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12/01/2014
A ameaça do Papa “vermelho” à lógica da globalização
Do Viomundo - publicado em 12 de janeiro de 2014 às 21:25
Habemus Papam subversivo
Polêmica: No dia de Natal, o Financial Times ataca Francisco por suas críticas à desigualdade do mundo
Por Claudio Bernabucci, de Roma
Surpreendentes notícias chegaram de Londres durante
as recewntes festividades: o Financial Times, no dia de Natal, resolveu
atacar abertamente o Papa Francisco pelas posições críticas que ele
tinha recentemente manifestado sobre a desigualdade no mundo e, em
geral, contra as posições mais extremas do atual sistema econômico.
O colunista John Gapper, britânico que mora em Nova
York, é um dos mais badalados comentaristas econômico-financeiros do
jornal londrino. O que mais espantou foi, porém, a escolha simbólica
feita pelos editores. O FT é considerado uma espécie de bíblia do
neoliberalismo, e a escolha do dia 24 de dezembro para polemizar
abertamente com o papa indica que está em jogo um desafio profundo. Em
outros termos, a cúpula do sistema capitalista não gosta do novo papa, e
ao mesmo tempo o teme: o posicionamento do FT é só uma das primeiras
manifestações de antagonismo em uma luta que se prefigura duríssima.
Agora, para todos aqueles, como este modesto contador
de fatos, que atribuem ao neoliberalismo as principais
responsabilidades pela atual decadência mundial, o fato de o Finacial
Times colocar o papa Francisco na barricada dos adversários representou
notícia animadora. Se o FT está contra Francisco, nós estamos
felicíssimos por ter o papa como aliado e, portanto, melhor presente de
Natal não poderíamos ter recebido de além da Mancha.
Sem meios-termos, desde as primeiras linhas, o longo
artigo do Financial Times afirma que o papa está errado na análise
econômica sobre os desequilíbrios mundiais denunciados na sua primeira
Exortação Apostólica, batizada Evangelii Gaudium (o Gáudio do Evangelho,
24 de novembro de 2013). “O Papa Francisco põe a mira no moderno
capitalismo por encorajar a “idolatria do dinheiro” e a crescente
desigualdade no mundo”, ataca Gapper.
Vem depois a citação literal de uma só frase, no
parágrafo 56 da Exortação: “Enquanto os lucros de poucos crescem
exponenencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do
bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias
que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação
financeira”. Até aqui a citação do FT, mas na verdade o papa continuava,
afirmando: “Por isso, negam o direito de controle dos Estados,
encarregados de velar pela tutela do bem comum”. “Considerando o mundo
como um todo”, prossegue o FT, “o papa está errado em ambos os pontos.
Não só a distribuição da renda ficou mais equitativa, mas também o
capitalismo pode se gabar desse resultado”.
É verdade que a distância entre ricos e pobres
aumentou no Ocidente, concede Gapper, mas em nível global nos últimos
anos a desigualdade econômica diminuiu. Citando o índice Gini de
desigualdade global, o comentarista observa que, nos países emergentes,
China e Índia em particular, onde vive a grande maioria da população, a
desigualdade diminuiu como resultado da globalização.
Na prática, observa o FT, acontece que na última
década, em termos econômicos, houve duas classes de “vencedores” no
mundo: os ricos em todos os lugares e a classe média nos países
emergentes. E houve dois perdedores: os pobres em todos os lugares e a
classe média nos países ocidentais. Através de inúmeras estatísticas e
gráficos, o comentarista tenta fortalecer suas posições, mas, na ânsia
de demonstrar o óbvio, perde de vista a complexidade do conjunto.
A Evangelii Gaudium, texto articulado que só em parte
se dedica às questões sociais do mundo contemporâneo, já foi
violentamente criticada por alguns expoentes da direita americana, que,
sem perífrases, colocaram o pontífice entre os marxistas por ter ousado
criticar o capitalismo. A bem da verdade, a opinião do Papa Francisco
parece ser compartilhada por outro perigoso esquerdista, sempre com base
nas convicções da direita americana.
Estamos falando do presidente dos Estados Unidos,
Barack Obama, que em recente discurso lamentou o fato de que os 10% mais
ricos da população americana, que antes levavam para casa um terço da
renda nacional, hoje chegam a levar mais da metade. E que os
administradores das grandes empresas, que antes ganhavam de 20 a 30
vezes mais do que o salário médio, agora ganham 273 vezes a média
americana. “A desigualdade”, tem afirmado recentemente Obama, “é a
questão que define o nosso tempo. No que resta da minha Presidência,
todos os meus esforços serão focalizados em limitá-la”.
