sua candidatura para a presidência da república em 2014!
A democracia é um regime que comporta alguns riscos e, para ser autêntica e saudável, precisa de cidadãos vigilantes. Toda instituição republicana tem de ser exposta ao contraditório. Neste sentido, e já escrevi bastante sobre isso, acho que os governos petistas acabaram se beneficiando da crítica ferrenha da grande mídia. No entanto, eles se beneficiaram porque a grande mídia, por sua vez, também sofreu críticas, por parte da blogosfera. A mesma coisa vale para o STF. Ele precisa ser criticado, para seu próprio bem. Porque é lamentável que haja desconfiança, em setores importantes da sociedade, de que seus membros se curvaram à pressão política de grupos midiáticos altamente partidarizados.
Não se trata de defender a impunidade. Aí reside, a meu ver, a injustiça daqueles que, achando-se muito descolados, desqualificam os internautas que criticam o STF. É claro que não! Prendam os corruptos, inclusive do PT. Sobretudo do PT! O que tem gerado acerbos protestos não é isso, e sim o estranho discurso dos eminentes juízes, com proselitismos absurdos e delirantes sobre a prática política, dos quais abusam para preencher as lacunas processuais. Ayres Britto, presidente do STF, chegou ao cúmulo de condenar o presidencialismo de coalizão! Me desculpem, mas isso é positivamente ridículo. A Constituição é muito clara: é vetado aos juízes dedicarem-se à atividade político-partidária. E mesmo se não o fossem, criticar levianamente, ou pior, criminalizar, um dos modelos mais difundidos e mais adequados a democracias complexas e de grande porte como o Brasil, é mais do que ignorância. Com todo respeito, excelentíssimos, é cretinice!
O pior é que esses discursos têm unido oposição e sectários num só bloco. Há muita gente que ainda pensa política de maneira maniqueísta, e daí voltamos para o debate propriamente político, no qual o STF, com muita infelicidade, voltou a interferir. Só o meu partido e a minha ideologia são puros, corretos e bons. Esse é o tipo de sectarismo que o STF tem defendido, de maneira inconstitucional. É totalmente contraditório elogiar os feitos do governo Lula e omitir que eles só foram possíveis justamente porque foram realizadas alianças políticas. O PT deixou de ser um partido sectário e fez alianças com outras legendas. A nossa Constituição preza o pluralismo político como um dos seus princípios fundamentais. O que isso quer dizer? Que devemos entender a diversidade ideológica como um fator saudável da nossa democracia. Tanto o cidadão como o partido devem perseguir um conjunto de princípios, mas sem discriminar os que pensam diferente.
Durkhein causou polêmica ao afirmar que o crime é necessário à sociedade, porque, não existissem os grandes crimes, como assassinato e roubo, qualquer tapinha inocente no braço de um colega seria considerado crime capital. Da mesma forma, se todo mundo fosse de esquerda, viveríamos um ambiente radicalizado, onde, sei lá, emprestar 10 reais pra um amigo seria um crime. A esquerda precisa da direita para existir, e vice-versa, porque todo o ser apenas existe refletido em seu contrário, conforme ensina Hegel. Não existisse direita, não haveria esquerda.
Os contrapontos ideológicos integram não apenas a democracia, mas a própria psique humana. Há uma dialética entre liberdade e igualdade, assim como há entre direita e esquerda. Uma ideologia não se aprimora destruindo a outra, mas incorporando-a e formando uma síntese. A utopia da modernidade não é uma sociedade esquerdista, e sim uma sociedade onde os princípios básicos do humanismo, solidariedade, democracia e liberdade, estarão enraizados de maneira definitiva e profunda num regime político de alcance universal.
A crítica ao STF é essencial, todavia, porque acabamos de testemunhar um golpe em Honduras protagonizado justamente pela suprema corte. No Paraguai, o judiciário chancelou, numa decisão instantânea, um golpe parlamentar. A América Latina tem o costume de experimentar “ondas” políticas. Se a onda é o neoliberalismo, então todos os países, da Patagônia ao Rio Grande, elegem partidos neoliberais. Se a moda é eleger presidentes de esquerda, de novo todo mundo caminha junto. Houve um tempo em que os militares derrubaram presidentes em toda a região. É mais que natural que, após dois casos em que as cortes supremas chancelaram deposições relâmpagos de presidentes eleitos, haja um pouco de paranóia entre os democratas brasileiros!
Leia também:
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