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22/08/2010
Em 1962, a historiadora Barbara Tuchman publicou um livro sobre o início da Primeira Guerra Mundial, intitulado The Guns of August (As Armas de Agosto). Ela chegou a ganhar um Prêmio Pulitzer. Naturalmente, estava relembrando eventos ocorridos quase 50 anos antes e tinha à sua disposição documentos e informação não disponíveis aos que participaram da guerra. Eles agiram, como disse o secretário de Defesa da época da Guerra do Vietnã, Robert McNamara, no calor da guerra.
Então, como estamos em agosto de 2010, com as armas a pleno vapor no Afeganistão enquanto tentamos cair fora de outra ocupação, no Iraque? Onde estamos, enquanto impomos sanções contra Irã e Coréia do Norte (e os ameaçamos, pior que isso), ao mesmo tempo que enviamos nossas maravilhas mais recentes em armamentos, robôs equipados com bombas e mísseis, para as fronteiras do Paquistão, Iêmen e quem sabe onde mais, encarregados de infinitas "matanças dirigidas" que, em épocas mais duras, chamávamos de assassinatos? Onde exatamente estamos, enquanto continuamos a fortificar a maior parte do globo mesmo quando nosso país está incapacitado de pagar por serviços básicos?
Gostaria de ter uma bola de cristal para poder espiar o que os historiadores dirão de nossas próprias armas em agosto de 2060. O calor da guerra, afinal de contas, é apenas uma metáfora para o que poderia ser chamado de "as névoas do futuro", a inabilidade dos humanos para descortinar o que o mundo virá a ser.
Entretanto, permitam-me tentar oferecer alguns vislumbres do que essa paisagem enfumaçada alguns anos no futuro poderá revelar, e mesmo arriscar algumas predições sobre as possibilidades que aguardam os Estados Unidos ainda imperial.
Começarei perguntando: Que danos acontecerão aos Estados Unidos se realmente decidirmos, contra todas as probabilidades, fechar as centenas de bases, grandes e pequenas, que implantamos ao redor do mundo? O que ocorreria se realmente desmontassemos nosso império e voltassemos para casa? Hordas como as de Genghis Khan cairiam sobre nós? Pouco provável. Não é nem mesmo concebível uma invasão por terra ou por mar.
Ataques como o de 11 de setembro iriam aumentar? Parece-me muito mais provável que, à medida em que nossa presença no estrangeiro diminuisse, a possibilidade de ataques também diminuiriam.
Os vários países que invadimos, algumas vezes ocupamos, e tentamos colocar no caminho da justiça e da democracia degenerariam em "estados fracassados"? Talvez alguns, e evitar ou controlar isso deveria ser a função das Nações Unidas ou dos estados vizinhos (É bom lembrar que o regime de Pol Pot no Camboja acabou chegando ao fim não por nossa causa, mas pela ação do Vietnã).
Império trôpego
Em outras palavras, os maiores medos que se poderia ouvir em Washington – se alguém se preocupasse minimamente em imaginar o que aconteceria se começassemos a desmontar nosso império – seriam apenas quimeras. Seriam, na verdade, muito parecidas com as previsões cataclísmicas dos anos 70 sobre os estados na Ásia, na África, e assim por diante caindo, como dominós, sob uma dominação comunista caso não vencessemos a guerra do Vietnã.
Como seria o mundo então se os EUA perdessem o controle global – os maiores medos e as mais profundas reflexões de Washington em relação à nossa pretensiosa auto-estime – como está efetivamente acontecendo agora apesar de nossos melhores esforços? Como seria o mundo se os EUA apenas desistissem? O que nos aconteceria se não fôssemos mais a "única superpotência" ou a auto-proclamada polícia do mundo?
Na verdade, ainda seríamos um grande e poderoso estado-nação com uma miríade de problemas internos e externos. Uma crise de drogas e imigração na fronteira do sul, aumento dos custos de saúde, a falência do sistema educacional, uma população e uma infraestrutura envelhecidas, uma recessão sem fim – nenhum dos quais terá solução no futuro próximo, e nenhum dos quais tem possibilidade de ser atacado de modo sério e bem sucedido enquanto continuarmos a gastar nossa riqueza em exércitos, armamentos, guerras, ocupação global e subornos a ditadores insignificantes.
