Eduardo Guimarães

Dando sequência à série de entrevistas que o Blog da Cidadania está
fazendo com pensadores de alta relevância sobre o momento político
preocupante por que passa o país, brindo os leitores desta página com a
visão do eminente jurista
Dalmo de Abreu Dallari, de quem a caudalosa obra é obrigatoriamente estudada em qualquer curso de Direito.
O professor Dallari se encontra em Paris, neste momento, mas não se
furtou a analisar para o Blog temas como o protesto anti Dilma de 15 de
março, os atentados a bomba ao PT, a proposta de impeachment de Dilma
Rousseff, o comportamento do STF, o comportamento da grande imprensa, o
comportamento do Ministério Público e muito mais.
Quero agradecer ao professor Dallari pela gentileza de, apesar de
estar em Paris, ter respondido com tanta minúcia às questões que esta
página formulou. Este blogueiro e seus leitores sentem-se honrados com a
deferência de tão importante pensador brasileiro.
Confira, abaixo, a entrevista
Blog da Cidadania – Desde a campanha eleitoral do
ano passado a imprensa alternativa e a tradicional citaram vários casos
de pessoas que foram agredidas na rua por usarem roupas da cor vermelha,
mesmo quando essas roupas (em geral, camisetas) não tinham relação com
partidos políticos, sindicatos ou movimentos sociais. Como o senhor
enxerga esse fenômeno? Quem protege essas pessoas agredidas? Como
garantir o direito de manifestação política, e que punições podem ser
aplicadas a quem agride física ou verbalmente quem faz – ou parece fazer
– manifestação política silenciosa como é o uso de uma cor que lembre
um grupo político ou uma ideologia?
Dalmo Dallari – A agressão praticada contra uma
pessoa que participava de manifestação pacífica é crime contra a pessoa,
previsto no Código Penal, no artigo 129. O fato de ter sido praticada a
agressão durante manifestação politica não é agravante nem atenuante.
Assim, também, a alegação de que o agredido usava camisa de uma cor
determinada, que o agressor interpretou como expressão de uma opção
política, não tem qualquer relevância. O que cabe é identificar o
agressor e apresentar queixa na Delegacia de Policia da região, ou,
então, apresentar queixa dando elementos que permitam à Polícia
identificá-lo. Em circunstâncias como essa o agredido deve,
imediatamente, pedir providências ao policial mais próximo, o que
facilita a identificação do criminoso.
Blog da Cidadania – No último dia 15 de março, uma
maré humana tomou a avenida Paulista e outras capitais brasileiras
pedindo impeachment da presidente Dilma Rousseff. Tanto desta vez quanto
nas anteriores que essas manifestações ocorreram, parcela expressiva
dos manifestantes pregou golpe militar para atingir esse fim. As
esperáveis manifestações de repúdio à ruptura institucional não
apareceram na grande imprensa e a pregação explícita de violação da
vontade das urnas não gerou nenhuma consequência para os pregadores.
Existe algum mecanismo para punir esse tipo de pregação? A existência
dessa pregação ameaça a democracia?
Dalmo Dallari – Antes de tudo, é importante
assinalar que, confrontada com a votação que,
recentemente, deu o
segundo mandato à Presidente Dilma, votação superior a 54 milhões de
votos, a « maré humana » da passeata de 15 de março não passou de uma
« ondinha » muito leve, espetaculosa mas insignificante como expressão
da vontade politica do povo brasileiro. Alguns cartazes e algumas faixas
exibidos na ocasião deixam dúvida, apenas, quanto ao que realmente
expressavam : ignorância, burrice ou vocação totalitária muito primária.
