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sábado, 22 de outubro de 2011

Contraponto 6564 - "Quem tem medo da democratização da mídia"

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22/10/2011

Quem tem medo da democratização da mídia


Emir Sader*

Nos meses transcorridos desde as acusações a Palocci até esta ofensiva contra Orlando Silva ficou clara a força da velha mídia para pautar a política nacional. A agenda política ficou periodizada pelos ministros que eram a bola da vez das acusações, numa sequência prolongada de “escândalos, que deu a impressão que essa era a cara mais marcante do governo.

A política econômica e sua articulação com as políticas sociais – o tema mais importante do governo, porque isso vai definir a capacidade do Brasil para resistir às consequências da crise no centro do capitalismo – não conseguiu o espaço essencial que deveria ter na agenda nacional. Ficou na sombra da pauta de denúncias produzida pela velha mídia.



Durante os últimos anos do governo Lula – e, em particular durante a campanha eleitoral – foi possível neutralizar relativamente o peso dos monopólios da mídia privada, com Lula – do alto da sua imensa popularidade e com sua linguagem de enorme apelo popular -, ainda mais que contávamos com os horários televisivos e os comícios da campanha.

Passadas essas circunstâncias, a velha mídia monopolista voltou a ocupar seu papel central na definição das agendas nacionais, pautando o governo com seu denuncismo, que visa enfraquecê-lo. Agem como um grande exército regular e nós, da mídia alterantiva, como guerrilhas. Temos credibilidade, rapidez, acesso aos jovens – que eles não dispõem – mas contamos com meios muito menores de difusão.

Temerosos do marco regulatório, difundem que haverá limitação à liberdade de expressão. Ao contrário, o objetivo não será calar ninguém, mas dar voz a milhões de outras vozes, que hoje, apesar de majoritárias no país, não se reconhecem e são excluídas da mídia tradicional.

Não haverá democracia real no Brasil enquanto não forem democratizados os meios de comunicação, enquanto algumas poucas famílias deixarem de querer falar e nome do país e da grande maioria da população, que vota contra e derrota sistematicamente os candidatos que essa mídia apoia.

É urgente iniciar o debate sobre o marco regulatório, mesmo que um Congresso infestado de donos de meios de comunicação privados resista ao máximo a qualquer forma de democratização da mídia. Defendem seus privilégios monopolistas, mas tem que ser derrotados, para que a formação de opinião pública no Brasil possa ser democrática e pluralista.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Contraponto 6537 - Emir Sader traduz vocalulelero da velha mídia

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19/10/2011

O vocabulerolero da velha mídia

Do Blog do Emir - 19/10/2011

por Emir Sader*

Aqui algumas indicações sobre como ler a velha mídia. Nada do que é dito vale pelo seu valor de face. Tudo remete a um significado, cuja arte é tratar de camuflá-lo bem.

Por exemplo, quando dizem liberdade de imprensa, querem liberdade de empresa, das suas empresas, de dizerem, pelo poder da propriedade que tem, de dizer o que pensam.

A chave está em fazer passar o que pensam pelo interesse geral, pelas necessidades do país. Daí que nunca fazem o que deveriam fazer. Isto e’, dizer, por exemplo: “A família Frias acha que...” Ou: “A família Civita acha que...” e assim por diante.

A arte da manipulação reside em construções em que os sujeitos (eles) ficam ocultos. Usam formulas como: “É mister”, “Faz-se necessário”, “É fundamental”, “É’ indispensável”.

Sempre cabe a pergunta: Quem, cara pálida? Eles, os donos da empresa. Sempre tentar passar a ideia de que falam em nome do país, do Brasil, da comunidade, de todos, quando falam em nome deles. A definição mais precisa de ideologia: fazer passar interesses particulares pelos interesses gerais.

Quando dizem “fazer a lição de casa”, querem dizer, fazer duro ajuste fiscal. Quando falam de “populismo”, querem dizer governo que prioriza interesses populares. Quando falam de “demagogia”, se referem a discursos que desmascaram os interesses das elites, que tratam de ocultar.

Quando falam de “liberdade de expressão”, estão falando no direito deles, famílias proprietárias das empresas monopolistas da mídia, dizerem o que bem entendem. Confundem liberdade de imprensa com liberdade de empresas – as deles.

No Vocabulerolero indispensável para entender o que a mídia expressa de maneira cifrada, é preciso entender que quando falam de “governo responsável”, é aquele que prioriza o combate à inflação, às custas das políticas sociais. Quando falam de “clientelismo”, se referem às politicas sociais dos governos.

Quando falam de “líder carismático”, querem desqualificar os discursos os lideres populares, que falam diretamente ao povo sobre seus interesses.

Quando falam de “terrorismo”, se referem aos que combatem ou resistem a ações norte-americanas. “Sociedades livres” são as de “livre mercado”. Democráticos são os países ocidentais que tem eleições periódicas, separação dos três poderes, variedade de siglas de partidos e "imprensa livre", isto é, imprensa privada.

“Democrático” é o pais aliado dos EUA – berço da democracia. Totalitário é o inimigo dos EUA.

Quando dizem “Basta” ou “Cansei”, querem dizer que eles não aguentam mais medidas populares e democráticas que afetam seus interesses e os seus valores.

Entre a velha mídia e a realidade se interpõe uma grossa camada de mecanismos ideológicos, com os quais tentam passar seus interesses particulares como se fossem interesses gerais. É o melhor exemplo do que Marx chamava de ideologia: valores e concepções particulares que pretendem promover-se a interesses da totalidade. Para isso se valem de categorias enganosas, que é preciso desmistificar cotidianamente, para que possamos enxergar a realidade como ela é.


*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.

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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Contraponto 6520 - "A Segunda década latinoamericana"

.17/10/2011

A Segunda década latinoamericana

Carta Maior - 16/10/2011

Emir Sader*

A primeira década do século XXI foi uma década latino-americana. Depois de ter sido vítima de ditaduras militares, da crise da dívida e de governos neoliberais, o continente mostrava, de novo, surpreendente capacidade de recuperação, gerando governos de resistência ao neoliberalismo, progressistas, como nunca na sua história.

São governos que agem no marco das transformações negativas das décadas anteriores, com a herança pesada que receberam: Estados enfraquecidos, sociedades fragmentadas, processos de desindustralização, renúncia à soberania, entre tantas outras.

De novo a América Latina mostrou imensa capacidade de recuperação, como tinha feito em momentos anteriores de sua história, diante de outras derrotas. Por isso chamo o continente de Nova Toupeira, no meu livro com esse nome. Desta vez foi a dura recuperação dos governos neoliberais, que devastaram o continente.

Foi necessário recompor a capacidade de indução do crescimento por parte dos Estados, resgatar direitos sociais, superar as recessões em que estavam nossas economias. Tudo em meio a uma herança muito negativa e a um contexto internacional desfavorável.

Ainda assim a America Latina protagonizou uma década memorável, em que começou a reverter seu triste recorde de ser o continente mais injusto do mundo. Para isso, os governos progressistas latino-americanos colocaram em prática políticas sociais criativas, que distribuíram renda, estenderam o mercado interno de consumo popular, integraram milhões de pessoas ao consumo básico e aos direitos elementares de cidadania, elevaram regularmente o poder aquisitivo dos salários e os empregos formais.

Por outro lado, foram sendo criados na região espaços de integração regional – Mercosul, Unasul, Banco do Sul, Conselho Sulamericano de Defesa, Corporação Andina de Fomento, entre outros, conformando o único espaço de integração autônomo em relação aos Estados Unidos. Foram priorizadas as alianças intraregionais e com o Sul do mundo, o que foi gerando um novo mapa político mundial e um mundo multipolar do ponto de vista econômico. A crise em que se encontra o capitalismo internacional desde 2008 revelou, com mais força, as vantagens desse tipo de inserção internacional: nossos países entraram mais tarde e saíram mais cedo do primeiro ciclo da crise e se defendem hoje muito melhor do que os do centro do sistema.

Os governos progressistas fizeram da América Latina a região mais avançada do mundo na luta contra o neoliberalismo. A única que combate sistematicamente as desigualdades sociais, que propõe formas inovadoras de políticas sociais, de reforma do Estado, de integração regional e de inserção internacional soberana. E esta tem tudo para ser a segunda década seguida da América Latina.

SUGESTOES DE LEITURA

- Filosofia da práxis
Adolfo Sanchez Vasquez
Editora Expressao Popular

- De Gramsci a Rousseau
Carlos Nelson Coutinho
Boitempo Editorial

- História da nação latino-americana
Jorge Abelardo Ramos
Editora Insular

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Contraponto 6483 - "O maior massacre da história da humanidade"

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.12/10/2011

O maior massacre da história da humanidade



Do Blog do Emir - 12/10/2011

Emir Sader
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12 de outubro marca o início dos maiores massacres da história da humanidade.

A chegada doscolonizadores, invadindo e ocupando o nosso continente – ate aí chamado Aby ayala pelas populações indígenas -, representava a chegada do capitalismo, com o despojo das riquezas naturais dos nossos países, da destruição das populações indígenas e a introdução da pior das selvagerias: a escravidão. Chegaram com a espada e a cruz, para dominar e oprimir, para impor seu poder militar e tentar impor sua religião.

Centenas de milhões de negros foram arrancados dos países, das suas famílias, do seu continente, à força, para serem trazidos como raça inferior, para produzir riquezas para as populações ricas da Europa branca e colonizadora. Uma grande proporção morria na viagem, os que chegavam tinham vida curta – de 7 a 9 anos -, porque era mais barato trazer nova leva de escravos da Africa.

Os massacres das populações indígenas e dos negros revelava como o capitalismo chegava ao novo continente jorrando sangue, demonstrando o que faria ao longo dos séculos de colonialismo e imperialismo. Fomos submetidos à chamada acumulação originária, aquele processo no qual as novas potências coloniais disputavam pelo mundo afora o acesso a matérias primas, mão de obra barata e mercados. A exploração colonial das Américas fez parte da disputa entre as potências coloniais no processo de revolução comercial, em que se definia quem estaria em melhores condições de liderar o processo de revolução industrial.

