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29/11/2016
Ouça, Fidel tem algo a nos dizer
Num tempo em que a utopia perdeu seu horizonte de transição,
ele ergueu uma ponte inconclusa que fala aos nossos desafios e
hesitações.
Carta Maior - 26/11/2016 12:15
O percurso de Fidel Castro foi tão intenso que por muito tempo será como se continuasse por aqui.
Sua
relevância vincula-se à da ilha na qual lutou como um leão para provar
que certas ideias pertenciam ao mundo através da ação.
Deixar uma obra inconclusa, porém não derrotada, em disputa, foi sua maior vitória.
Num
tempo em que a utopia perdeu o seu horizonte de transição, Fidel ergueu
pilares de uma ponte inconclusa, mas não derrotada, que dialoga com
nossos desafios e hesitações.
Cuba
ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma estatura geopolítica dezenas
de vezes superior ao seu tamanho demográfico e territorial.
Ali,
mesmo ameaçada por escombros, pulsa a ideia de um mundo novo e
fraterno. Enquanto essa pulsação respirar em nós, Fidel será relevante.
Para
começar, digamos aos céticos que não é comum que um país tenha seu nome
imediatamente associado, em qualquer lugar do mundo, a sinônimo de
audácia, soberania e justiça social.
Tampouco é trivial uma nação
ser confundida com a legenda da bravura e da resistência heroica ao
imperialismo predador e desumano por mais de meio século.
Todas
essas exceções viram regra quando as letras se juntam para formar a
palavra Cuba, imediatamente associada a outra, ‘Fidel’.
A
pequena ilha do Caribe, na verdade um arquipélago de 4.195 restingas,
ilhotas e ilhas, soma um território de apenas 110 861 km² (pouco maior
que o de Santa Catarina).
Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de pessoas.
Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples ocorrência ensolarada no cardume das pequenas nações.
Por
uma razão que ela transformou em referências desde 1959: ali se
experimenta uma outra organização da sociedade humana, alternativa à
fundada na exploração, no consumismo e no individualismo.
Esse
reduto desassombrado acaba de agregar um novo epíteto ao seu trunfo:
Cuba é considerada a experiência social e econômica mais próxima daquilo
que se almeja como sociedade ambientalmente sustentável no século XXI.
É
assim que a lendária ilha do Caribe se agiganta no concerto das nações:
sendo a ponta de lança da humanidade em muitas frentes.
As
quatro letras de seu nome condensam um dicionário de experiências, de
esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no
caminho da construção de uma sociedade mais justa e convergente.
Depois
do desmoronamento do mundo comunista, tornou-se a mais longeva e
atribulada experiência no gênero trazida do século XX para o XXI.
Isso
faz dela essa ponte de múltiplas conexões que singularizam e magnificam
a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu
horizonte de transição.
Ao mesmo tempo em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.
Os
picos de desigualdade no capitalismo, o ocaso ambiental da humanidade, e
tudo o que isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em
nosso tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.
Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente radiografar o cenário mais favorável da opulência produzida pelo capital.
Os
perdedores do sistema compõem um contingente grande o suficiente, e
desesperado a um ponto que se desconhecia, que um semi-fascista acaba de
ser eleito por eles com a promessa de acudir uma aflição sem resposta
nos mecanismos convencionais do mercado.
Nunca a desigualdade foi tão aguda. Jamais a probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão presente.
Não é Fidel Castro quem o diz.
A advertência foi feita em 2015 pela contida presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central americano, Janet Yellen.
Os
abismos sociais no núcleo central do capitalismo atingiram o ponto em
que, segundo a discreta Yellen, os americanos deveriam se perguntar se
isso é compatível com os valores dos Estados Unidos.
Em uma conferência em Boston, a presidente do Fed informou que os níveis de desigualdade nos EUA são os mais altos em um século.
“A
desigualdade de renda e riqueza estão nos maiores patamares dos últimos
cem anos, muito acima da média desse período e provavelmente maior que
os níveis de boa parte da história americana antes disso”, afirmou.
Cuba não poderia ser tomada como um contraponto histórico a esse espiral.
A ilha jamais concluiu a transição para onde decidiu caminhar em 1960.
Tangido pela truculência imperial norte-americana, Fidel Castro proclamou, então, a natureza socialista e marxista do governo.