Sobre os efeitos de um golpe militar a experiência recente do Brasil é
muito expressiva. O que se viu e o que se sabe é que o golpe prejudicou
seriamente a normalidade constitucional e foi instrumento de violências e
de muitas praticas de corrupção. Quanto à pregação de golpe militar,
que configura proposta de subversão da ordem constitucional, é crime
previsto na Lei de Segurança Nacional, que, embora feita durante a
ditadura, não foi revogada e o próprio Supremo Tribunal Federal já a
considerou recepcionada pela nova ordem jurídica, naquilo em que não
contraria as normas constitucionais. O que deve ser feito é o
enquadramento dos autores dessa tolice antidemocrática, para
processamento pela prática do crime. Nesse caso a identificação dos
autores não deve ser dificil, pois muita gente filmou e fotografou a
prática criminosa.
Blog da Cidadania – No dia 15 de março, a sede do PT
na cidade de Jundiaí (SP) sofreu um atentado a bomba. Na mesma cidade,
dois bonecos de pano, representando a presidente Dilma Rousseff e o
ex-presidente Lula, foram “enforcados” em um viaduto. No Dia 26 de
março, novo atentado a bomba contra o partido, agora em São Paulo, na
sede do diretório paulistano. Nesse cenário, como o senhor vê a saúde da
democracia brasileira e que nível de ameaça ela pode estar sofrendo?
Dalmo Dallari – A prática de atentados contra
instalações e símbolos políticos é crime, previsto na Lei de Segurança
Nacional, que continua em vigor naquilo em que não contraria disposição
da Constituição vigente. Essas práticas violentas são reveladoras de um
lamentável primarismo político e de falta de preparo para a convivência
civilizada, mas estão muito longe de representarem ameaça à ordem
constitucional.
Blog da Cidadania – Muito tem-se falado sobre
impeachment da presidente Dilma Rousseff. À luz das denúncias contra seu
governo e do que se sabe sobre a conduta dela, o senhor considera que
há elementos para se falar em derrubá-la? Se esse processo for levado à
frente sob a argumentação de que o julgamento via Congresso é “político”
e, portanto, “dispensa provas”, o senhor considera que esse caminho é
constitucional? Se não for, que instrumentos existem para barrar uma
iniciativa que, nessa situação, configurar-se-ia como golpista?
Dalmo Dallari – A proposta de impeachment de Dilma
não passou de reação primária de derrotados, inconformados com a
derrota. Como já tem sido amplamente demonstrado, nos termos expressos e
claros da Constituição, em seu artigo 89, o impeachment só pode ser
cogitado se o Presidente da República praticar ato que atente contra a
Constituição. Deve existir um ato do Presidente enquanto Presidente.
Assim, alegar corrupção na Petrobrás para justificar o impeachment é
pura tolice e o que se pode afirmar, sem sombra de dúvida, que a
conversa do impeachment não passou de fantasia política de
inconformados, sem a mínima consistência jurídica.
Blog da Cidadania – O que o senhor considera que
ocorreria com a democracia brasileira caso um governo recém-ungido pelas
urnas fosse derrubado por fórmulas como a do “julgamento político que
dispensa provas”? Poder-se-ia dizer que o Brasil estaria vivendo uma
ruptura institucional e estaria sob um regime ilegítimo? O senhor
considera que esse “julgamento político” seria um golpe de Estado? O
senhor acha possível que esse “julgamento político” ocorra?
Dalmo Dallari – A experiência brasileira é muito
eloquente: um golpe de Estado, destituindo um governo legitimamente
eleito, por vias democráticas, seria uma agressão a todo o povo
brasileiro, prejudicando direitos fundamentais de todo o povo e de cada
cidadão. Mas a verdade sobre o que foi a ditadura está cada vez mais
clara e por isso é pouquíssimo provável que ocorra uma tentativa de
golpe. Entre outras coisas, o golpe de 1964 foi o resultado de uma
aliança de militares fascistas com empresários gananciosos e primários,
mas a prática demonstrou que também os mais ricos perdem com a ditadura.