Durante mais de 4 séculos fomos reduzidos a isso. Os ciclos econômicos da nossa história foram determinados não por decisões das populações locais, mas das necessidades e interesses do mercado mundial, controlado pelas potências colonizadoras. Pau brasil, açúcar, açúcar, borracha, no nosso caso. Ouro, prata, cobre, carne, couro, e outras tantas riquezas do novo continente, foram sendo reiteradamente dilapidados em favor do enriquecimento das potências colonizadoras europeias.

Assim foi produzida a dicotomia entre o Norte rico e o Sul pobre, entre o poder e a riqueza concentrada no Norte – a que eles chamavam de “civilização” – e a pobreza e a opressão – a que eles chamavam de “barbárie”.

O início desse processo marca a data de hoje, que eles chamavam de "descoberta da América", como se não existissem as populações nativas antes que eles as “descobrissem”. No momento do quinto centenário buscaram abrandar a expressão, chamando de momento de “encontro de duas civilizações”. Um encontro imposto por eles, baseado na força militar, que desembocou no despojo, na opressão e na discriminação.

Não nos esqueçamos disso, demos à data seu verdadeiro significado, que nos permita entender o presente à luz desse tenebroso passado de exploração e de massacre das populações indígenas e das populações negras.


Emir Sader. Sociólogo e cientista político.
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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Contraponto 6358 - "Um sistema anti-social"

27/09/2011

Um sistema anti-social

Do Blog do Emir - 27/09/2011

“Se os 44 milhões de pessoas que estão desempregadas nos principais países ricos da OCDE fossem agrupados em um único pais, sua população seria similar à da Espanha. Na própria Espanha, que tem a mais alta taxa de desemprego (21%), o número de pessoas sem trabalho soma a população de Madri e de Barcelona juntas. Nos EUA, os 14 milhões de pessoas oficialmente desempregadas formariam a quinta cidade mais populosa do país. Acrescente-se 11 milhões de “subempregados”, que estão trabalhando menos do que queriam, e se chega à população do Texas.”

As afirmações estão em editorial da revista conservadora britânica The Economist, em um dossiê sobre o desemprego. Uma das lúcidas conclusões da revista: “E o custo humano da crise é pago amplamente pelos que não têm trabalho, porque o desemprego incrementa a depressão, os divórcios, o abuso de drogas e tudo o há de ruim na vida.”

Uma proporção grande das vítimas do desemprego são jovens, em um processo de desemprego que vai se tornando crônico. Nos EUA, a média de tempo no desemprego, que era de 17 semanas em 2007, agora subiu para 40 semanas, aproximando-se de um ano. O nível de expansão da economia nos países mais ricos do sistema não é suficiente nem para absorver os que chegam ao mercado de trabalho, quanto mais para absorver os que já estão desempregados. Calcula-se em 220 milhões os desempregados no mundo inteiro, sob a égide da globalização e das políticas neoliberais. Outros 20 milhões devem perder o emprego só no centro do capitalismo no ano que vem, se a crise se prolongar. O desemprego só não é maior porque a China cria 40 milhões de empregos por ano, nos países progressistas da América Latina – incluindo a Argentina e o Brasil -, onde o desemprego tem sistematicamente diminuído, justamente pela substituição de políticas neoliberais por políticas que priorizam o emprego e o mercado interno de consumo popular. (Grifo do ContrapontoPIG)

Os empregos têm sido sacrificados em nome da austeridade, especialmente no setor público, o que não só aumenta o desemprego, como piora a qualidade dos serviços públicos, que atendem à maioria pobre da população – que assim sofre duplamente, com a perda do emprego e a deterioração dos serviços sociais que os atendem.

Os maiores empregadores do mundo são serviços e empresas estatais. Entre os 10 maiores estão o Departamento de Defesa dos EUA, o Exército chinês, seguidas por duas empresas privadas: Walmart e McDonald’s, pela empresa chinesa estatal de petróleo, por outra estatal chinesa – State Grid Corporation of China, pela instituição de serviços de saúde da Inglaterra, pelas empresa de estradas de ferro da India, pelos Correios da China e por uma outra empresa chinesa – Hon Hai Precision Industry.

O desemprego entre os jovens chega a 41,7% na Espanha, 50,5% na Africa do Sul, a 27,8% na Itália, a 23,3% na França. A taxa de desemprego na América Latina está entre as menores do mundo, bem menos do que nos EUA e na Europa, refletindo políticas de manutenção do crescimento e da distribuição de renda por aqui, de ajuste e recessão por lá.

Um sistema que não garante sequer a quantidade de empregos para dar uma fonte mínima de renda a milhões de pessoas, que não projeta perspectiva de empregos garantidos para a maioria dos seus jovens, que tem empregos instáveis, vulneráveis e de péssima qualidade para a maioria dos que conseguem trabalhar – é um sistema anti-social. Porque funciona não conforme a necessidade das pessoas, mas conforme os critérios de rentabilidade fornecidos pelo mercado. Um sistema que leva no seu nome o seu sujeito central – capital – e não os que produzem riqueza por meio do seu trabalho.


*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Contraponto 6347 - "O enigma Argentina"

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26/09/2011
O enigma Argentina



Do Blog do Emir - 26/09/2011

Emir Sader
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Nem a proximidade, nem as viagens frequentes ou as similitudes fazem com que a compreensão da Argentina avance no Brasil. O tema Argentina e, direta ou indiretamente, o das comparações Argentina-Brasil, foi sempre um tema monopolizado pela direita, de lá e de cá. Os tucanos, parentes dos radicais argentinos, se associam a eles no antiperonismo lá e no anti-lulismo aqui. E não entendem nenhum dos dois.

O clichê se repete sempre: o peronismo, o populismo argentino, representou a passagem do país vizinho para sua fase decadente, da qual não saíram mais. Implicitamente ou não, se estende essa visão para o getulismo. Quanto mais nos distanciemos deles, melhor estaremos. A direita daqui – particularmente Serra na campanha de 2002 – acenou sempre com o perigo de nos tornar-nos uma Argentina, com todos os contornos negativos que a expressão importa.

Cristina Kirchner acabou de ter um grande triunfo nas prévias eleitorais, permitindo que todos prognostiquem que se reelegerá em outubro. Nenhum meio de comunicação brasileiro, depois de terem pintado a Argentina atual e os governos dos Kirchner com as piores cores, publicou algum artigo para tentar explicar por que os argentinos vão reeleger Cristina. Seja para dizer que eles são uns tangueiros masoquistas, degenerados, que gostam de sofrer ou talvez repensar se suas análises não estão equivocadas – sobre a Argentina e o Brasil.

Os dois países tiveram trajetórias similares, a Argentina se insutrializando antes, mais voltada para o mercado interno, com um movimento sindical mais sólido. O golpe correspondente ao nosso de 1964 – em 1966 – fracassou lá e nossas histórias tiveram temporalidades mais diferenciadas a partir daquele momento. Sem que isso alterasse as similaridades. Tanto assim que vivemos ditaduras similares, crise da dívida similar e governos neoliberais similares.

As ditaduras dos dois países se orientaram pela mesma Doutrina de Seguranca Nacional. A crise da dívida atingiu da mesma forma os dois países. Menem se diferenciava de FHC não pelos planos de governo, mas porque FHC tomava vinhos franceses, enquanto Menem comia pizza com champanhe na Casa Rosada.

De forma similar, os governos de reação ao fracasso do neoliberalismo têm características similares: prioridade das políticas sociais e de extensão do mercado interno de consumo, ao invés dos ajustes fiscais; prioridade das políticas de integração regional ao invés dos Tratados de Livre Comércio com os EUA; papel ativo do Estado na condução da economia e na garantia dos direitos sociais ao invés do Estado mínimo e da centralidade do mercado.

No entanto, a direita daqui usa a Argentina como espantalho, enquanto a de lá elogia a Lula contra Cristina, numa prestidigitação típica da direita. Como não é possível estar contra um governante de tanto sucesso dentro e fora do Brasil, como Lula, tratam de diferenciá-los, de forma totalmente artificial. FHC, com sua consciência de classe afinada, escreveu para o Clarin – o jornal dos otavinhos de lá – que estavam equivocados os que diferenciam os Kirchner e Lula, que os dois são iguais e igualmente nefastos, melando o jogo da direita de lá.

Nunca as relações entre os dois países foram tão boas, para confirmar a similaridade dos dois governos. Ambos pertencem ao mesmo grupo de governos progressistas na América do Sul, defendem posições similares no plano internacional, tem políticas parecidas no plano interno.

A mesma incapacidade da direita brasileira para entender o governo dos Kirchner é a que tem para entender o governo de Lula e o de Dilma, o que aumenta ainda mais a similaridade entre eles.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Contraponto 6319 - "Comissão da Verdade: o primeiro passo"

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22/09/2011

Comissão da Verdade: o primeiro passo

Do Blog do Emir - 22/09/2011



Emir Sader*

“Foi bonita a festa, pá!” Podemos estar contentes com a aprovação da Comissão Nacional da Verdade pela Câmara de Deputados ontem. Consagrou o método de combinar acordos políticos com mobilização popular. E esta demonstrou como os artistas e intelectuais continuam demonstrando uma grande sensibilidade para as maiores causas nacionais.

O que conquistamos foi a aprovação da Câmara e, quando tivermos a do Senado, teremos conquistado apenas um passo inicial: a construção de um espaço de busca da verdade sobre o que ocorreu durante a ditadura militar e a versão oficial do Brasil sobre o que ocorreu naquele período. Foi uma construção política, que abre um importante espaço de disputa. Agora se trata da aprovação no Senado e da composição da Comissão.