Um
ano antes havia derrubado a ditadura de Fulgêncio Batista e iniciara
uma reforma agrária que intensificou a guerra da elite local e
estrangeira contra o novo regime.
Cuba nunca se propôs a ser um modelo.
Desde o início foi uma aposta.
De olhos voltados para o relógio da história.
Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?
Nem
os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos pioneiros que desceram de
Sierra Maestra para tomar o poder no réveillon de 1959 imaginavam
desmentir esse interdito estrutural.
A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.
Um
punhado de golpes de Estado sangrentos e preventivos que tiraram a vida
de milhares de pessoas e seviciaram um contingente ainda maior em toda a
América Latina, fizeram dos anos 60 e 70 um cinturão profilático em
torno da grande esperança cubana.
Todas as artérias que poderiam
misturar seu frágil metabolismo ao corpo vigoroso de uma integração
regional progressista latino-americana foram cirurgicamente seccionadas.
Lembra algo em curso no continente nesse momento?
Não é uma miragem. É uma tranca da história que nunca se recolheu de fato.
A
ação conjunta das elites, da mídia e dos exércitos, das federações
empresariais, dos judiciários carcomidos de ideologia conservadora, dos
partidos conservadores orientados e auxiliados pela mão longa do
Departamento de Estado e da CIA, foi e é implacável.
Cuba é o limite da resistência a isso. Razão pela qual parece agonizar permanentemente. Mas, ao mesmo tempo, resistir.
Durante meio século o cerco asfixiante –que teve no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada-- não cedeu.
A
obsessão conservadora contra a aposta cubana, símbolo de múltiplas
transgressões em relação aos valores e interesses das plutocracias
regionais, ficou comprovada mais uma vez nas eleições presidenciais
brasileiras de 2014 .
Em um dos debates mais virulentos da
campanha, o candidato conservador Aécio Neves, que derrotado passou a
operar o golpe ora no poder, trouxe a ilha para o palanque.
O
tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de
cometer duas heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia
caribenha.
A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para a
construção de um porto estratégico de um milhão de containers na costa
cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida.
A
obra, capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante do
comércio entre as Américas, foi denunciada por Aécio como evidência de
cumplicidade com o castrismo.
Mariel se somou a uma ampla
parceria na área da saúde, igualmente bombardeada. Através dela, mais de
11 mil médicos cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a
50 milhões de pessoas.
O
programa Mais Médicos, que levou doutores cubanos a lugares onde
profissionais brasileiros não querem trabalhar, é um dos alvos do
desmonte social em curso no Brasil assaltado pelo golpe de Estado de 31
de agosto que uniu a mídia à escória, ao dinheiro grosso e ao judiciário
dos juízes de exceção.
O reatamento das relações diplomáticas
entre EUA e Cuba – em águas incertezas, após a vitória de Trump-- trincou
as patas desse discurso.
A calculadora política do
conservadorismo opera – e age – ancorada na certeza ideológica de que a
‘ilha’ é apenas uma ditadura enferrujada, falida, desmoralizada e fadada
à reconversão capitalista.
Jamais uma fonte de lições ao regime de mercado ou aos limites da democracia tolerada pelo capital.
Cambaleante,
servia à demonização de qualquer traço de planejamento econômico que
viesse afrontar a proficiente autorregulação dos mercados.
Morta,
jogaria a pá de cal nos resquícios estatistas e socializantes
teimosamente colados à tradição da esquerda latino-americana.
O
vaticínio sincronizou o tempo de vida do regime ao do metabolismo de
Fidel Castro – cujo epílogo antecipado foi tentado inúmeras vezes pela
CIA e fracassou.
Paciência. Sua morte, finalmente concretizada, é
esse o diagnóstico da grande Miami instalada na alma das elites locais,
fará a implosão do regime diante da qual os agentes e os mercenários
tropeçaram, desde a desastrosa tentativa de invasão da baía dos Porcos,
em abril de 1961.
A impressionante resistência daquilo que se
imaginava mais frágil do que tem se mostrado ingressa, a partir deste 26
de novembro de 2016, num período novo, mas dificilmente de fastígio das
previsões conservadoras.
