De certo ponto de vista, a eleição presidencial que ora se encerra não trouxe tantas novidades ao panorama político nacional.
De um lado, seguir num rumo já traçado, com ajustes de percurso. Do 
outro, discurso “mudancista” que não significa, rigorosamente, mudança 
alguma: remoção do “malfeito”, ampliação do “bem feito” e continuação do
 “muito bem feito”.
As redes sociais ferveram, mais do 
que os próprios partidos, confirmando uma tendência das últimas 
eleições. Nelas se deram alguns importantes enfrentamentos, remetendo em
 alguma medida ao clássico conflito político entre os mais 
conservadores, de um lado, flertando abertamente com uma direita 
raivosa, e os menos conservadores, do outro, abrigando naturalmente os 
setores progressistas da sociedade.
Não que a política brasileira ainda se dê exatamente nos quadros do 
populismo de outrora. Mas o que tornou possível a emergência do fenômeno
 populista encontra-se ainda hoje presente, a saber, uma enorme e abjeta
 desigualdade social.
Nem mesmo os folclóricos “coxinhas” representaram, rigorosamente, 
algo inédito. Oligofrênicos por formação e opção, eles já haviam marcado
 presença nos acontecimentos de 1964, seja cerrando fileiras com a TFP 
nas famosas marchas, seja despejando sem dó nem piedade em ouvidos 
alheios as teses do IPES, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, 
seja ainda vociferando contra populistas e trabalhistas as diatribes de 
algum artiguete ou editorial mais fresquinho.
Talvez a maior novidade dessas eleições tenha sido o aparecimento em 
número impressionante, para seus padrões, de algo com até então pouca 
tradição e densidade cultural por estas bandas: os jovens neoliberais 
brasileiros.
Eles inclusive foram às ruas, em um ou outro momento, para fazer coro
 com os que gritavam palavras de ordem contra a “presidente terrorista”,
 o “partido que está afundando o Brasil” e os “regimes comunistas de 
Cuba e Venezuela”.
Mas as ruas não são seu ambiente preferido. É mais fácil encontrá-los
 nas faculdades (públicas e privadas), nas empresas (normalmente em 
cargos de gerência, se de pouca sorte, ou de direção, se assim aprouver 
aos pais ou parentes, quando proprietários) e até em gabinetes de 
agentes públicos (prefeitos, secretários e governadores).
Sua atuação mais engajada deu-se nas redes sociais. Era comum vê-los 
“trolando” em blogs e sítios considerados progressistas ou esquerdistas,
 normalmente com identificações (“fotinhos”) que remetiam a instituições
 ou teóricos vinculados ao (neo) liberalismo.
Egressos de “cursinhos walita”, repetiram a torto e a direito um 
jargão econômico próprio das escolas (neo)liberais, convictos de que sua
 profissão de fé lhes garantia um certificado de cientificidade 
absoluta. Membros zelosos de um credo que era a grande modinha do século
 XIX, dispensavam-se de apresentar demonstrações convincentes para seus 
argumentos, talvez por achá-los por demais evidentes.
Assim como os grandes patriarcas da sua religião haviam feito no 
passado, se os eventos da vida social revelavam incongruências com a 
teoria, culpavam a impaciência humana pela não chegada de um futuro 
radiante; um futuro sempre hipostasiado, vale lembrar, mas seguramente 
redentor.
O neoliberalismo não é nenhum recém-nascido. Ele surgiu como um 
movimento teórico, político e ideológico de contestação frontal e 
radical às sociedades do capitalismo avançado do segundo pós-guerra, 
marcadas por intervenção estatal na economia, políticas redistributivas e
 alguma harmonização das relações entre classes, tudo isso num contexto 
maior de crescimento econômico e redução das desigualdades sociais. O 
Estado do Bem-estar Social é a expressão máxima desse período, os “anos 
dourados” do capitalismo (1945-1973).
Seu “manifesto de lançamento” é a obra “O Caminho da Servidão”, de 
Friedrich Hayek, publicado na Inglaterra, em 1944. Hayek era austríaco 
de nascimento e migrou para a Inglaterra, em 1931, aceitando o convite 
que lhe fora feito por Lionel Robins para lecionar na London School of 
Economics e, desse modo, fortalecer as barreiras liberais contra as 
investidas das teorias mais favoráveis à intervenção do Estado na 
economia.
A Grande Depressão mostrava então todo seu horror e o tiro de 
misericórdia na teoria econômica liberal viria pouco depois, com o 
surgimento e rápida ascensão do keynesianismo. De fato, A Teoria Geral 
do Emprego, do Juro e da Moeda, de John Maynard Keynes, publicada em 
1936, oferecia respostas muito mais críveis e passíveis de aplicação 
relativamente aos graves problemas econômicos e sociais da época.
  
Hayek teve a perseverança típica dos que acatam uma derrota sem, 
contudo, aceitá-la como eterna. Incapaz de vencer Keynes em campo aberto
 do “capitalismo organizado” e de um Welfare State já em formação, 
tratou de organizar uma aguerrida resistência. Convocou, em 1947, para a
 estação suíça de Mont Pèlerin, sob generosos patrocínios de empresários
 abastados, um encontro de notáveis intelectuais de ambos os lados do 
Atlântico, todos inimigos declarados do Estado social europeu e do New 
Deal norte- americano.
