Publicado em 15/06/2009
Parte da elite brasileira detesta essa história de cotas. Há um jornalista, à frente da Redação da TV Globo, que jura não haver racismo no Brasil. Até aí é problema dele. Mas o sujeito insiste em pautar "reportagens" que comprovem essa tese.
Globo tem duas ou três "fontes marcadas para falar" exatamente aquilo que o diretor de jornalismo quer ver no ar. São "especialistas" que defendem a mesma tese: o racismo no Brasil não existe, e estabelecer cotas é que vai "insuflar" o racismo nessa nossa sociedade doce, tranquila, onde impera a "democracia racial".
Entenderam? Racismo não existe. Cotas é que vão criar racismo.
A "tese" é exposta seguidamente, nas "reportagens" da Globo, por uma socióloga do Rio de Janeiro e por um geógrafo paulista que tem opinião sobre tudo!
Para não parecerem insensíveis, esses "especialistas" (sob patrocínio permanente do Ratzinger do jornalismo global) costumam defender que o certo é "educação de qualidade para todos", assim brancos pobres e negros pobres ganhariam o direito a um futuro melhor.
Então, tá. A gente vai ficar esperando. Ou melhor: a gente não vai esperar, porque a sociedade brasileira resolveu investir nas cotas. Para horror da turma do Leblon e Higienópolis.
A idéia dos que defendem cotas é a seguinte: educação de qualidade é pressuposto, serve para negros e brancos. Serve no longo prazo. E serviria mais ainda se essa fosse uma sociedade menos desigual. As cotas, por outro lado, dão um empurrãozinho a mais para aqueles que saem em desvantagem nessa corrida: os negros e seus descendentes, que foram escravizados durante mais de 3 séculos. Trata-se de fazer Justiça: trata-se de oferecer ferramentas diferentes para quem parte de condições diferentes.
A turma anticotas aceita, no máximo, no máximo, "umas cotas para pobres".
Até entendo: assim, não se mexe na velha ferida do racismo, nas memórias dos navios negreiros. Assim, não se atiçam velhas culpas, nem velhas perversidades. Assim, brancos e negros seguem irmanados pela "lei", que trata a todos com igualdade nessa doce terra. Certo?
O "Estadão" (aquele jornal meio decadente de São Paulo), que eu saiba, também é contra as cotas. Mas isso não impediu o jornal de entrevistar um professor dos Estados Unidos que desmonta a tese de Ratzinger e seus asseclas.
Veja um trecho (a pergunta do repórter embute a tese da turma anti-cotas; e a resposta, direta, ajuda a desmontar a tese).
"(P) - Críticos das cotas para negros dizem que elas teriam o efeito colateral de "fomentar o ódio racial". O Brasil correria o risco de ser repartido em etnias. O sr. concorda?
Conforme dados oficiais do IBGE nos últimos 30 anos, o Brasil efetivamente já é uma sociedade bicolor. Pardos e pretos experimentam níveis de desigualdade e discriminações bastante parecidos e o IBGE juntou os dois grupos numa só categoria de ?negros?. Criar um sistema de cotas dividido em brancos e negros seria reconhecer a realidade social e racial do país. A sociedade brasileira não pode deixar de responder às marcadas e seculares desigualdades raciais que a afligem. "
Sugiro que vocês leiam a entrevista na íntegra. Até para notar como é confusa a edição feita pelo jornal.
O título (e o texto de abertura) dá a entender que o especialista é contra as cotas para os pobres. Mas o que ele afirma é diferente: "cota para pobres não vai resolver os problemas enormes dos afro-brasileiros que estão na luta para entrar, ou avançar, na classe média". Ou seja: cota para pobre não basta, seria preciso ir mais longe, combinar vários tipos de ação afirmativa.
O título escolhido pelo jornal deixa tudo na dúvida. Foi proposital?
''COTA PARA POBRE NÃO RESOLVE PROBLEMA''
George Reid Andrews, historiador e autor de livros sobre o Brasil, defende ações afirmativas e concorda com as decisões judiciais, mas faz algumas ressalvas
Felipe Werneck, RIO
A recente liminar do Tribunal de Justiça do Rio que suspendeu o sistema de cotas no Estado, considerado inconstitucional, segue decisão semelhante de 1978 da Corte Suprema Federal dos EUA, diz o historiador George Reid Andrews, professor da Universidade de Pittsburgh e autor de livros sobre o Brasil. Ele afirma concordar com as decisões judiciais e avalia que uma eventual cota para pobres, e não para negros, "teria os mesmos problemas".
