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29/03/2012
Do Blog do Maura Sntayana - 29/03/2012
Mauro Santayana
(JB) - A morte de Millor Fernandes e de Chico Anísio é mais do que a perda de dois grandes humoristas. Chico e Millor, cada um em seu espaço, foram importantes filósofos políticos, distanciados dos grilhões acadêmicos, e argutos observadores da realidade brasileira.
Millor não dispunha dos atributos do ator de Maranguape, capaz de usar duzentas máscaras diferentes, para expor os sentimentos e o ridículo da condição humana. Nele havia a profundidade de reflexão, ancorada em uma erudição tanto mais ampla quanto menos pomposa. Ambos fustigaram a mediocridade e fizeram o povo pensar.
E me permitam defender uma categoria de pessoas a que também pertenço: aquelas que encontraram o seu caminho fora das escolas formais. Millor e Chico foram dispensados da moldagem do ensino tradicional, mas compensaram essa aparente dificuldade na formação dialética – e ética - do trabalho. Millor um pouco antes, no início da adolescência, ao entrar para a equipe de O Cruzeiro, e Chico, poucos anos depois, ao se tornar locutor de uma emissora de rádio.
Sendo um homem do espetáculo, e vivendo tantos e tão diferentes personagens, Chico Anísio teve a vida exposta, como um eterno caçador de experiências amorosas e pai incansável. Uma psicanálise de botequim poderia explicar a sua afetuosidade insaciável, que o fez marido de tantas e tão belas mulheres, como resultado do mundo de ficção em que vivia. Os atores sempre adicionam à alma, ainda que não desejem, parcelas de seus personagens, como transplantes da emoção dos autores. Millor não era ator, mas, sim, um excepcional pensador. Essa foi a essencial diferença entre os dois.
Ambos foram ácidos críticos da sociedade e aplicados defensores da verdadeira razão política. Chico exercia a sua cáustica vigilância no aparente desprezo pelas personalidades públicas. Ninguém soube caricaturar com tanta acuidade o parlamentar corrupto, do que ele, ao encarnar o deputado Justo Veríssimo. Já na fase final do regime militar, os telefonemas de Salomé, de Passo Fundo, ao Presidente João Batista Figueiredo, serviram, ao mesmo tempo, de crítica ao governo e de estímulo ao movimento de redemocratização em marcha. Millor ia muito mais fundo. Sua crítica não se limitava à política em senso estrito, aos governos e às instituições do Estado, mas atingia, em seu âmago, a sociedade contemporânea, com seus desavisos e submissão ao efêmero. Para isso, ele sempre se abasteceu dos clássicos gregos aos autores contemporâneos, passando, naturalmente, por Shakespeare, Goethe, Schiller, Molière, Racine e tantos outros. Ele era capaz de ir adiante das reflexões desses grandes autores, ao trabalhá-las em sua fulgurante inteligência. Ele usava a erudição para resumir a sua visão do mundo em frases curtas, certeiras, surpreendentes, definitivas.
Não conheci pessoalmente Chico Anísio. Meu universo era outro. Não morando no Rio, fui privado de convívio maior com Millor. Fazíamos parte, como tantos outros de nossos contemporâneos, do Círculo de Conceição de Mato Dentro que se reunia eventualmente no apartamento de José Aparecido, em Copacabana. Ambos fomos agraciados com o título de cidadãos de Conceição o que, para os que não conheceram Aparecido, nem a cidade na Serra do Espinhaço, pode não ter qualquer importância. A cidade de Aparecido, tão forte na história e no caráter de Minas, hoje, mais do que a Itabira de Drummond, não passa de uma foto esmaecida: mineradores estrangeiros a conspurcaram, ao dilacerar as serras que a cercam e esvaziar a cidade de sua identidade e de seu caráter ancestral.
Entre as minhas memórias de Millor, há a de um encontro na terra de Aparecido, em que ele, Gerardo de Mello Mourão, Newton Rodrigues e eu mesmo – não me lembro se houve outros colaboradores – redigimos longo poema sobre o aniversário de José, naquele mesmo dia, e que se iniciava com a evocação da morte de Giordano Bruno na fogueira, em 17 de fevereiro de 1600. Os versos de Millor foram os mais fortes, mais limpos e mais significativos, naquele “abc” em louvor do aniversariante.
As sucessivas gerações de homens brilhantes, que atravessaram o século 19 e fizeram a primeira metade do século 20, de Machado e Bilac, de Lima Barreto, de Belmonte e de J. Carlos; de Graciliano, José Lins, de Getúlio Vargas e de tantos homens de gênio foi sucedida por personalidades fortes da segunda metade do século passado, algumas das quais cruzaram o milênio. Chico e Millor, gênios vindos do povo, em sua forma de ver o mundo e nele se integrar, foram figuras emblemáticas dessa geração singular na história do país.
Uma frase de Millor, inscrita na escultura que adorna a porta do apartamento de José Aparecido no Rio, pode resumir a sua atitude diante da vida: Se alguém achar o vento a favor contrário, entra com o que tem.
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