O projeto requer reparos, de vários pontos de vista, mas uma parte das objeções levantadas não tem fundamento. O primeiro problema é a extensão no tempo, retrocedendo a 1946. É certo que essa é uma data de origem das articulações golpistas que desembocaram em 1964, depois de várias tentativas de dar o golpe - 1954 e 1961, entre outras. Foi naquele momento que os oficiais das FFAA regressando da participação na guerra na Itália, passaram a ser influenciados diretamente pela oficialidade norteamericana. Em concreto, Golbery do Couto e Silva – que posteriormente seria peça chave na articulação do golpe e em governos da ditadura – fundou a Escola Superior de Guerra, desde onde se difundiu a nefasta Doutrina de Seguranca Nacional, que orientou as ditaduras do continente, no espírito da guerra fria, conforme a visão norteamericana.

Porém, as violações dos direitos humanos, como as entendemos, se concentraram claramente – tornando-se uma política de Estado – a partir de 1964 e ao longo de todo o período ditatorial, sobre o qual a Comissão deveria concentrar-se. Ainda mais que ela não tem uma duração muito longa – 2 anos – e nao dispõe, pelo menos inicialmente, de recursos próprios para trabalhar. Mas isso a Comissão pode redimensionar no seu programa de trabalho, para não desconcentrar-se do centro mesmo das suas investigações.

Quanto ao acesso a documentos e informações, a Comissão terá amplos direitos de requisitá-los de órgãos ou entidades do Poder Público, mesmo os que são classificados em qualquer grau de sigilo. Além disso, a Comissão poderá convocar, de forma obrigatória, as pessoas para prestarem esclarecimentos sobre as violações dos direitos humanos. Uma emenda posterior ampliou ainda mais as fontes de que vai dispor a Comissão, porque agrega que qualquer pessoa que considere que tem informação relevante a prestar para esclarecer essas violações, pode solicitar ser ouvida pela Comissão.

Quanto aos recursos, a Casa Civil da Presidência dará o suporte técnico, administrativo e financeiro necessários para as atividades da Comissão.

Em relação à objeção do número relativamente limitado de membros da Comissão – sete -, e’ preciso levar em conta que, além do fato de que serão criados 14 cargos em comissão para assessor os trabalhos da Comissão, ela se apoiará em grande quantidade de entidades que têm desenvolvido, há muito tempo, pesquisas sobre o tema.

Mas mesmo em comparação com Comissoes de outros países, constatamos que no Chile ela teve 8 membros, na Argentina, 13, na Guatemala e em El Salvador 3 e no Peru, 12. O que revela que a composição brasileira se ajusta ao número de membros dos outros países.

Quanto aos critérios da nomeação dos seus membros, foram aprovados critérios que excluem a possibilidade de participação de pessoas com cargos políticos públicos, com mandatos ou que tivessem estado diretamente vinculados ao fatos analisados.

Quanto à duração, a Comissão poderá dispor de grande quantidade de pesquisas e acervos acumulados nas ultimas décadas, seu trabalho não começará do zero.

Assim, o que foi conquistado é um espaço para a busca e sistematização das informações que permitam esclarecer, com o máximo de rigor possível, as violações dos direitos humanos durante a ditadura militar e formular a narrativa oficial do Estado brasileiro sobre a ditadura militar que vitimou o país de 1964 a 1985. Um primeiro e grande passo, que rompe a inércia em que estávamos antes dessa iniciativa. Só podemos saudá-la, apostar no seu trabalho e mobilizar-nos para que ela cumpra da melhor forma possível seus objetivos, assim que for aprovada pelo Senado e sancionada pela Presidência.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Contraponto 6289 - "A primavera dos direitos humanos

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19/09/2011

A primavera dos direitos humanos

Da Carta Maior - 18/09/2011

Emir Sader
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Com a apresentação do projeto da Comissão da Verdade no próximo dia 21 começa a primavera dos direitos humanos no Brasil.

O golpe de 1964 interrompeu brutalmente o desenvolvimento democrático do país e a ditadura militar que foi instaurada se apropriou violentamente do Estado brasileiro e impôs à sociedade um regime de terror durante mais de duas décadas. Foi o momento mais terrível da história do Brasil desde o término da escravidão.

Foram perpetrados os crimes mais brutais, valendo-se do aparato de Estado contra a democracia, contra o povo, contra sua cultura, contra toda forma de liberdade conquistada ao longo do tempo. A ditadura militar foi um regime que modificou profundamente a história do Brasil, destruindo tudo o que havia de democrático no país, realizando uma política econômica de concentração de renda, de exclusão social e de desnacionalização da economia. Foi o pior regime que o Brasil já conheceu, o que mais violou os direitos humanos no país.

Na sua fase final, a ditadura decretou uma anistia que a favorecia, amalgamando vencidos e vencedores, verdugos e vítimas, apagando da história do país todas as violações que a ditadura havia cometido. Com isso, além da impunidade dos agentes do terror da ditadura, impediu que se apurasse tudo o que foi feito, buscando apagar aquele período da memória dos brasileiros.

A ditadura militar se esgotou, mas conseguiu controlar a transição, com a eleição do primeiro presidente civil pelo Colégio Eleitoral e com a manutenção da anistia imposta pelo velho regime e não decidida democraticamente pela cidadania.

Nesta semana, a secretária dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, entregará ao presidente da Câmara dos Deputados o projeto da Comissão da Verdade. O Congresso vota no dia 21, dia do começo da primavera, o projeto que permitirá à sociedade brasileira apurar a verdade, sobretudo o que aconteceu naquele momento de domínio da ditadura sobre a democracia, do terror sobre a liberdade, da força sobre a razão.

Esse é o espaço que a sociedade brasileira consegue para passar a limpo e, só depois de ter satisfeito seu justo direito ao conhecimento de tudo o que ocorreu, virar essa triste página da nossa história. Todos os que estão comprometidos com essa busca, - goste-se ou nao da forma particular que é possível hoje a busca da verdade -, tem que mobilizar toda sua energia, para que triunfe, finalmente, a verdade e vivamos, finalmente, a primavera dos direitos humanos no Brasil.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político
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sábado, 10 de setembro de 2011

Contraponto 6209 - "Minhas lembranças do 11 de setembro"

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.10/09/2011

Minhas lembranças do 11 de setembro


Do Blog do Emir - 10/09/2011

Emir Sader*

Não era a primeira vez que eu despertava com o ruídos dos aviões sobrevoando a região. Dois meses e meio antes, no final de junho, tinha vivido essa circunstância angustiante. Tinha descido correndo até o Palácio da Moeda, que ficava a duas quadras do prédio de apartamento central onde eu morava.

A imagem era a que voltaria a presenciar poucas semanas depois: tropas cercando o palácio presidencial. Setores das FFAA mais radicalizados forçavam o resto das instituições militares a acelerar o golpe em preparação. Mas as condições não estavam dadas, a tal ponto que o Comandante-em-chefe das FFAA ainda era leal a Allende – Carlos Prats, que percorreu todos os quarteis rebelados e, com argumentos e força moral, conseguiu a rendição dos golpistas.

Nessa noite, com a Praça da Constituição, em frente ao Palácio da Moneda, mais lotada do que nunca, Allende optou por consagrar as autoridades militares vigentes, não apenas, com justiça, a Prats, mas aos comandantes das outras armas, suspeitos de estar nas articulações golpistas. Estes seguiram seus planos, conseguiram tirar Prats e substituí-lo por Pinochet que passou, agora de dentro do governo mesmo, a articular o golpe.

No dia 4 de setembro, aniversário da vitória eleitoral de Allende, três anos antes, a maior multidão que o Chile tinha conhecido saiu às ruas para expressar seu apoio ao governo. Mas nada brecou as articulações golpistas. Quando Allende se preparava, dia 11 à noite, para fazer um pronunciamento ao país em rede de radio e televisão, os militares golpistas, alertados por Pinochet, anteciparam o golpe, aproveitando-se também das manobras militares de um porta-aviões norteamericano, no porto de Valparaíso.

Assim, poucas semanas depois, voltei a ser acordado pelo zumbido dos aviões sobrevoando. Desta vez não havia dúvidas que era uma nova tentativa de golpe, desta vez a definitiva. Desci da mesma maneira e fui à Praça da Constituição. Desta vez o Palácio da Moeda estava cercado por um contingente claramente maior de tropas.

Santiago já estava sendo ocupada, Valparaíso era a sede do movimento golpista, que tomava as rádios e TVs e Pinochet anunciava o ultimato a Allende, com prazo do meio dia, hora em que o Palácio da Moeda seria bombardeado. Paralelamente mandaram a Allende a proposta de que ele abandonasse o Palácio, com seus parentes, para ser enviado por helicóptero ao exterior. Ressoou por toda a Cordilheira o palavrão com que Allende rechaçou a oferta dos golpistas.

Allende se dirigiu pela última vez ao povo na rádio da central sindical, seu famoso discurso em que nanuncia que “mais cedo do que se imagina as grandes alamedas da democracia se reabrirão no Chile”. E seguiu resistindo, a partir da janelinha mais alta do Palácio, de onde se dirigia ao povo, com o capacete que os mineiros tinham dado a ele a o fuzil soviético AK-47 que Fidel tinha lhe presentado. Allende, um pacifista por excelência, empunhava armas para defender a democracia e o mandato que o povo lhe havia concedido.

O prazo foi adiado um pouco, mas finalmente os caças bombardeiros ingleses despejaram todo seu poder de fogo sobre o palácio presidencial, símbolo da extraordinária continuidade democrática chilena, só rompida, até ali, em dois breves momentos, desde 1830. A imagem que se reproduz sempre é significativa do que se vivia naquele momento: um presidente legitimamente eleito pelo povo chileno, cercado pelos militares golpistas, bombardeado, como resultado de um complô que tinha se iniciado assim que Allende ganhou as eleições, antes mesmo que tomasse posse.

