19/02/2011
Marco regulatório da comunicação: ainda a propriedade cruzada
Carta Maior - 19/02/2011
A resposta do ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, sobre o tema da propriedade cruzada não deixa dúvida de que as interpretações acerca da posição do governo, veiculadas tanto pelo Estadão quanto pela RBS, estavam equivocadas
Venício Lima*
Em sua recente visita a São Paulo, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, concedeu uma longa entrevista ao jornalista Oswaldo Luiz Vitta Colibri, da Rádio Brasil Atual. Tive o privilégio de ter sido um dos convidados a formular perguntas ao ministro. Perguntei a ele:
Ministro Paulo Bernardo: Não ficou muito claro qual é a posição do Ministério das Comunicações em relação à questão da regulação da propriedade cruzada. O senhor deu uma primeira declaração que foi interpretada como sendo contrária à continuidade da propriedade cruzada, depois o jornal “O Estado de São Paulo” deu uma manchete de capa dizendo que o governo tinha recuado dessa posição. O grupo RBS também fez um editorial felicitando o governo de ter recuado da posição. Então, acho que seria importante que essa questão ficasse clara, porque há uma confusão entre a questão da convergência tecnológica e a questão, que no meu ponto de vista é totalmente distinta, da propriedade cruzada, e que na verdade nunca foi controlada no país. Qual é de fato a posição do ministro e do ministério em relação à propriedade cruzada?
A resposta do Ministro Paulo Bernardo foi a seguinte:
“Nós estamos trabalhando um projeto de regulação de mídia eletrônica no país. Isso quer dizer o seguinte: nós não vamos regular jornais e revistas, outdoor, busdoor, nada disso, mas queremos regular a questão da radiodifusão. Tem vários dispositivos na Constituição que tratam disso e também da intersecção da radiodifusão com telecomunicações, porque hoje as empresas de telefonia atuam, por exemplo, com TV a cabo. Nós achamos que esse universo – que na verdade é bastante coisa – tem que ser regulado. Não é a questão da convergência tecnológica. Hoje você pode, por exemplo, com a evolução tecnológica, nós podemos ouvir rádio no celular, celular com televisão, isso naturalmente vai acontecer. O que nós queremos é o seguinte: é fazer limitação mais definida e mais clara sobre a concentração da mídia na mão de poucos grupos. A questão da propriedade cruzada vai tratar disso, se alguém pode, ou um grupo, uma pessoa física ou jurídica pode deter, digamos, x números de rádios, TVs, ter jornal, enfim, tudo isso. O projeto que nós estamos trabalhando, que foi organizado pelo ministro Franklin Martins, estabelece restrições mais rígidas. Hoje, por exemplo, você pode ter duas emissoras de televisão em um estado, pode ter até 4 rádios AM, até 6 rádios FM. Nós estamos discutindo isso, quanto que você pode ter. E a partir daí tem que ter uma fiscalização, porque às vezes um grupo tem 5 rádios AM, mas põe no nome de um dos acionistas. E nós queremos regular isso, essa é a posição do governo e é isso que nós estamos trabalhando” (cf. aqui a íntegra da entrevista).
Parece esclarecido, portanto, que: (1) o ministro faz, sim, diferença entre convergência de mídias e propriedade cruzada; (2) o projeto de regulação em estudo no Ministério das Comunicações (MiniCom) trata da questão da propriedade cruzada; e (3) há, sim, a intenção do ministro e do governo Dilma, de “fazer limitação mais definida e mais clara sobre a concentração da mídia na mão de poucos grupos”.
Persiste, todavia, um ponto mencionado pelo ministro, que ainda precisa ser melhor explicado.