Além do próprio anfitrião, estiveram lá homens como Karl Popper 
(notabilizado por seus vitupérios contra Hegel em “A Sociedade Aberta e 
seus Inimigos”), Milton Friedman (que viria a se tornar bastante 
conhecido não só dos norte-americanos, com seu “Capitalismo e 
Liberdade”, como também dos latino-americanos, pela formação de 
sucessivas levas de economistas, os chamados Chicago boys) e ninguém 
menos que Ludwig von Mises, antigo mentor do próprio Hayek e 
provavelmente o mais duro e intransigente liberal do século XX.
Desse encontro resultaria a criação da Sociedade de Mont Pèlerin, 
espécie de seita neoliberal altamente organizada e ramificada, com a 
missão de promover o combate sem tréguas ao intervencionismo, às 
políticas sociais e ao próprio caráter “organizado” do capitalismo. Se 
os socialistas já contavam há décadas com algumas internacionais, nascia
 naquele momento a Internacional Liberal. Hayek foi escolhido pelos seus
 pares como seu primeiro presidente, e “reinou” absoluto entre 1947 e 
1961.
Sob sua batuta, a organização recém-criada dedicar-se-ia 
sistematicamente a promover encontros periódicos e, sobretudo, exercer 
influência sobre governos, burocratas, intelectuais em geral e a própria
 opinião pública.
Mais do que isso, a Sociedade de Mont Pèlerin viria a servir de 
“espelho” para diversos think tanks com a mesma matriz ideológica, 
criados em profusão a partir dos anos 1950, sobretudo no eixo 
anglo-saxônico do capitalismo. Por ironia, e não sem contradição, esse 
movimento de resistência neoliberal confirmaria, por analogia, uma 
máxima de Karl Polanyi em sua obra “A Grande Transformação”: enquanto o 
keynesianismo e o intervencionismo foram medidas práticas, adotadas 
pelos governos para conter a Grande Crise e retirar a economia e a 
sociedade da prostração, o neoliberalismo foi organizado e planejado.
A desregulamentação das economias e a consequente libertação do 
grande capital financeiro das amarras estatais, a partir dos anos 1970, 
minaram a continuidade virtuosa das políticas keynesianas e 
redistributivas. Posteriormente, o fim da Guerra Fria, com a dissolução 
do bloco soviético, concedeu ao neoliberalismo um caráter triunfalista e
 a chance de uma expansão inaudita.
Nesse contexto totalmente reformulado, o keynesianismo, a 
social-democracia clássica e o próprio Welfare State não foram páreos 
para os gurus neoliberais, Hayek à frente, seguido de Friedman.
Em seu “Institutos Liberais e Neoliberalismo no Brasil da Nova 
República”, Denise Gros descreve e analisa a teia de ligações entre os 
diversos think tanks liberais espalhados pelo mundo, bem como seus 
vínculos estreitos com grandes corporações e fundações privadas, não por
 acaso pródigas nas suas doações a esses organismos.
No Brasil, ao desembarque dessas instituições seguiu-se imediatamente
 a escolha da matriz (neo)liberal específica como eixo estruturante de 
ações, feita por seus mantenedores. O fato de que tal escolha tenha 
recaído sobre a chamada Escola Austríaca de Economia, reconhecidamente 
intransigente e avessa a qualquer igualdade produzida por intervenção 
estatal, por menor que fosse, é reveladora da natureza da direita 
empresarial nacional.
Reacionários como Mises, um dos grandes nomes dessa mesma escola e 
notabilizado por sua saudação ao fascismo europeu nos anos 1920, 
tiveram, enfim, seu momento de acolhida em terras tropicais.
Um debate entre o político Ciro Gomes e Rodrigo Constantino, um nome 
conhecido dos “cursinhos walita” neoliberais, já dava mostras do que a 
sociedade brasileira deveria aguardar. Acossado pelo ex-ministro sobre a
 existência factual de cartéis, oligopólios e mesmo monopólios que 
distorcem a “racionalidade” do sacrossanto mercado, o anedótico 
neoliberal saiu-se à la Mises: arguiu a célebre “soberania do 
consumidor”.
Teoria pobre, miserável intérprete. De todo modo, o recurso a Mises, 
desajustado spenceriano vivendo em pleno século XX, fornecia preciosa 
chave: o neoliberalismo tupiniquim já não se processava tão somente em 
cultos de determinadas “seitas”; aparecia publicamente, desavergonhado.
No fundo, no fundo, o neoliberalismo parece despertar ambiguidades, 
mesmo em seus oponentes. Ao mesmo tempo em que deve ser levado muito a 
sério, especialmente por suas deletérias consequências para as 
sociedades que, inadvertidamente ou não, o adotam, não deixa de ser 
risível enquanto pretenso campo do conhecimento.
A taxativa sentença “não há alternativa”, proferida pela 
confessadamente hayekiana Margaret Thatcher, contém um misto de cinismo e
 totalitarismo. Cinismo por razões óbvias, uma vez que é negada por 
todos os meios às classes subordinadas a chance de organizarem-se para 
resistir à investida neoliberal.
E totalitarismo porque, uma vez implantado o neoliberalismo, há uma 
tendência implacável para que toda e qualquer dimensão da vida social 
seja capturada por sua lógica estritamente mercantil. Espécie de versão 
tragicômica da atualidade mundial, o liberalismo revisitado das últimas 
décadas é o espírito deste tempo, a ideologia por excelência da 
acumulação capitalista mais brutal, geradora de imenso rastro de 
iniquidades sociais
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