Em reunião no Salão Oval da Casa Branca, Agustin Edwards, proprietário do jornal El Mercurio, se reuniu com Nixon e com Kissinger, começando a planejar o golpe. Kissinger afirmou que era preciso “salvar o povo chileno das suas loucuras”. Essa articulação desembocou no golpe, na destruição da ditadura chilena e na instauração do regime mais feroz que o Chile conheceu.

Allende preferiu o suicídio a abandonar o Palácio vivo. Neruda morre poucos dias depois de 11 de setembro. Victor Jara teve seus pulsos amputados e morreu no então Estadio Chile, rebatizado no fim da ditadura como Estadio Victor Jara. Milhares de pessoas foram presas, torturadas, assassinadas, desaparecidas, exiladas. A democracia chilena foi destruída, com ela o Parlamento, a Justica, os sindicatos, os partidos políticos, a imprensa democrática.

Tudo começou naquele 11 de setembro. Fui detido, junto com outros brasileiros, numa delegacia de polícia, assim que o toque de recolher foi suspenso e pudemos sair à rua. O Estádio Chile estava superlotado, não sabiam o que fazer com tanta gente esperando nas delegacias. Antes que voltasse o toque de recolher, liberaram uma parte dos presos, com o que pudemos ser liberados. Há 38 anos. O Chile começava a viver apenas o início do inferno de terror da ditadura pinochetista.


*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.

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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Contraponto 5862 - Diário da Nova China (2 e 3)

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25/07/2011

Diário da Nova China (2) Beijing no domingo: primeiras impressões

Do Blog do Emir 24/07/2011

Emir Sader*

As primeiras impressões na chegada à China – nesta segunda vinda – já são significativas. A primeira dela, o smog que cobre o céu de Beijing, produto da contaminação. O concentrado esforço chinês para dar o salto econômico espetacular após mais de três décadas, apelou para os recursos energéticos de que dispunha, o que trouxe grandes problemas ambientais, hoje uma das preocupações prioritárias do governo chinês.

Por outro lado, as dimensões do aeroporto e o rápido atendimento refletem o esforço chinês para dar conta da chegada de gigantescos continentes de turistas que vem conhecer esta experiência única no mundo. Já seria única por suas próprias dimensões e ritmo, mais ainda porque contrasta fortemente com a recessão profunda e prolongada que se vive na Europa, no EUA e no Japão. Enquanto se é gentilmente atendido pelo funcionário que controla documentação, se pode avaliar o seu desempenho em um aparelhinho que ele não vê.

Chegando a Beijing, depois de trânsito denso, mesmo para um domingo, os espaços enormes das ruas e avenidas, a limpeza destas e a majestosidade dos edifícios, com a sua diversidade de estilos, se impõem. A indústria da construção chinesa é dos fenômenos mais impressionantes. Onde não edifícios, há construções, que trabalham 24 horas por dia. De cada quatro guindastes que se erguem no mundo, três são na China,

Nos domingos os parques são ocupados por idosos que dançam, fazem esporte, correm ou simplesmente conversam e fazem piquenique. Poucas bicicletas sobrevivem de décadas atrás, assim como é raríssimo, senão impossível, ver algum trajando as roupas tradicionais, do estilo de Mao.

Em suma, a China é outra, muito diferente da de três décadas, sobretudo diferente daquela da revolução cultural. A predominância da população rural diminui aceleradamente, havendo cálculos até de que, contando os imigrantes ilegais para os centros urbanos, estes já contenham a maioria da população.

Há um vertiginoso processo de ascensão social, que permite com que 300 milhões de pessoas tenham saída da miséria em três décadas, mas que, ao mesmo tempo, se tenha gerado, uma elite muito rica. O turismo na capital tem um enorme contingente de gente do campo, que provavelmente pela primeira vez, vem conhecer Beijing. (Uma guia que nos foi esperar no aeroporto, bem jovem, veio há apenas 6 meses da Mongólia interior buscar trabalho. Estuda castelhano, que fala ainda de maneira tosca, para buscar emprego, quando então vai encarar o problema da sua legalização, já que evidentemente ela se deslocou sem autorização para a capital.)

Um fenômeno novo, destas dimensões, e que tenta enfrentar problemas que evidentemente outras tentativas, no socialismo, não deram certo, tem primeiro que ser visto, para depois ser analisado. Sigo relatando impressões, para depois discutirmos seu significado.

Postado por Emir Sader às 18:06

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25/07/2011

Diário da Nova China (3) - O Império do Meio

Emir Sader*

Um jornalista amigo italiano, que visitou a China ainda nos anos 50, como líder estudantil, ao se despedir do então ministro de Relações Exteriores, o elegante e esbelto Chouenlai, lhe disse:

-Que bom vir tão longe para conhecer uma experiência tão importante!

Ao que Chouenlai lhe respondeu, laconicamente:

- Longe de que? Eles, que se consideram o Império do Centro.

Claro que ele queria dizer – tendo levado o eurocentrismo na sua bagagem: Longe da Europa. E, com isso, longe da civilização.

E, no entanto, aqui está uma civilização muito mais antiga e mais rica que as europeias. E que hoje demonstra um vigor que a velha Europa se mostra incapaz, para enfrentar seus problemas. A China enfrenta desafios com audácia e persistência.

Os chineses são modestos, trabalhadores, pertinazes. Não querem exportar seu modelo, o sentimento das pessoas é o de que o governo é bom se as pessoas estão melhorando de vida – aí o juízo é claramente positivo sobre governo -, mas reclamam muito da corrupção, dos privilégios de quem está vinculado ao poder e das desigualdades.

Causou grande satisfação a extradição de um chinês que havia fugido, há 12 anos, para o Canadá, depois de ter sido pilhado em enormes casos de corrupção, ao trabalhar na alfândega e ganhar muito dinheiro cobrando para importar mercadorias de luxo. Depois de longas negociações com o governo canadense, ele foi extraditado, está preso e vai responder a processo que, segundo dizem as pessoas, deveriam envolver vários dos seus chefes de então.

Mas o que é certo é que a grande maioria das pessoas tem melhorado de vida, mesmo se em condições de desigualdades entre si. Mesmo a população do campo tem sido beneficiada, depois que o governo passou a protegê-la, além de que o êxodo – legal e ilegal para as cidades – continua. Os choferes de uma frota de 80 triciclos que funciona em um bairro boêmio de Beijing, em torno de um lindo lago, por exemplo, não são sindicalizados, são super explorados pelo dono, mas chegaram do campo e preferem essa condição do que voltar a viver no campo, para onde regressam periodicamente para levar o que ganham.

Moças preferem sair das condições de pobreza e opressão no campo, onde a expectativa das suas famílias costuma ser apenas a de que casem, para trabalhar nas novas cidades emergentes, em fábricas, onde rapidamente melhoram suas condições de vida, diminuindo rapidamente a longa jornada de trabalho e, mudando constantemente de emprego, aumentando seus salários.

Em um processo de rápida ascensão social, é claro que nem todos são beneficiados da mesma maneira. O que mais interessa é que todos tendem a melhorar e que a China tirou da miséria a 300 milhões de pessoas em 3 décadas, o que nunca ocorreu nessa escala em nenhum outro processo histórico. E que esse processo tende a continuar. Quando se fala que a economia chinesa vai diminuir seu ritmo de crescimento de 9 para 7% ao ano – o que, apesar de anunciado no Ocidente, nunca ocorreu até aqui -, é preciso levar em conta que crescer 7% ao ano a partir do elevado patamar de hoje é muito mais do que crescer a 10% vinte anos atrás.

Enquanto isso, a Europa retrocede – na Espanha a emigração supera a imigração, a população diminui – e não tem data para acabar a recessão, os otimistas dizem que a situação vai piorar antes de começar a melhorar.

A China considera que terminou o lapso de dois séculos em que ela foi ultrapassada pela Europa, não por vigor econômico, mas pela superação militar, pelo domínio armado dos mares, que permitiu o colonialismo, a escravidão, que promoveu a hegemonia ocidental. Esse lapso teria terminado e a China se projeta de novo com um futuro que eles consideram glorioso.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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domingo, 5 de junho de 2011

Contraponto 5489 - "Aprender com as crises, para sair mais fortes"

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05/06/2011


Aprender com as crises, para sair mais fortes

Da Carta Maior - 05 de Junho de 2011

Lula viveu uma crise similar a esta – mesmo se de proporções muito menores – em 2005. Do fantasma do impeachment e das pressões para renunciar a um segundo mandato, saiu para cima e se tornou o presidente mais popular da história brasileira.

Lula se deu conta de que de um labirinto – aceitar as denúncias ou denunciar a intencionalidade da oposição – se sai por cima, rompendo com os círculos viciosos. Naquele momento também o mesmo personagem central desta – um dos centrais daquela – não queria sair, Lula teve que promover sua saída e substituiu-o não por um seguidor dele, mas por alguém que, junto a outros – entre eles centralmente Dilma – recompôs sua equipe, apoiou-se na solidariedade popular e saiu da crise muito mais forte. Aprender com a crise é condição para não repeti-la e para sair mais fortes.

O governo Dilma tem essa oportunidade. Recebeu e aprimora o eixo fundamental do sucesso do governo Lula: o modelo econômico e social. Formou uma equipe mais homogênea, que cuida e desenvolve esse eixo central para consolidá-lo e projetá-lo para o futuro.

A crise não veio daí. Veio de não ter tirado lições da crise de 2005 em relação a fragilidades na equipe, que permite uma nova ofensiva da mídia opositora, explorando essas fragilidades, mesmo em um marco inquestionavelmente mais favorável ao governo. Recompor a equipe nos pontos em que se revelou débil, retomar o debate e a coordenação política para enfrentar os desdobramentos da aprovação do Código Florestal na Câmara e enfrentar outros problemas pendentes – é o caminho para superar a crise e o governo sair mais forte.