O decreto-lei n. 236/1967
Quando o ministro Paulo Bernardo afirma: “Hoje, por exemplo, você pode ter duas emissoras de televisão em um estado, pode ter até 4 rádios AM, até 6 rádios FM”, ele está se referindo ao decreto-lei 236/1967 que estabelece limites para as concessões de radiodifusão e proíbe a “subordinação” que se caracteriza na formação de “cadeias ou associações de qualquer espécie” (hoje seriam chamadas de “redes” ou “networks”) de radio e/ou de televisão, mas não trata de propriedade cruzada. Ademais, este decreto tem sido historicamente interpretado de forma equivocada pelo MiniCom, burlado ou simplesmente descumprido.
Em seu artigo 12, o referido decreto reza que:
“Cada entidade só poderá ter concessão ou permissão para executar serviço de radiodifusão, em todo o País, dentro dos seguintes limites: (...)
I – estações radiodifusoras de som:
a) locais:
ondas médias, 4;
freqüência modulada, 6;
b) regionais:
ondas médias, 3;
ondas tropicais, 3 (sendo no máximo 2 por estado);
c) nacionais;
ondas médias, 2
ondas curtas, 2;
II - estações radiodifusoras de som e imagem – 10 (dez) em todo o território nacional, sendo no máximo 5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por estado; (...)
§ 7º - As empresas concessionárias ou permissionárias de serviço de radiodifusão não poderão estar subordinadas a outras entidades que se constituem com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única, através de cadeias ou associações de qualquer espécie”;
A interpretação que o MiniCom tem dado a estas normas, pode ser exemplificada na resposta que o então Secretário de Serviços de Comunicação Eletrônica – ao tempo em que o ministro das Comunicações era o deputado Miro Teixeira, ainda no primeiro governo Lula – deu a Requerimento de Informações de autoria dos deputados Edson Duarte (PV-BA) e Iara Bernardi (PT-SP) que perguntava “que empresas de comunicação descumpriram ou estão descumprindo o artigo 12 do Decreto-Lei 236/67 que estabelece limite de propriedade para uma mesma empresa?” e “que ações foram deflagradas pelo Ministério das Comunicações/Anatel para coibir a irregularidade existente?”
A resposta do Secretário, através da Assessoria de Assuntos Parlamentares do MiniCom, está no Memorando 323/2003-SSCE/MC de 01/08/2003:
“Conforme os quesitos acima descritos, temos a informar a Vossa Senhoria que realizamos pesquisas, no que diz respeito ao Plano Básico de Distribuição de Canais de Radiodifusão, relativos aos serviços de radiodifusão sonora (onda média, ondas curtas, ondas tropicais e freqüência modulada); serviços de radiodifusão de sons e imagens (televisão); e radiodifusão comunitária, e constatamos a inexistência de entidades que estariam contrariando o artigo 12 do Decreto-Lei n. 236/67. Conseqüentemente, este ministério não instaurou procedimento administrativo, visando apurar irregularidade por descumprimento do referido dispositivo”.
Como se vê, as limitações impostas pelo decreto-lei se tornam inócuas porque, contrário a toda evidência, o MiniCom considera “entidade” como significando “pessoa física” e, ademais, não leva em conta o parentesco.
Da mesma forma, em relação ao parágrafo 7, o MiniCom não considera as “redes” – formadas com a “afiliação” contratual de emissoras – como “cadeias ou associações” constituindo subordinação “com a finalidade de estabelecer direção ou orientação única”.
Com essas interpretações, o MiniCom pode, portanto, em 2003, declarar oficialmente “a inexistência de entidades que estariam contrariando o artigo 12 do decreto-lei n. 236/1967 ”.
E agora Estadão e RBS?
De qualquer maneira, a resposta do ministro Paulo Bernardo não deixa dúvida de que as interpretações, tanto do Estadão quanto da RBS, estavam equivocadas [cf. “Convergência vs. Propriedade Cruzada: a quem interessa a confusão?” e “Propriedade Cruzada: interesses explicitados”.
Ou será que interessaria a esses grupos de mídia divulgar informações incorretas sobre a proposta de regulação da mídia eletrônica em estudo no governo Dilma?
*Venício A. de Lima é professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010.
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