Mesmo sem nossa interferência, o Oriente Médio continuaria a exportar petróleo, e se a China comprasse uma parcela cada vez maior do que permanece inexplorado naqueles países, talvez isso nos estimulasse a uma conservação maior e nos levasse mais rapidamente à era das energias alternativas.
A potência que surge
Enquanto isso, se desmantelarmos ou não nosso império, a China se tornará (se já não é) a próxima superpotência mundial. Ela, também, enfrenta uma série de problemas internos, incluindo muitos iguais aos que temos. Entretanto, tem uma economia em crescimento, uma balança de pagamentos favorável frente ao resto do mundo (particularmente os EUA, que está atualmente enfrentando um déficit comercial anual com a China de US$ 227 bilhões) e um governo e uma população determinados a transformar o país num estado poderoso e economicamente dominante.
Há cinquenta anos, quando comecei minha carreira acadêmica como especialista em China e Japão, fiquei fascinado pela história moderna desses países. Meu primeiro livro tratou do modo como a invasão japonesa da China nos anos 30 deu impulso a Mao Tse Tung e ao Partido Comunista da China rumo ao poder, graças à resistência patriótica aos invasores.
Por acaso, não é difícil encontrar exemplos deste processo, no qual um grupo político local chega ao poder porque lidera a resistência a tropas invasoras. Logo em seguida à Segunda Guerra Mundial, isso aconteceu no Vietnã, na Indonésia e na Malásia; com o colapso da União Soviética em 1991, e de toda a Europa Oriental; e hoje certamente acontece no Afeganistão e também no Iraque.
Quando a Revolução Cultural na China começou, em 1966, perdi temporariamente o interesse em estudar o país. Eu achava que sabia para onde a desastrosa reviravolta interna estava levando a China, e assim me voltei para o Japão, que estava então sendo bem conduzido em sua recuperação da Segunda Guerra Mundial, graças ao crescimento econômico dirigido pelo estado, mas não de sua propriedade.
Esse padrão de desenvolvimento econômico, algumas vezes chamado de "estado desenvolvimentista", tem diferenças fundamentais tanto do controle da economia nos moldes soviéticos quanto da abordagem laissez-faire dos EUA. A despeito do sucesso do Japão, lá pelos anos 1990 sua burocracia cada vez mais imobilizada havia levado o país a um prolongado período de deflação e estagnação.
Ao mesmo tempo, a Rússia pós-soviética, por um curto período atrelada ao dirigismo econômico americano, viu-se presa das aves de rapina da oligarquia, que desmantelou o comando da economia somente para enriquecer a si próprios.
Na China, o líder do Partido Comunista Deng Xiaoping e seus sucessores puderam observar os acontecimentos no Japão e na Rússia, aprendendo com ambos. Eles adotaram os aspectos mais efetivos dos dois sistemas para sua economia e sua sociedade. Com um pouco de sorte, na economia e em outros setores, e como continuação de sua atual liderança bem informada e racional, a China continuou a prosperar sem ameaçar seus vizinhos ou os EUA.
Imaginar que a China iria um dia iniciar uma guerra com os EUA – ainda que sobre uma questão tão profundamente emocional quanto o status político de Taiwan – seria projetar para o país uma direção muito diferente daquela na qual está rumando atualmente.
Recolhendo a bandeira
Em 35 anos, chegará ao fim os cem anos nos quais os Estados Unidos foram o maior manda-chuva (1945-2045); essa era pode, de fato, estar acabando neste momento. Estamos começando a parecer cada vez mais uma versão gigante do Reino Unido no final de seu período imperial, na medida em que começamos a enfrentar, ainda que necessariamente não os resolvendo, o envelhecimento de nossa infraestrutura, nossa influência internacional em franco declínio e nossa economia decadente.