Em edição de 2014, a revista New Left
Review arrolou dados interessantes sobre a resiliência da frágil
sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta pelo embargo
americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do bloco
comunista.
No
momento em que toda a América Latina, o Brasil à frente, depara-se com
uma encruzilhada histórica encharcada de regressão, é inescapável a
atualidade da lição de luta e desassombro embutida nessa travessia.
Por
maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa o regime – e até
por conta da explosão que esse fator unilateral acarretaria-- Cuba só
não virou pó graças a três fatores: planejamento público, à organização
social, consciência política de amplas camadas de sua gente.
Não se trata de mitificar um caso de custo humano e social elevadíssimo.
Mas
de enxergar na experiência extrema da adversidade, o alcance mitigador
da variável política, reafirmada no reatamento diplomático
norte-americano.
Nesse sentido, o retrospecto da épica luta do
povo de Cuba fala aos nossos dias e à realidade que constrange as forças
progressistas brasileiras
Ao contrário da presunção que vê no
degelo que precedeu a morte de Fidel o atalho da conversão capitalista
tantas vezes frustrada, a resistência pregressa enseja outras
esperanças.
O discernimento político e social acumulado pela
sociedade cubana figura talvez como o mais experimentado laboratório de
ponta da história para resgatar o elo perdido do debate latino-americano
sobre a transição para um modelo de desenvolvimento mais justo,
regionalmente integrado, cooperativo, democraticamente participativo e
sustentável.
Se a morte de Fidel – assim legada por ele como mais
uma aposta política-- desmentir a derrocada desses valores, dará
inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de desenferrujar a
alavanca histórica.
Não é pouco.
E
pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional,
assediados no momento pelo coro diuturno da restauração neoliberal.
A
épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte anunciada era um
poderoso trunfo conservador, expõe heroicamente a chance de se quebrar a
rigidez das circunstâncias econômicas com o peso dos interesses
históricos da maioria da população (leia editorial
http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-lodo-o-povo-e-a-rua/37327)
Isso
confere algum otimismo para brindar o final de 2016 como um horizonte
em aberto na história brasileira e latino-americana. Nenhuma experiência
em marcha reúne mais provações e adversidades que aquelas afrontadas e
vencidas por Cuba.
Alguns tópicos do retrospecto criterioso feito pela New Left Review comprovam isso
1.Ao
perder o apoio russo nos anos 90 e diante da ‘teimosa recusa’ em
embarcar em um processo de liberalização e privatização, a "hora final"
de Fidel Castro parecia, finalmente, ter chegado;
2.Cuba
enfrentou o pior choque exógeno de qualquer um dos membros do bloco
soviético, agravado pelo saldo do longo embargo comercial
norte-americano;
3.A dramática recessão iniciada em 1990
exigiria uma década para restaurar a renda real per capita anterior à
derrocada do mundo comunista;
4. Sugestivamente, porém, Cuba
saiu-se melhor em termos de resultados sociais, comparada às economias
do bloco comunistas atingidas pela mesma borrasca e ancoradas em uma
base econômica até mais sólida;
5. A taxa de mortalidade
infantil em Cuba, em 1990, foi de 11 por mil, já muito melhor do que a
média no leste europeu; em 2000 ficaria ainda abaixo disso, apenas 6 por
mil, uma melhora mais rápida do que a verificada em muitos países da
Europa Central que haviam aderido à União Europeia;
6.Hoje, a
taxa de mortalidade infantil em Cuba é de 5 por mil ; um desempenho
superior ao dos EUA, segundo a ONU, e muito acima da média
latino-americana;
7.Não só. A expectativa de vida da população
cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90 --mesmo com a ligeira
alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos anos mais
difíceis;
8.Hoje, após 55 nos de embargo e 26 de fim do apoio
russo, a ilha ostenta uma das expectativas de vida mais altas do antigo
bloco soviético e de toda a América Latina;
9.Não se subestime
as terríveis privações, o custo humano, econômico e político
cumulativos. A solitária busca de uma luz em um túnel claustrofóbico,
década após década, cobrou um preço alto do povo cubano;
10. A
superlativa dependência da economia em relação às exportações de açúcar
para a Rússia era proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva
