09/01/2016
Torquemada e nosso futuro
Paulo Moreira Leite
Personagem da principal entrevista da revista Brasil 247 que pode ser lida aqui (https://flipboard.com/@editora247/brasil-247-a44pgffuy), o depoimento do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo merece alguns minutos de reflexão.
Cardozo é um dos responsáveis pela arquitetura legal dos acordos de leniência em debate no Brasil de 2016. Mecanismo inspirado pela melhor jurisprudência internacional para permitir uma travessia delicada na história de qualquer país, os acordos de leniência permitem a punição de executivos e dirigentes envolvidos em atos de corrupção e a cobrança de multas pesadas contra empresas envolvidas em abusos e desvios. Ao mesmo tempo, permitem a preservação de empresas e empregos que concentram uma riqueza acumulada pela nação inteira ao longo de sua história, evitando sacrifícios e retrocessos desnecessários, capazes de comprometer os principais avanços obtidos em décadas.
Como nós sabemos, estes acordos são abençoados por empresários e lideranças de trabalhadores atingidos na própria pele por uma brutal recessão econômica, cuja origem, em grande parte, se encontra nos efeitos indesejáveis da Operação Lava Jato. Conforme estudos insuspeitos do economista Gesner de Oliveira, tucano de carteirinha, corroborados por dados oficiais apurados pelo ministério da Fazenda, as sequelas da Lava Jato sobre a atividade econômica explicam a supressão de dois milhões de empregos, diretos e indiretos, uma queda de 2 pontos no PIB e uma redução de R$ 42 bilhões na massa salarial.
Apesar das evidências de que é preciso tomar providências urgentes para remover um obstáculo artificial à retomada do crescimento econômico, os acordos de leniência são criticados com acidez por porta-vozes do Ministério Público, que aí enxergam uma nova forma de impunidade e até cumplicidade entre o governo e grandes financiadores de campanhas eleitorais.
"O país precisa de estadistas, não de Torquemadas," argumenta José Eduardo Cardozo, referindo-se ao dominicano Tomás Torquemada (1420-1498), protagonista da Inquisição, processo sinistro e opressivo na história da civilização mundial. Primeiro Grande Inquisidor de um sistema de justiça, baseado em confissões, na tortura e no fanatismo religioso, sempre empregado para justificar a perseguição política, Torquemada deixou uma herança de atraso e violência que serve de advertência aos brasileiros do século XXI.
Responsáveis pelo Descobrimento da América, evento tecnológico, histórico e político que mudaria o perfil da humanidade para sempre, com alterações absolutas na economia, na política e na cultura de cada ser humano nascido depois de 1492, nem espanhóis nem portugueses tiveram a oportunidade de aproveitar todas as chances de desenvolvimento descortinadas pela grandes navegações, epopéia civilizatória iniciada por personagens como o Cristovam Colombo, Vasco da Gama, e tantos outros, que aproximou o Velho e o Novo Mundo.
Submetidas a uma ordem opressora e retrógrada que se prolongou de forma desigual por três séculos, mas sempre capaz de responder às necessidades iniciais de formação do sistema capitalista na Europa, as sociedades ibéricas deixaram uma posição de vanguarda para acabarem numa posição de retaguarda, num universo político fechado, dominado pelo atraso, pelo provincianismo e falta de perspectiva. Em poucas décadas, como se sabe, foram ultrapassadas por povos que se mostraram capazes de construir um sistema de acordo com as exigências e possibilidades do período, no qual as liberdades públicas, a igualdade entre cidadãos e o respeito pelos direitos individuais ganharam prioridade sobre a intolerância e a irracionalidade. O resto da história nós sabemos -- é esta a reflexão que deve ser feita, sempre respeitando imensas distancias impostas pela geografia e pela história.
Ao atingir empresas estatais que funcionam como o dínamo de nosso desenvolvimento, colocando em risco grupos privados de importância nacional e internacional, em vez de realizar uma investigação necessária sobre abusos e desmandos produzidos por práticas de corrupção, a Lava Jato produz um efeito destrutivo e prejudicial, que compromete a posição de destaque e liderança regional assumidas pelo país depois da Segunda Guerra Mundial.
Se o Brasil permanece, até hoje, numa posição muito distante das nações mais desenvolvidas do planeta, está longe de situar-se entre os países atrasados, sem condições materiais nem opções políticas de brigar pelo próprio destino. Nessa situação, todo ato capaz de ameaçar os avanços obtidos até aqui será equivalente a uma ação de sabotagem -- ainda que involuntária -- ao grau de desenvolvimento que pode dar base material a indispensáveis avanços futuros.
O Brasil de 2016 encontra-se numa fronteira que permite sonhar com a construção de uma sociedade menos desigual, onde a maioria tenha seus direitos respeitados, os menos favorecidos tenham a proteção que necessidades e acesso às oportunidades que nunca foram oferecidas a seus pais e avós.
A existência de grupos econômicos nacionais, uma raridade em tempos de globalização, abre a possibilidade de um controle maior da riqueza do país e, portanto, de seu destino.
Iniciativas que estimulam o retrocesso político e abrem caminho a regressão econômica ajudarão a reconstruir o liberalismo sem democracia que marcou a história de nossa republica, o individualismo capaz de assegurar liberdades para poucos, como se verifica numa nação que até hoje não se emancipou de todas as heranças do regime de escravidão. O esvaziamento e destruição de setores nacionais da economia constituem a vida rápida para a recolonização.
O debate é este.
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