Isso permitirá abrir caminho para voltar a mobilizar os setores que mais são afetados pela crise: a militância de esquerda, os movimentos sociais, a juventude, os artistas e intelectuais – mais sensíveis aos problemas que o governo enfrenta. Retomar uma coordenação politica consciente desses problemas, manter uma presença do discurso do governo presente e forte em relação aos problemas a enfrentar, aliando flexibilidade com consciência clara dos objetivos estratégicos centrais. E não voltar a incorrer nos erros que levaram a desgastes desnecessários do governo – desnecessários e superáveis, porque não provem das politicas centrais do governo, mas a escolhas de equipe e incapacidade, até aqui, de enfrentar grandes debates, de que o do Código Florestal é um deles.

O governo Lula soube sair da crise, tornando-se mais forte. Isso faz parte da herança recebida. O governo deve tirar as lições daquela experiência, se quer repetir o caminho virtuoso pelo qual Lula saiu da crise pelas escolhas fundamentais que fez naquele momento. Seu governo nunca mais foi o mesmo. O da Dilma pode retomar, da sua maneira, a mesma forma de sair do círculo vicioso da crise para se tornar mais forte.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político
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quarta-feira, 1 de junho de 2011

Contraponto 5468 - "A crise e as saídas da crise"

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01/06/2011
A crise e as saídas da crise

Do Blog do Emir - 01/06/2011

Emir Sader*

Se a crise é um momento de verdade, porque revela limites e contradições, o governo tem muito para refletir sobre sua primeira crise. Depois de surfar tranquilamente os primeiros meses, apoiado na herança positiva recebida, na vitória político-eleitoral e na maioria parlamentar conseguida, a crise de maio condensou problemas pendentes com novas circunstâncias que, se não enfrentadas de forma decidida, faz com que o governo saia enfraquecido dela e, em projeção futura, possa colocar em risco os avanços conquistados ao longo dos 8 anos do governo Lula. Ou pode sair mais forte, como saiu o governo Lula da crise de 2005. Depende da reação do governo diante dos problemas.

Os movimentos iniciais do governo foram os de buscar as adequações – indispensáveis, mas ainda não encontradas – na política econômica, que permitam superar o circulo vicioso entre elevar ainda mais a taxa de juros real mais alta do mundo ou o descontrole inflacionário. E o de dar continuidade na articulação entre a política econômica e as políticas sociais – o maior sucesso do governo anterior e que promete ter desdobramentos ainda maiores neste.

As crises tinham uma dimensão menor. A do Minc, por exemplo, não foi resolvida, o ministério ficou reduzido à intranscendência, até que seja possível reabrir horizontes melhores para as politicas culturais. Mas não tinha afetado o governo como um todo, embora pudesse haver indícios de formas de reação diante de problemas.

Nesta conjuntura, um problema pendente, que se sabia que tinha um potencial de enfrentamentos muito forte – a reforma do Código Florestal -, que requeria propostas concretas alternativas, coordenação política e mobilização social – desembocou numa derrota não apenas do governo, mas também dos movimentos sociais e do conjunto do campo popular. Resta o embate no Senado e o veto presidencial, apenas para diminuir os retrocessos da versão aprovada, com participação de partidos de esquerda, inclusive na emenda do PMDB, que promove a anistia dos desmatamentos. Mas é preciso consciência de parte do governo e das forças populares que foi um revés para as teses da esquerda, que foi perdida não apenas uma votação, mas uma batalha ideológica, que trouxe como uma de suas consequências, a divisão não apenas da base do governo, mas, muito mais importante, da esquerda e até mesmo do PT. Um dano que não demanda soluções administrativas, mas políticas, articulando alternativas de propostas, discussão intensa com os aliados e coordenação política - não demonstrados até aqui.

As acusações a Palocci coincidiram com essa votação e contribuíram para configurar uma situação de crise política para o governo. Ao deter o cargo mais importante no ministério, centralizando a coordenação política e outras funções anexas, as acusações - no mínimo – afetam duramente a capacidade de coordenação do governo e colocam à prova sua forma de reagir a denúncias – mais além dos objetivos desestabilizadores da mídia opositora – que revelam, pelo menos, comportamentos problemáticos por parte de um ministro importante no governo. Ainda que não se prove ilegalidades, restam sempre questionamentos sobre a ética publica de assessorias enquanto se detêm mandato parlamentar, cargo importante em comissão da Câmara e a eventualidade de informações privilegiadas e influências em setores do governo. A não revelação dos clientes, com a alegação de segredos profissionais, agrava a situação, que no seu conjunto paralisa a capacidade de ação politica do governo, justamente quando ele acumula temas graves na sua agenda – Código Florestal, emissão de MPs, entre outros. Porém, mais grave do que tudo isso, reflete que atitude o governo toma diante de situações que envolvem ética pública e podem definir critérios para todo o mandato.

Outros temas se agregaram a esses eixos da crise – dos problemas reiterados no Minc, passando pelos assassinatos no campo, por problemas no MEC, entre outros – para configurar uma mudança de clima e de conjuntura política. O governo perdeu a iniciativa, que detinha até esse momento, graças, principalmente, à excelência dos programas sociais. Passou à situação de defensiva, de responder a iniciativas opositoras ou a circunstâncias nas quais está fragilizado.

A falta de consciência dos problemas acumulados e dos elementos de fraqueza do governo, que permitiram sua irrupção, ou a falta de consciência, com visões redutivas, que não atingem o cerne das questões, é o pior conselheiro. Qualquer atitude que represente esconder a cabeça na areia, como o camelo, é permitir que as dificuldades atuais se perpetuem e os recuos que o governo está dando, permaneçam no tempo, configurando uma correlação de forças desfavorável para governo e o campo popular.

O governo Dilma não sairá o mesmo da crise. Ou sairá mais fraco ou mais fortalecido. Como ocorreu em 2005, que foi o marco decisivo no governo Lula. A atitude que o governo tomar diante da crise atual – seja no Código, seja em relação a Palocci – vai definir um estilo de governo, uma forma de encarar os interesses públicos e a forma de enfrentar problemas da ordem da ética pública, que o marcará por todo o mandato.

Nunca como agora crise significa oportunidade. Será perdida ou ganha: está nas mãos do governo a decisão.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.

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quinta-feira, 3 de março de 2011

Contraponto 4885 - "Perseguido, por boas razões"

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03/03/2011

Perseguido, por boas razões

Do Blog do Emir - 03/03/2011

Emir Sader*


Há gente que me pergunta como eu me sinto sendo vítima da truculência da direita brasileira. Na realidade, pelo que me lembro, esta é a terceira vez.

A primeira foi durante a ditadura. Buscado pela Oban (aquela para a qual a empresa dos Frias emprestou seus carros para disfarçar de jornalistas os agentes do terrorismo de Estado), casa invadida, mulher detida, biblioteca e álbum de todos destruído, foto nos jornais e nos cartazes da ditadura como buscado por terrorista, execrado pela imprensa. Eu estava na clandestinidade, fui condenado, à revelia, a 4 anos e meio de prisão, depois anistiado.

A segunda, no processo movido pelo Jorge Bornhausen, quando eu lhe respondi com artigo na Carta Maior àquela declaração de que ia “acabar com essa raça por 20 anos”. Ele me moveu processo por injúria, calúnia e difamação, teve o apoio, uma vez mais, do lado da empresa dos Frias, execrado pela imprensa. Foi desatado um amplíssimo movimento de solidariedade, com abaixo assinado encabeçado pelo Chico Buarque, pelo Veríssimo, pelo Antônio Candido, pelo Eduardo Galeano, que recolheu mais de 20 mil assinaturas.

Como espécie de revanchismo por terem perdido as eleições de 2006 – que não estava nas contas deles, nem na dos Frias -, o processo caiu na mãos de um juiz de Santa Catarina, que me condenou a um ano de prisão e perda do meu cargo de professor da Uerj. Como eu era réu primário, porque tinha sido anistiado da condenação anterior, não iria à prisão, mas teria que realizar trabalhos sociais em comunidades. O absurdo não era apenas que eu é que era condenado e não ele – o crime de discriminação é imprescritível, pela Constituição – como não havia o direito de me tirar o cargo de professor de universidade pública, conquistado por concurso. O recurso a meu favor foi aprovado por unanimidade e aí terminou aquele processo.

Agora há esta nova ofensiva da direita, de novo achando que podem me constranger, me calar, me isolar. De novo truculenta, de novo submetido à execração pela, agora, senil e velha mídia, mas a mesma da época da ditadura e do processo do Bornhausen. De novo a empresa dos Frias envolvida, mediante uma armadilha de usar em on o que era uma conversa em off, coisa típica desse jornalismo decadente e imoral. Saio também ileso, moral e politicamente, honrado com todos os apoios que recebo, assim como pela lista – esta sim, execrável, dos que atacam, do outro lado.

A sensação, nas três circunstâncias, é a de que me tornaram vítima “por boas razões”, como dizia o Brecht, porque estou do lado certo, no bom combate, que o que está em jogo não sou eu individualmente, mas causas justas que é preciso defender e a que tantos dedicam também suas vidas na defesa delas. Que a solidariedade imensa e emocionante que recebi nas três ocasiões se dirige às causas às quais dedico o melhor da minha energia e não a mim como pessoa.

Portanto, me sinto bem nessas circunstâncias em que a direita me toma como vítima privilegiada, como que honrado por esse privilégio de ser considerado alguém que os incomoda, que afeta os seus interesses e os seus valores conservadores. De todas elas saí mais forte, com mais apoio, com mais amigos e companheiros, mais convencido de que essas são causas justas – tanto assim, que a direita as combate sempre, com todas suas armas, desde as metralhadoras e os carros da Oban-Folha, até o monopólio, enfraquecido e senil, da imprensa -, que vale a pena jogar a vida por elas.

Emir Sader. Sociólogo e cientista político.
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quarta-feira, 2 de março de 2011

Contraponto 4877 - "Comunicado - Sobre a Casa de Rui Barbosa"

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02/03/2011
Comunicado - Sobre a Casa de Rui Barbosa

Do Blog do Emir - Quarta-Feira, 02 de Março de 2011

Emir Sader*

Consultado sobre a possibilidade de assumir a direção da Fundação Casa de Rui Barbosa, elaborei proposta, expressa no texto “O trabalho intelectual no Brasil de hoje”. No documento proponho que, além das suas funções tradicionais, a Casa passasse a ser um espaço de debate pluralista sobre temas do Brasil contemporâneo, um déficit claro no plano intelectual atual.