Poderia, até onde sabemos, ser ainda o século de Hollywood daqui a décadas, de modo que ainda pudessemos agitar a superfície da cena cultural, do mesmo modo que o Reino Unido fez nos anos 1960 com os Beatles e Twiggy. Turistas iriam sem dúvida visitar algumas de nossas maravilhas naturais e talvez algumas de nossas cidades menos imundas, em parte porque as taxas de câmbio possivelmente estariam favoráveis a eles.
Se no entando desmontassemos nosso império de bases militares e direcionassemos nossa economia para indústrias produtivas, e não mais destrutivas; se mantivessemos nossas forças armadas voluntárias principalmente para defender nossas próprias costas (e talvez para serem usadas sob o comando das Nações Unidas); se começassemos a investir em nossa infraestrutura, educação, saúde pública e poupança, então poderíamos ter a possibilidade de nos reinventar como uma nação normal e produtiva.
Infelizmente, não vejo isso acontecer. Perscrutando este vago futuro, simplesmente não consigo imaginar os EUA desmanchando voluntariamente seu império, o que não significa que, como todas as fortificações imperiais, nossas bases não acabem algum dia.
Ao invés disso, prevejo os EUA à deriva, da mesma forma que a administração Obama parece estar à deriva na ocupação do Afeganistão. A opinião atual entre os economistas hoje é que o alto desemprego deve permanecer por mais uma década. Some-se a isso o baixo investimento e a contenção de gastos (exceto talvez os gastos do governo) e eu temo que T.S. Elliot tivesse razão quando escreveu: "É assim que o mundo termina, não com um estrondo, mas com um gemido".
Sempre fui um analista político e não um ativista. Esta é uma das razões porque por um breve tempo tornei-me consultor do principal setor de análises da CIA, e porque eu agora prefiro sair da Agência. A CIA não só perdeu sua razão de ser ao permitir que sua coleta de inteligência se contaminasse politicamente, mas também suas operações clandestinas criaram um clima de impunidade no qual os EUA podem assassinar, torturar e aprisionar pessoas à vontade em todo o mundo.
Da mesma forma que perdi o interesse na China quando sua liderança se dirigiu de maneira tão cega para o caminho errado durante a Revolução Cultural, temo estar perdendo o interesse em continuar a analisar e dissecar as perspectivas para os EUA nos próximos anos.
Aplaudo os esforços de jovens jornalistas de mostrarem as coisas como elas são, e os dos acadêmicos em coletarem informações que um dia capacitarão historiadores a descrever onde e quando nos perdemos.
Admiro especialmente as percepções do lado de dentro, como aquelas dos ex-militares como Andrew Bacevich e Chuck Spinney. E reverencio os homens e mulheres dispostos a arriscar suas carreiras, salários, liberdade e mesmo vida para protestar – como os padres e freiras do SOA Watch, que fazem piquetes regulares na School of the Americas e chamam atenção para a presença de bases militares e o mau comportamento americano na América do Sul.
Estou também impressionado com o jovem Bradley Manning, caso ele seja de fato a pessoa responsável pela potencial liberação ao público de 92 mil documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão.
Daniel Ellsberg estava aguardando há tempos que alguém fizesse o que ele próprio fez quando liberou os Documentos do Pentágono durante a guerra do Vietnã. Ele deve ter se surpreendido com a resposta a este chamado – e de maneira tão improvável.
Meu próprio papel nesses últimos 20 anos foi o de Cassandra, a quem os deuses concederam a dádiva de prever o futuro, mas também amaldiçoaram com o fato de que ninguém acreditaria nela. Eu gostaria de ser mais otimista sobre o que está reservado para os EUA. Mas não há um só dia em que nossas próprias armas de agosto não continuem a me assombrar.
Chalmers Ashby Johnson (1931) é um escritor e professor emérito estadunidense, da Universidade da Califórnia em San Diego. Também é presidente e co-fundador do Japan Policy Research Institute, uma organização que promove a educação pública sobre o Japão e a Ásia. Escreveu vários livros, incluindo, mais recentemente, três análises das consequências do Império Americano: Blowback, The Sorrows of Empire e Nemesis: The Last Days of the American Republic.
Fonte: Tom Dispatch
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