O artigo do FT não chega às mesmas grosseiras
conclusões do Tea Party americano, mas parece ser inspirado pelas mesmas
preocupações, ou seja, a perda de hegemonia mundial do núcleo duro do
capitalismo central, provocado pelo papa que veio do “fim do mundo”. O
presidente negro incomoda, mas já foi parcialmente neutralizado e agora
representa sem dúvida uma preocupação menor.
A leitura integral e uma análise complexa da
Exortação Apostólica levam a entender em todas as suas potencialidades
as posições da nova doutrina social que Francisco quer adotar para a
Igreja e, ao mesmo tempo, levar aos homens de boa vontade. Três questões
se destacam claramente na grande riqueza de conteúdo da Evangelii
Gaudium: uma ideia de Igreja aberta e proativa, uma forte crítica ao
capitalismo neoliberal e uma perspectiva ética de inclusão social.
O papa não se expressa contra nem a favor de
determinado sistema de mercado, mas vai direto ao coração da crise
mundial que se espraia em nosso tempo. Estamos assistindo a um colapso
de todo o sistema monetário, o que é consequência da derrota do conjunto
de valores que dominou a terceira fase da Revolução Industrial, a
tecnológico-financeira. E Francisco demonstra-se muito mais firme e
claro do que seus antecessores em condenar a injustiça e a especulação:
“uma reforma financeira que levasse em conta a ética exigiria uma
vigorosa mudança de atitudes por parte dos dirigentes políticos, a quem
exorto a enfrentar este desafio com determinação e clarividência, sem
esquecer naturalmente a especificidade de cada contexto. O dinheiro deve
servir, e não governar”!”
Aparece nítido no texto papal o diagnóstico da
falência ético-antropológica do sonho de um bem-estar puramente
materialista que caracteriza o capitalismo contemporâneo, com base
unicamente egoísta e individualista. “Para apoiar um estilo de vida que
exclui os outros ou mesmo entusiasmar-se com esse ideal egoísta,
desenvolveu-se uma globalização da indiferença. Quase sem nos darmos
conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores
alheios, já não choramos à vista do drama dos outros nem nos
interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse responsabilidade de
outrem, que não nos compete. A cultura do bem-estar anestenia-nos a
ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não
compramos, enquanto todas essas vidas ceifadas por falta de
possibilidades nos parecem mero espetáculo, que não nos incomoda de
forma alguma (parágrafo 54)”.
O que o papa Francisco indica é a necessidade de uma
saída social e humana da crise econômica: “Hoje, tudo entra no jogo da
competitividade e da lei do mais forte, onde o poderoso engole o mais
fraco. Em consequência dessa situação, grandes massas da população
veem-se excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem perspectivas, num
beco sem saída”. O papa lembra “que os ricos devem ajudar os pobres,
respeitá-los e promovê-los”. Só dessa maneira se pode gerar a vitória da
economia sobre as finanças e reafirmar o papel dos povos nas atividades
produtivas e de consumo. Em suma, a economia deve ser posta a serviço
do homem, para cada homem, e o bem comum deve ser declinado em sentido
popular e social, não individualista e centralizador.
As mais belas páginas da Exortação referem-se aos
pobres: “Com a exclusão, fere-se, na própria raiz, o fato de
pertencermos à sociedade em que vivemos, pois quem vive nas favelas, na
periferia ou sem poder, já não está nela, mas fora. Os excluídos não são
“explorados”, mas resíduos, sobras”. Contudo, o papa não propõe uma
visão crítica de pauperismo moralizante, tampouco oferece receitas
pragmáticas: seu papel não é esse. Sem dúvida, opera uma inversão
radical na maneira de enfrentar globalmente a questão da exclusão
social, atribui dignidade à pobreza e introduz com força a questão da
exclusão na democracia de amanhã. Seu raciocínio é sobretudo conceitual e
ideal, e por isso preocupa tanto seus detratores.
O artigo do FT termina com outra citação do papa:
“Exorto-vos a uma solidariedade desinteressada e a um retorno da
economia e das finanças a uma ética propícia aos seres humanos”. Com
indiscritível imprudência (ou talvez por simples ignorância) o
articulista conclui perguntando retoricamente: “A questão é: para quais
seres humanos?”
Qualquer comentário parece supérfluo. Preferível
recorrer ainda às palavras do papa: “Assim como o bem tende a
difundir-se, também o mal consentido, que é a injustiça, tende a
expandir sua força nociva e a minar, silenciosamente, as bases de
qualquer sistema político e social, por mais sólido que pareça”.
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