Como se poderia esperar, setores que detiveram durante muito tempo o monopólio na formação da opinião pública reagiram com a brutalidade típica da direita brasileira. Paralelamente, o MINC tem assumido posições das quais discordo frontalmente, tornando impossível para mim trabalhar no Ministério, neste contexto.

Dificuldades adicionais, multiplicadas pelos setores da mídia conservadora, se acrescentaram, para tornar inviável que esse projeto pudesse se desenvolver na Casa de Rui Barbosa. Assim, o projeto será desenvolvido em outro espaço público, com todas as atividades enunciadas e com todo o empenho que sempre demonstrei no fortalecimento do pensamento crítico e na oposição ao pensamento único, assumindo com coragem e determinação os desafios que nos deixa o Brasil do Lula e que abre com esperança o Governo da Presidente Dilma.

Rio de Janeiro, 2 de março de 2011
Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.
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segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Contraponto 4859 - "O destino do Brasil"

28/02/2011

O destino do Brasil
Do Blog do Emir - 28/02/2011

Emir Sader*

O Brasil precisa e merece grandes espaços de debate, de reflexão, de trocas de opiniões, de elaboração coletiva. As universidades têm tido um papel, mas não tem sido suficiente. A mídia deixou de ser pluralista, abrigando praticamente só porta vozes com uma única concepção.

Precisamos de centros, de novas publicações, de um clima de efervescência no debate. Confesso que às vezes o fervor das polêmicas não favorece a assimilação dos argumentos alheios. Eu mesmo devo dizer que às vezes me deixo levar por essas polarizações, pelo fervor colocado no debate.

(Toda a entrevista à FSP foi falseada pela editorialização da matéria. Ao invés de primeiro ouvir o entrevistado, com perguntas e respostas, e depois colocar a opinião do jornal, essa mistura, com off, gerou um monstrengo, pelo qual não posso me responsabilizar. As referências, antes de tudo à Ministra da Cultura, mas também ao Gil e ao Caetano, apareceram de forma totalmente deturpada. Não houve intenção nenhuma de desqualificação, seguir polemizando nesses termos é ser vítima desse tipo de matéria, de que todos já fomos vítimas: dizer que disseram que alguém disse. Diz-se, entre outras coisas e se repete no dia seguinte, que eu fui favorável a fuzilamentos em Cuba. Que o jornal mostre as provas, porque é mais uma mentira.)

Não se pode dizer que contamos hoje com interpretações que dêem conta do que o Brasil se tornou, depois de duas décadas de grandes transformações. A visão amplamente difundida pela mídia se revelou não menos amplamente equivocada, a ponto que a vítima privilegiada do seus ataques – Lula – saiu do governo como o presidente mais popular da história do país, quem mais logrou unificar o Brasil, tendo apenas 4% de rejeição – se supõe que seja a cifra lograda pela mídia.

Por outro lado, a academia tampouco pode exibir um leque de interpretações que permitam suprir esses vazios. Os estudos avançam, se multiplicam, mas é como se as grandes abordagens, as grandes interpretações se mostrassem mais complexas e difíceis de abordar.

A imprensa brasileira nunca foi um espaço suficientemente pluralista para abrigar esses debates, mas em alguns momentos – particularmente na passagem da ditadura à democracia – se aproximou de ser um espaço que abrigou uma parte razoável dos progatonistas da vida brasileira. O alinhamento em bloco contra o governo Lula foi fatal para a imprensa, que perdeu interesse, objetividade na informação e espaços de reflexão antagônica.

Quando novas gerações se incorporam aos debates, mediante as distintas formas da nova mídia, ampliam como nunca no Brasil a possibilidade de participação de um número incalculável de pessoas, de setores e regiões distintos, o que permite a democratização das discussões de forma inaudita. Não se concebem mais conferências, mesas redondas, seminários, que não sejam transmitidos por internet on line, para que um número cem ou mil vezes maior de pessoas possam participar, intervir com pessoas, para que a gravação possa ficar acessível, ser vista posteriormente ou ser gravada.

Entramos na segunda década de um século que promete ser ímpar para o Brasil e a América Latina. Os processos históricos têm avançado mais rapidamente que a reflexão e as propostas conscientes e globais sobre seus destinos. Existem muitas interrogações de cuja resposta depende o tipo de sociedade que vamos ter ao final da primeira metade do século. É um desafio aberto, mas ao nosso alcance, contanto que preenchamos a distância entre a prática e a teoria, os processos reais, a consciência deles.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.

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domingo, 27 de fevereiro de 2011

Contraponto 4847 - "O Trabalho intelectual no Brasil de hoje"

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27/02/2011
O Trabalho intelectual no Brasil de hoje

Do Blog do Emir - 27/02/2011

Emir Sader*

Nomeado, mas ainda não empossado para dirigir a Fundação da Casa de Rui Barbosa, eu não queria seguir alimentando mais entrevistas, declarações, palavras, enfim, depois de ter sugerido as ideias inicias com que pretendemos nortear o trabalho na direção da Casa.

No entanto, uma vez instaurado um debate saudável – um primeiro objetivo, o de suscitar o debate sobre a função de um espaço cultural público no momento que vive o país -, com as inevitáveis e bem vindas reações e as negativas manipulações ou edições unilaterais de matérias, vale a pena voltar ao assunto, com um breve texto de responsabilidade totalmente minha.

Antes de tudo, para reafirmar o respeito por todo o extraordinário trabalho que a FCRB vem desenvolvendo, seja na conservação do acervo, na pesquisa, na promoção de eventos e em tantas outras atividades, que o consagrou como um espaço de referência nessas atividades, em que abriga alguns dos melhores pesquisadores das distintas especialidades a que a Casa se dedica. Isto nunca esteve em questão. Trabalharemos, em estreita colaboração com o MINC e a Ministra Ana de Hollanda, assim como com outras instâncias do governo que já manifestaram interesse concreto em articular suas atividades considerando a Casa como um espaço de reflexão de todas as Secretarias do MINC, assim de outros Ministérios do governo – como o MCT, o Ministério da Saúde, de Comunicação, da Educação, do Meio Ambiente, dos Esportes, as Secretarias de Políticas para as Mulheres, dos Direitos Humanos, de Igualdade Racial, dos Esportes. A Casa buscará ser, além de todas as tarefas que já cumprem de forma efetiva, um espaço mais integrado ao MINC e ao governo federal, instâncias às quais pertence institucionalmente.

Essas demandas, junto à necessidade de incentivar debates que ajudem a compreensão do Brasil contemporâneo – além daqueles que a Casa já desenvolve – nos levam a programar atividades específicas, dirigidas a decifrar as imensas transformações que o Brasil sofreu nas duas últimas décadas. É uma lacuna que já apontava a conversa que tivemos com a atual Presidenta Dilma, quando Marco Aurélio Garcia e eu fazíamos uma entrevista para o livro "O Brasil, entre o passado e o futuro" (Editoras Perseu Abramo, organizado por Marco e eu), quando constatávamos como faz falta hoje ao Brasil um novo impulso teórico e cultural, que sempre acompanhou os momentos de grandes transformações politicas do país.

Recordávamos como isso ocorreu nos anos 30, concomitantemente ao primeiro governo do Getúlio, que dava origem ao Estado nacional contemporâneo, com obras como as de Caio Prado Jr., Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Anísio Teixeira, entre tantos outros. Realizada um pouco antes, mas estendendo sua influência por todas as décadas posteriores, a Semana de Arte Moderna condensou todas as grandes correntes artísticas renovadoras que povoam até hoje a arte brasileira.

Na virada dos anos 50 para os 60 do século XX, juntos aos acelerados processos de urbanização e de industrialização, com o fortalecimento de classes e forças sociais fundamentais no processo de profunda democratização por que passava o país, o desenvolvimento de obras como de Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Werneck Sodré, todo o grupo do ISEB – sem querer mencionar a todos -, enquanto a bossa nova, o cinema novo, o boom e a renovação criativa no teatro brasileiro, assim como nas artes plásticas, agora a presença exponencial de Oscar Niemeyer, Burle Marx, para referir-nos apenas a alguns dos arquitetos e paisagistas. A lista e as atividades são extensas, na maior concentração de arte criativa e original que o Brasil conseguiu produzir em um espaço relativamente curto de tempo. (Certamente se podem acrescentar muito mais nomes e atividades, estas aparecem aqui apenas a titulo de exemplos.)

Não há dúvidas hoje de que o Brasil vive, ao longo da primeira década deste século, que tudo indica que se projetará pelo menos por esta década, um outro período de grandes transformações, que pode ser comparado com os mencionados anteriores, com suas particularidades, tanto na forma dessas transformações, como nos processos políticos que as levam adiante. A consolidação de um modelo econômico intrinsecamente associado à distribuição de renda faz com que o Brasil tenha começado a atacar o principal problema que o país arrasta ao longo dos seus séculos de história: a desigualdade social, que fez com que fôssemos o país mais desigual da América Latina, que por sua vez é o continente mais desigual do mundo.

Pela primeira vez na nossa história estamos conseguindo diminuir de forma significativa a desigualdade no Brasil, e em proporções que nos permitem dizer que a própria estrutura social a que estávamos acostumados – uma pirâmide bem larga na base, que ia se afinando conforme se subia na estrutura social, como um filtro que permitia que poucos pudessem estar no meio e muito menos ainda no topo da pirâmide – mudou radicalmente de figura.