decorrente do bloqueio norte-americano—um garrote estava ligado ao
outro, em dupla asfixia;
11. A conta só fechava graças a uma
cotação preferencial paga pelo Kremlin: uma libra de açúcar enviada à
Rússia gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco vezes a cotação
mundial do produto (US$ 0,09);
12. Até a derrocada do bloco
comunista, as importações cubanas equivaliam a 40% do PIB; delas
dependiam 50% do abastecimento alimentar da população e mais de 90% do
petróleo consumido. Era um pouco como o superciclo de commodities que ao
se esgotar desencadeou as pressões políticas e econômicas afloradas
agora na América Latina e no Brasil;
13. Mesmo com o ‘superciclo
do açúcar’, o déficit comercial cubano de US $ 3 bilhões tinha que ser
refinanciado generosamente pela União Soviética;
14. Essa rede
de segurança se rompeu abruptamente em janeiro de 1990 e sumiu por
completo há 23 anos. As receitas propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%:
de US $ 5,4 bilhões para US $ 1,2 bilhão. As fontes de financiamento
externo que mitigavam o embargo americano evaporaram;
15.Washington
viu aí a oportunidade de bater o último prego no caixão de Havana, como
se fez aqui, com o golpe. As sanções e represálias comerciais e
financeiras contra países e instituições que facilitassem o acesso de
Cuba ao crédito comercial foram acirradas. Deu certo: enquanto nos
países do leste europeu, a transição pós-Muro (1991-1996) amparou-se em
um fluxo de crédito externo da ordem de US$ 112 dólares per capita/ano,
em Cuba esse valor foi de US$ 26 dólares per capita/ano.
16. O
resultado foi um dramático cavalo de pau no comércio exterior: Cuba caiu
de uma das taxas de importações mais altas do bloco comunista (de 40%
do PIB), para uma das mais baixas (15% do PIB). Todas as tentativas de
Havana de diversificar e ampliar seu leque de exportações esbarravam no
embargo norte-americano.
Alguma surpresa
pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a
fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca
de serviços médicos e sociais?
17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem, que o manejo puro e simples do racionamento não explica a sobrevivência do regime;
18.
Quando o ferramental econômico já não respondia mais e patinava em
círculos, Havana viu-se diante de duas escolhas: render-se ao lacto
purga ortodoxo (como está sendo imposto ao Brasil) e rifar a ilha numa
apoteótica rendição capitalista, ou apostar no seu derradeiro trunfo: a
resposta coletiva liderada pelo Estado, ancorada em uma longa tradição
de planejamento, mobilizações de massa, debate popular e participação
direta da sociedade nas tarefas nacionais;
19. A opção escolhida
instalou uma rotina de prontidão na ilha, como se a população vivesse
permanentemente na antessala de uma catástrofe natural em marcha;
20.
Cortes ensaiados em serviços essenciais treinavam a sociedade para a
defesa civil em mobilizações coordenadas envolvendo fábricas,
escritórios, residências, escolas, hospitais;
21. A segurança alimentar básica foi planejada com disciplina férrea e mantida em condições de escassez extrema;
Cuba soçobrou, gemeu, contorceu-se e acumulou recuos.
O
regime recorreu às forças extremas de sua organização política e social
para enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estende
por meio século, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.
Mas a sociedade não se desmanchou, nem se rendeu.
Sem ilusões.
Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que independe de suas próprias forças para se consumar.
Como tal, enseja debate, comporta retificações e, sobretudo, cobra agendas desassombradas – e não apenas em Havana.
O reatamento das relações diplomáticas com os EUA, por exemplo, poderia ser um acelerador desse processo.
A
morte de Fidel, ao contrário da rendição inapelável prevista nos
prognósticos conservadores, pode levar a ilha a surpreender de novo, ao
não sucumbir à fatalidade tantas vezes anunciada.
Mas se mantendo como uma ponte inconclusa, a cobrar de outros povos e nações a
reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século XXI.
O ano de 2016 está sendo muito, muito duro com a esperança progressista brasileira e latino-americana.
Mas foi muito mais dura por 55 anos com a esperança cubana.
Fidel e sua gente não desistiram.
Ao contrário: ‘Não há um átomo de arrependimento em mim’, dizia.
Obrigado, companheiro Fidel, por esse legado.
Agora é a nossa vez,
‘Hasta la victoria, siempre!
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