Blog da Cidadania – O Supremo Tribunal Federal deu
tratamentos opostos aos ditos mensalões tucano e petista. No caso
envolvendo o PSDB, houve desmembramento da ação, com o STF enviando para
a primeira instância o caso do ex-senador Eduardo Azeredo, apesar de
ele ter renunciado com o fim de não ser julgado naquela instância; no
caso do PT, José Dirceu, entre outros, foi julgado pelo STF mesmo sem
foro privilegiado. Esse fato é compatível com o regime democrático?
Dalmo Dallari – Foi lamentável a decisão equivocada,
claramente equivocada, do Supremo Tribunal Federal, de julgar acusados
que não gozavam do foro privilegiado. Ele julgou sem ter competência
jurídica para tanto. Esse equívoco, afrontando disposições
constitucionais expressas, foi contrário ao regime democrático e foi um
mau momento do Supremo Tribunal Federal, que tem por função precípua a
guarda da Constituição. Continuo confiando no Supremo Tribunal Federal e
esperando que ele dê exemplo do respeito à Constituição e acredito que
hoje não se repetiria o equívoco.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento da imprensa brasileira no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – É lamentável reconhecer isso, mas a
grande imprensa brasileira, em relação a vários temas, deixa perceber
que tem orientação influenciada por um direcionamento político. Assim, é
mais do que evidente que existe verdadeira obsessão contra o Lula, o
petismo e qualquer pessoa ou atividade que possa parecer ligada a isso,
por simples coincidência de algumas posições. Mas é positivo o fato de
que a imprensa, embora tendo dado mais espaço do que o razoável à
fantasia do impeachment, não prega nem apoia um golpe de Estado e dá
certa contribuição, podendo dar muito mais, ao aperfeiçoamento do regime
democrático.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento do Ministério Público no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – O Ministério Público foi
extraordinariamente valorizado pela Constituição de 1988 e,
essencialmente, tem estado à altura de suas responsabilidades,
desempenhando com independência e firmeza suas atribuições, que muitas
vezes envolvem o enfrentamento com personalidades que ocupam posições de
prestigio na vida pública. Algumas vezes tem havido excesso de rigor e
desbordamento das limitações constitucionais, havendo algumas situações
excepcionais de omissão na proteção de direitos que lhe cumpre tutelar,
mas o Ministério Público tem dado contribuição muito relevante para a
busca de efetividade dos direitos consagrados na Constituição.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento da Polícia Federal no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – A extrema diversidade de situações
em que teve que agir ou resguardar direitos torna difícil uma avaliação
genérica da Polícia Federal. Mas, numa síntese, ela tem cumprido bem seu
papel constitucional e é merecedora do apoio e da confiança do povo
brasileiro.
Blog da Cidadania – Como o senhor avalia o comportamento do STF no âmbito da crise política?
Dalmo Dallari – Numa avaliação do conjunto de seu
desempenho, o Supremo Tribunal Federal tem atuado com independência,
firmeza e competência, sendo hoje um dos verdadeiros pilares de
sustentação da ordem jurídica democrática consagrada na Constituição de
1988. Ele pode e deve ser aperfeiçoado, para que, entre outras coisas,
possa desempenhar com eficiência e rapidez suas importantes atribuições.
Para tanto, venho sustentando a conveniência de que o Supremo Tribunal
seja convertido em Tribunal Constitucional e se concentre em seu papel
extremamente relevante de guarda da Constituição, deixando aos demais
Tribunais superiores as decisões que hoje sobrecarregam a Corte Suprema.
Blog da Cidadania – Professor Dallari, a partir
dessas respostas gostaria de aprofundar algumas delas em uma segunda
entrevista, se possível presencial. Quando seria possível?
Dalmo Dallari – Eduardo, na próxima semana já estarei de volta a São Paulo e poderemos manter contato.
Blog da Cidadania – Professor Dallari, agradeço imensamente a atenção. Ligo para o senhor na semana assim que estiver no Brasil.
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