Além de múltiplos outros fenômenos, que projetaram muito mais e de forma distinta o Brasil no mundo, aliado preferencialmente aos países vizinhos da América Latina e aos do Sul do Mundo, que representamos mais de 85% da população do mundo, mas contamos com percentual brutalmente inferior da riqueza mundial. Por isso o lugar do Brasil como potência emergente, que representa uma nova forma de encarar os problemas econômicos, sociais, políticos, energéticos, ambientais, educacionais, culturais, dos direitos das minorias politicas, entre outros, mudou, tendo sido dirigido na primeira fase desse processo por um líder politico de origem no movimento sindical de luta contra a ditadura, seguido pela primeira mulher Presidenta do Brasil, que esteve diretamente vinculada à resistência àquela mesma ditadura – passou a viver o período de sua maior projeção regional e mundial.

Muitos outros aspectos dessas profundas e extensas transformações – a principal das quais, ao diminuir substancialmente as desigualdades, passou a governar para todos no maior mecanismo de inclusão social que havíamos conhecido – podem ser mencionados, para ressaltar a transcendência do momento histórico que passamos a viver na entrada do novo século.

No entanto, sem subestimar a vigorosa e extensa produção intelectual que a vida acadêmica brasileira e outras instâncias inovadoras passaram a produzir nas últimas décadas, é necessário constatar que as transformações que o país vem vivendo, tem se dado em ritmo mais avançado do que o ritmo do avanço da capacidade de produção teórica de dar conta das profundas, diversificadas e novas transformações que o Brasil passou a viver, especialmente nas duas últimas décadas.

O próprio debate eleitoral refletiu isso. Por um lado, a grande maioria dos meios de comunicação, com uma visão sistematicamente crítica do desempenho do governo Lula – que acreditava que já em 2005 o governo estava morto ou ferido de morte, para dar apenas um exemplo da incapacidade de se situar diante das transformações já em curso naquele momento – e que, ao final desse governo, teve que conviver com um Presidente com 87% de apoio e apenas 4% de rejeição. O que dava conta, sinteticamente, como o ponto de vista amplamente majoritário na mídia – em uma mídia que havia reduzido seu pluralismo a espaços residuais – se chocava com o Brasil realmente existente, que havia entrado em um período da maior unificação nacional, de forma consensual, em torno de um projeto protagonizado por esse governo atacado por escrito, nas rádios e nas TVs, sistematicamente.

Por outro lado, é preciso dizer também – como referido em "O Brasil entre passado e o futuro" – que os grandes avanços do governo Lula foram feitos muito mais de forma empírica, pragmática, baseados na extraordinária intuição política do Lula, com ensaios e erros, com exploração de espaços novos e mais fáceis de avançar – como a prioridade das políticas sociais ao invés do ajuste fiscal, da integração regional, ao invés dos Tratados de Livre Comércio com os EUA -, mas sem uma teorização dos passos que se estavam dando, de reflexões estratégicas sobre as direções em que se caminhava, com seu potencial, seus limites, suas contradições.

O certo é que temos que nos orgulhar de todas essas transformações, que estão fazendo do Brasil um país menos injusto, mas como intelectuais, como artistas, temos que constatar que não estamos até aqui correspondendo, com a formulação de grandes debates sobre os caminhos que o Brasil está cruzando, seus potenciais, suas contradições, seus limites, suas novas necessidades. Um debate obrigatoriamente crítico, contraditório, que tem que dar lugar para todas as vozes, uma discussão pluralista, necessariamente multidisciplinar, para abordar todas as esferas e dimensões afetadas pelas transformações em um país tão amplo e contraditório como o nosso.

O mandato que pretendemos levar a cabo na Casa de Rui Barbosa não se choca em nada nem com as atividades que vêm sendo desenvolvidas com grande empenho e rigor na Casa, assim como com os objetivos tradicionais que a trajetória de um personagem ímpar na nossa história, como estadista, homem de visão ampla, de ideológica pluralista, como Rui Barbosa, projetou sobre a nossa história e nos deixou exemplos de formas de abordagens, para sua época de temas contemporâneos candentes, tanto de politica interna, como de defesa dos interesses do Brasil no mundo.

Buscaremos fomentar grandes conferências – mensais ou mesmo quinzenais – com participação dos grandes pensadores contemporâneos que têm, de uma ou de forma, buscado decifrar os enigmas representados pelas novas circunstâncias históricas que vivemos ou pelas tradicionais, revestidas de novas roupagens. Não há limite, nem no número, nem nas correntes dos que serão convidados pela Casa – indo de Marilena Chauí a José Murilo de Carvalho, de José Miguel Wisnik a Caetano Veloso, de Tania Bacelar a Bresser Pereira, de Carlos Nelson Coutinho a Maria Rita Kehl, de José Luis Fiori a Chico de Oliveira (e a lista é necessariamente grande e, ainda assim redutiva). Chamaremos para reuniões periódicas todos os intelectuais e artistas que se disponham a participar, para ouvi-los, escutar suas propostas, promover intercâmbios de ideias sobre os rumos das atividades da Casa. Ao mesmo tempo abriremos um espaço de consulta na página da Casa, para que sugestões de nomes, temas e modalidades de atividade, sejam encaminhados.

Essas conferências, assim como todas as outras que viermos a realizar – seminários sobre Cultura e Politicas Culturais, sobre Propriedade Intelectual, entre outros – serão transmitidas ao vivo pela internet, com possibilidade de participação e formulação de perguntas à distância, com os vídeos sendo arquivados na página da FCRB para serem vistos posteriormente e gravados, se assim se desejar.

Está claro que pretendemos seguir cumprindo todas as atividades atuais da Casa, reforçando-as. Ao buscar dispor de melhores condições de trabalho e de espaço para os acervos, necessariamente temos que ter, como um esforço conjunto da FCRB, junto com o MINC e outras instâncias do Governo Federal que já têm se mostrado sensíveis, o aumento de pessoal, seja mediante novos concursos, seja mais bolsas e outras modalidades de expandir nossa capacidade de trabalho.

Vários outros projetos já foram propostos à Casa – como, em coordenação com a Biblioteca Nacional, desenvolver um amplo trabalho coordenado para a participação do Brasil como país convidado da Feria de Frankfurt de 2013, e realizar um seminário no curto prazo, junto com a Secretaria dos Direitos Humanos, sobre experiências similares à Comissão da Verdade, em países vizinhos, entre outros. Buscaremos as formas e meios para executar esses projetos, o que impossível sem o aumento e a melhoria da capacidade de ação da Casa.

A FCRB e nenhum órgão publico produzem cultura. Eles devem fomentá-la, incentivá-la, gerar as melhores condições de sua produção e difusão. Como disse a Presidenta Dilma na referida entrevista, nós não acendemos foguinhos, mas vamos assoprar a favor todos os que existam ou apareçam. Modestamente a Casa pretende se inserir nessa dinâmica, plural e criativa, de apoiar o surgimento e o fortalecimento das distintas formas de expressão intelectual e artística que nos tornem mais contemporâneos deste momento extraordinário que o Brasil vive.

Em momentos anteriores, o pensamento crítico e os movimentos artísticos de vanguarda apontavam os caminhos de futuro para o Brasil. Hoje devemos dizer que a História avança mais rápido que nossa capacidade de compreensão e de criação culturais correlatas a seu ritmo e a seus novos itinerários. O Brasil tem como um dos seus melhores patrimônios seus artistas e seus intelectuais. Trabalhemos para que a compreensão teórica do Brasil e a criação artística do século XXI, se fortaleçam ainda mais. Nós sopraremos, com todas as forças, todas as milhares de brasinhas que existam e apareçam.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político

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domingo, 6 de fevereiro de 2011

Contraponto 4642 - "O FSM 10 anos depois"

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06/02/2011

O FSM 10 anos depois

Do Blog do Miro - sábado, 5 de fevereiro de 2011

Altamiro Borges
Reproduzo artigo do sociólogo Emir Sader, publicado no sítio da Alai:

Dez anos depois da sua primeira edição, o FSM volta à Africa, em um cenário mundial muito diferente daquele de 2001. Naquele momento a hegemonia do modelo neoliberal ainda era grande, a economia mundial não havia entrado em crise e, principalmente, a América Latina ainda era dominada por governos neoliberais – naquele momento com a exceção dos da Venezuela e de Cuba.

Passada uma década, o mundo mudou. A crise econômica, nascida no centro do capitalismo, levou as maiores potencias à estagnação, da qual ainda não conseguem sair, enquanto os países do Sul do mundo, que privilegiam a integração regional e não os TLCs com os EUA, já a superaram e voltaram a crescer. O modelo neoliberal perdeu legitimidade, embora siga dominante, mesmo se com afirmações em contrario e com adequações.

Apesar disso tudo, por fraqueza de alternativas à esquerda, o mundo se tornou mais conservador ainda do que há uma década. Mesmo a vitória de Obama e o fim desprestigiado de Bush, não alteraram essa tendência. A Europa de Merkel, Berlusconi, Sarkozy, Cameron, das agudas crises com os respectivos pacotes de FMI em Portugal, Grécia, Irlanda, Portugal, vira ainda mais à direita.

A grande exceção é a América Latina, não por acaso o continente da sede original do FSM. Nesses dez anos, concomitante à realização dos FSMs, o continente foi elegendo, um atrás do outro, presidentes com compromissos de construção de modelos alternativos ao neoliberalismo que derrotavam nas urnas. Nunca o continente teve tantos governos afinados entre si e na linha posneoliberal de prioridade dos processos de integração regional no lugar dos TLCs com os EUA e prioridade das politicas sociais no lugar dos ajustes fiscais.

No FSM anterior, em Belém, a presença mais significativa foi de cinco presidentes, todos latino-americanos, afirmando seu compromisso com a construção de um outro possível. Todos marginais da politica tradicional: um arcebispo ligado ao movimento camponês paraguaio, um dirigente indígena boliviano, um intelectual do pensamento critico equatoriano, um líder militar nacionalista venezuelano, um líder sindical brasileiro.

