Da Carta Maior - 22/11/2011
Não é só sobre a economia que pairam pesadas sombras na Espanha. Direitos civis e sociais estão sob uma ameaça atroz. Um senhorito galego, obediente às regras da tradição e à fome do dinheiro, chegou para mandar. A volta ao país confessional dos tempos de Franco é, mais que um risco eventual, uma ameaça real. A poderosa hierarquia da Igreja Católica está que é um sorriso só. O nacional-catolicismo do Partido Popular do novo primeiro-ministro encontrou seu espaço. O artigo é de Eric Nepomuceno.
Eric Nepomuceno
A verdade é a seguinte: o novo homem forte da Espanha, Mariano Rajoy, é fraco. E lento. Nunca diz o que está pensando, apenas insinua. Como todos os nascidos na Galícia, é suspicaz: desconfia até do ar que respira. Quando ouve uma pergunta, não responde: faz outra. E é tão, mas tão cauteloso, que leva um tempo enorme antes de tomar uma decisão. E nunca toma uma decisão de maneira determinante: sempre deixa aberta uma fresta para, se for o caso, voltar atrás com certa dignidade. E leva outro tempo enorme até decidir se é ou não o caso de voltar atrás.
Conseguiu, por certo, uma vitória arrasadora. E ainda levou, de quebra, a glória de ter conseguido eleger mais deputados que seu mentor e criador, José Maria Aznar, que foi primeiro-ministro entre 1996 e 2004. Com Rajoy, o Partido Popular, fina flor da direita, elegeu 186 deputados. Com Aznar, 183.
Pode parecer pouco, é muito: Aznar vivia criticando sua cria, dizendo que Rajoy saberia herdar o governo, mas não sabia ganhar eleições. Agora, teve de aplaudir até ficar com as mãos ardendo: seu pupilo obteve maior vantagem jamais dada a um primeiro-ministro desde que, em 1982, Felipe González conseguiu uma vitória de furacão, que o manteve no poder durante 14 anos.
Pois é esse homem de aparência sossegada e sorriso de viés, que transmite a eletricidade de um pé de alface, o novo dirigente de um país corroído e assustado. Um típico senhorito galego, de alma lânguida e provinciana, modos disciplinados, fiel às tradições, respeitador das hierarquias e das regras que ninguém sabe quem estabeleceu, mas que ele louva e admira como se fossem pétreas.
Notário de ofício, advogado de formação, um dos três filhos de um veterano funcionário público que educou a prole nas bondades de um emprego vitalício e seguro: esse é o homem que deverá liquidar milhares de empregos do Estado espanhol.
O problema de Mariano Rajoy, 56 anos, casado, pai de dois filhos, formado em direito, é que ninguém sabe o que ele pensa, o que pretende, o que quer.
Fala-se muito, e com razão, do que ele irá impor na política econômica de um país agredido. Há um temor mais do que justificado sobre sua capacidade de enfrentar – ou seu entusiasmo em acatar – os ditames de quem efetivamente manda, ou seja, a grande banca.
Fala-se pouco, em compensação, do que ele poderá significar – com seu ar provinciano, seu olhar de soslaio, seu pendor a dissimular – para outras conquistas sociais alcançadas pelos espanhóis ao longo dos tempos.
Durante os anos de Felipe González, a Espanha fez avanços importantes, e muitos deles foram melhorados e consolidados no governo de José Luis Rodríguez Zapatero. Tudo isso agora está correndo sério risco.
Não me refiro à economia e às finanças. A essas questões o próprio Zapatero renunciou, e por isso mesmo sucumbe agora sem pena nem glória. Eu estou falando é de outros avanços, de outros sonhos.
Por exemplo: até agora, na Espanha, cada criança recebia, ao nascer, um bônus do Estado. O seguro desemprego é dos mais sólidos da Europa. A saúde pública é considerada referência. As pensões e aposentadorias, longe de serem desiguais como as nossas, são igualitárias.
Os avanços nas conquistas dos direitos civis vão muito além. Na Espanha, uniões afetivas do mesmo sexo são consideradas casamento, com direito a herança, partição de patrimônio e adoção de filhos. O aborto está amparado por lei, e as mulheres podem interromper sua gravidez de até 14 semanas. Até 2005 – ou seja, no governo Zapatero – o aborto só era permitido em casos de violação, má formação do feto ou ameaça à saúde física ou psicológica da mãe.
Ninguém sabe o que Mariano Rajoy pensa. Sobre essas questões, então, melhor nem falar. O que se sabe é que nas filas de seu Partido Popular pululam a direita católica, o Opus Dei, os Legionários de Cristo.
A volta ao país confessional dos tempos de Franco é, mais que um risco eventual, uma ameaça real. A poderosa hierarquia da Igreja Católica está que é um sorriso só. O nacional-catolicismo do Partido Popular do novo primeiro-ministro encontrou seu espaço. O próprio Rajoy já se declarou contrário ao casamento homossexual (aceita a “união civil”, e só), num país que nos últimos seis anos realizou mais de 20 mil casamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Enfim: não é só sobre a economia que pairam pesadas sombras na Espanha. Direitos civis e direitos sociais estão debaixo de ameaça atroz. Um senhorito galego, obediente às regras da tradição, obediente à fome do dinheiro, chegou para mandar.
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