Os cinco representam um movimento mais amplo – que inclui também a Argentina, o Uruguai, El Salvador – que constrói os únicos processos de integração – Mercosul, Unasul, Conselho Sulamericano de Defesa, Banco do Sul, Alba, União dos Povos Latinoamericanos – que fez com que esses países tenham avançado significativa na sua recuperação econômica, na diminuição das desigualdades sociais, na extensão dos direitos sociais a toda sua população, na afirmação de politica externas soberanas. A América Latina tornou-se a única região do mundo em que governos se identificam com o FSM e avançam na superação do neoliberalismo.

Propostas do FSM conquistaram espaços nesta década, entre elas talvez nenhuma como o software livre, como instrumento do direito universal á comunicação. Alguns governos adotaram modalidades de regulação sobre a livre circulação do capital financeiro. A recuperação dos recursos naturais privatizados – entre eles a água – foi realizada por governos latino-americanos. A ideia de que o essencial não tem preço, generalizando direitos a todos, tem ido igualmente praticada por governos posneoliberais na América Latina.

Mas, infelizmente, a crise econômica geral não foi capitalizada por alternativas progressistas em outras regiões – especialmente na Europa. Outros temas do FSM tampouco conseguiram avanços, por falta de forças politicas, com arraigo popular e capacidade de liderança, que pudessem transforma-las em politicas concretas.

Onde isso foi possível, onde se deram avanços reais na construção do outro mundo possível, foi quando a força social – de massas – e ideológica – de propostas – conseguiu se transformar em força política concreta, disputar o poder do Estado e, a partir daí, colocar em prática governos de superação do neoliberalismo. Em distintos graus, isso se está dando na Bolívia, no Brasil, na Argentina, na Venezuela, no Uruguai, no Equador. Porque medidas que superem o neoliberalismo, como a recuperação da capacidade do Estado para induzir o crescimento econômico, para garantir e estender direitos sociais, para defender a soberania nacional, para regular a circulação do capital financeiro, entre outras medidas.

Por isso o outro mundo possível, que tem necessariamente que transcender da esfera social para a politica, encontra nos governos posneoliberais da América LatIna seus pontos mais avançados. Enquanto que forças que permanecem auto-recluídas na resistência social, se enfraqueceram, perderam transcendência ou até mesmo desapareceram, sem conseguir colocar em prática concretamente formas de superação do neoliberalismo.

O FSM do Senegal se dá nesse marco politico geral. No anterior, há dois anos, predominou uma certa euforia ingênua e espontaneista, de que o neoliberalismo – e até mesmo o capitalismo – estariam chegando ao seu final. Estes dois anos reforçaram o argumento de que, sem construção de forças politicas capazes de dirigir processos concretos, que passam pelos Estados – os existentes ou os refundados -, não haverá avanços ou pode até mesmo acontecer retrocessos.

O outro mundo possível está sendo construído concretamente na América Latina, mediante diferentes modalidades de governos posneoliberais, que devem consistir na referência mais rica – nas suas realizações, no seu potencial e também nos seus impasses – para avançar nos ideais que o FSM representou há 10 anos. Mas que, se não superar ele mesmo os limites que se autoimpôs, ameaça seguir girando em falso, dissociado dos processo realmente existentes de construção do outro mundo possível.

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Postado por Miro às 21:56
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Contraponto 4236 - "Um Estado para governar para todos"

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16/12/2010

Um Estado para governar para todos

Blog do Emir - 16/12/2010

Emir Sader*

O Estado sintetiza, de alguma maneira, a sociedade que temos. O político condensa, sintetiza, o conjunto das relações econômicas, sociais e culturais – na visão de Marx.

O Estado brasileiro, antes de 1930, era literalmente o Estado das oligarquias primário-exportadoras: dos setores que produziam para a exportação e dos que comercializavam essa produção e importavam das metrópoles para o consumo das elites. Era um Estado de uma ínfima minoria, governando para o interesse dessa ínfima minoria. A grande maioria da população nem era contemplada pelo Estado, nem se reconhecia nele.

A primeira grande transformação do Estado brasileiro se deu a partir de 1930. O Estado começou a assumir responsabilidades sociais, contemplando a setores populares como cidadãos – sujeitos de direitos -, passou a incentivar a economia voltada para o mercado interno, permitiu o inicio do processo de sindicalização dos trabalhadores, formulou uma ideologia nacional e começou a aparecer como o Estado de todos os brasileiros.

Esse Estado, correlato aos processos de industrialização, de urbanização, de sindicalização, de democratização social e politica, teve um freio radical com o golpe de 1964. A ditadura militar se impôs como governo das elites dominantes contra os setores populares. Além da brutal repressão contra o campo popular e tudo o que tivesse que ver com democracia, impôs o arrocho salarial e a intervenção em todos os sindicatos, promovendo uma lua-de-mel para as grandes empresas nacionais e estrangeiras. Crescia a economia, mas não se distribuía renda, se concentrava a riqueza e se multiplicava a desigualdade e a exclusão social. O Estado tinha se tornado, de novo, um instrumento exclusiva das classes dominantes.

A democratização permitiu a recuperação de muitos dos direitos democráticos abolidos pela ditadura, permitindo uma nova identificação da população com o Estado, por meio da democracia. Mas esta coincidiu com a explosão da crise da dívida – uma divida alimentada criminosamente pela ditadura militar, que endividou o país sem benefícios para a massa da população e a juros flutuantes. Com a elevação brutal da taxa de juros, a economia do país quebrou, foi interrompido o processo de desenvolvimento econômico que, de uma ou outra forma, tinha se estendido desde 1930. Se desmoralizava a democracia, porque não promovia o bem estar da população e postergava a eleição direta do presidente, até que sua desmoralização levou à eleição de algum provindo da ditadura pouco tempo depois do fim desta, como presidente.

Collor, Itamar e FHC representam a era neoliberal no Brasil, em que o Estado foi reduzido às suas mínimas expressões, a economia foi desregulamentada, o mercado interno aberto aos capitais externos, as relações de trabalho foram precarizadas. O Estado tornou-se o Estado das grandes corporações nacionais e internacionais, sob o reino do mercado e da brutal reconcentração de renda que ele produziu.

O Estado voltou a ser desmoralizado nos discursos de Collor, de FHC, nos meios de comunicação, como inútil, negativo, que arrecada impostos tomando dinheiro dos cidadãos, que é ineficaz, burocrático, que prejudica o funcionamento dinâmico da economia. Em contraposição, se fazia a apologia do mercado, a quem foi entregue valioso patrimônio publico sob a forma das privatizações, deixando circular livremente o capital, para dentro e para fora do país, diminuindo ainda mais a presença do Estado nas politicas sociais. O Estado se afirmava, mais ainda do que no passado, como instrumento das elites do país, contra os interesses nacionais e populares.

Nos últimos anos o governo foi recuperando o prestigio do Estado. Os impostos foram sendo devolvidos à cidadania por intermédio das politicas sociais, pela melhoria do atendimento da população, extensão da educação publica, melhoria relativa da saúde publica. O Estado se responsabilizou por enfrentar a crise, impedindo que produzisse aqui – como em muitos lugares – uma recessão profunda e prolongada.

Mas tudo isso foi feito na contramão de um Estado que tinha sido feito para não agir, para deixar que o mercado ocupasse todos os espaços. Um Estado burocratizado, adaptado às irregularidades e corrupções, nada transparente, feito para manter a sociedade e o poder como eles são, incapaz de promover suas transformações democráticas.

Em primeiro lugar, o espírito público, a ideia de que não são funcionamentos do Estado, remunerados pelo Estado, mas são servidores públicos, remunerados com os impostos da cidadania e que se devem a ela, tanto na prestação de serviços, como no respeito às leis e normas.

Em segundo lugar, que ocupam cargos por concursos públicos, a forma mais democrática de preenchimento de cargos. Que devem prestar contas periodicamente à cidadania do cumprimento das funções que lhes são assignadas. Que devem ter plano de cargos e salários e avaliação permanente do seu desempenho.

Em terceiro lugar, deve haver transparência absoluta de quem financia o funcionamento do Estado e a quem o Estado transfere os recursos arrecadados. Hoje a estrutura tributaria é muito injusta, recaindo o essencial sobre os mais pobres, com o Estado transferindo uma parte do que arrecada para o capital financeiro, por meio do pagamento das dividas do Estado. O Orçamento Participativo é um instrumento essencial ao caráter púbico e democrático do Estado. Suas formas de existência tem que ser adequadas ao funcionamento eficiente do aparelho do Estado, mas tem que ser transparentes e ser controladas pela cidadania.

O Estado tem que governar para toda a população, tendo neste critério o filtro fundamental das suas decisões. Para que isso ocorra, a cidadania tem que ter mecanismos de informação – que podem ser via internet – e de discussão e controle da atuação dos governos. Os mecanismos de ratificação dos mandatos são uma das formas desse controle, quer permitem atualizar a legitimidade dos governos como produto da avaliação do seu desempenho.

Para que possa haver uma relação democrática e transparente entre governantes e governados, é preciso democratizar radicalmente os meios de comunicação, para que deixem de expressar um setor apenas – claramente minoritário hoje – da população, para propiciar informação minimamente fidedigna, espaços de debate que contem com opiniões que expressem de forma pluralista o que pensa a cidadania no seu conjunto e não apenas a minoria. Para isso é necessário uma imprensa pública – estatal e não estatal – que não seja financiada pelos grandes capitais privados – como acontece atualmente – e que amarra os interesses dessa mídia com os interesses dos mais ricos e poderosos.

Finamente, é necessário terminar com o analfabetismo e com o analfabetismo funcional – que somam a cerca de um terço da população – para que seja possível a informação e o debate generalizados por toda a população do país.

Consolidar, estender e aprofundar um governo para todos requer um Estado adaptado aos interesses das grandes maiorias do país, que demanda portanto profundas transformações – que podem ser obtidas mediante a convocação de uma Assembleia Constituinte autônoma, como a anunciada por Lula e por Dilma na recente campanha eleitoral.

*Emir Sader. Sociólogo e cientista político.
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