Reid é a favor de ações afirmativas, mas não necessariamente na forma de cotas. O brasilianista sugere uma combinação de medidas e afirma que o país latino-americano mais bem sucedido no combate a essas desigualdades é Cuba. Para ele, apesar do número relativamente pequeno de ativistas, o movimento negro foi responsável por "conquistas extraordinárias" ocorridas no País nos últimos anos.
"Questionaram a imagem dessa sociedade como uma democracia racial e convenceram os presidentes recentes (FHC e Lula) a reconhecerem a realidade das desigualdades e discriminações raciais e a proporem políticas para combater esses problemas, algo absolutamente impensável no País dos anos 80."
Reid é autor dos livros "Negros e Brancos em São Paulo, 1888-1988" (Edusc) e "América Afro-Latina, 1800-2000", sua publicação mais recente, editada no País pela EdUFSCar.
- O Tribunal de Justiça do Rio considerou inconstitucional a lei de cotas adotada em universidades do Estado. No Brasil ainda se discute uma lei federal sobre o tema e uma das propostas é a criação de uma reserva para pobres. Como o sr. avalia?
Como uma opção bem interessante. Uma das conclusões de Afro-América Latina é que o país latino-americano mais bem-sucedido no combate às desigualdades raciais é Cuba. O censo cubano de 1981 mostrou a ilha como a sociedade mais racialmente equitativa - nos índices de expectativa de vida, educação, emprego, estado civil, etc. - das Américas. E essa igualdade se alcançou inteiramente por meio das políticas universais dirigidas às classes pobres cubanas. Mas vejo também dois pontos contra uma política de cotas para os pobres. Primeiro, sou muito a favor das ações afirmativas, mas não necessariamente na forma de cotas. Uma cota para pobres teria os mesmos problemas que para qualquer outro grupo. Segundo, uma cota para pobres não vai resolver os problemas enormes dos afro-brasileiros que estão na luta para entrar, ou avançar, na classe média. Para mim, o estudo mais importante do problema racial no Brasil nos últimos anos é?Racismo à brasileira?, de Edward Telles.
- De que forma esse debate ocorreu nos EUA?
Os EUA adotaram uma política oficial de ações afirmativas em 1965, por ordem do presidente Johnson. Essa política foi estendida por Nixon em 1969, cujo Departamento de Trabalho mandou que as empresas privadas contratadas pelo governo empregassem uma certa porcentagem de negros. Nos anos 70, esse sistema de cotas foi adotado por muitas agências governamentais, empresas privadas e universidades. Em 1978, a Corte Suprema Federal considerou inconstitucional o sistema de cotas raciais na seleção de alunos para universidades. O julgamento acabou com esse sistema, mas deixou aberta a possibilidade de se levar em conta a raça como um critério na seleção de candidatos. Em 2003, mais uma vez ficou determinado o uso da raça como um dos critérios na seleção.
- Críticos das cotas para negros dizem que elas teriam o efeito colateral de "fomentar o ódio racial". O Brasil correria o risco de ser repartido em etnias. O sr. concorda?
Conforme dados oficiais do IBGE nos últimos 30 anos, o Brasil efetivamente já é uma sociedade bicolor. Pardos e pretos experimentam níveis de desigualdade e discriminações bastante parecidos e o IBGE juntou os dois grupos numa só categoria de ?negros?. Criar um sistema de cotas dividido em brancos e negros seria reconhecer a realidade social e racial do país. A sociedade brasileira não pode deixar de responder às marcadas e seculares desigualdades raciais que a afligem.
- Qual foi o impacto das políticas de ações afirmativas?
Minha hipótese seria que os impactos das políticas de ação afirmativa foram muito significativos, especialmente no contexto de uma sociedade saindo da experiência histórica da segregação racial. Uma das conclusões foi que políticas parecidas poderiam ter impactos significativos no Brasil, no sentido de reduzir as desigualdades raciais.
- Gilberto Freyre ainda é muito estudado nos EUA?
Muito. Nos últimos anos ele tem experimentado uma reavaliação e ressurgimento acadêmico notável, tanto nos EUA quanto no Brasil. Não é muito frequente que um autor continuar tão citado quase um século depois de sua atuação. Um motivo para essa relevância é sua experiência de ter saído do país para vê-lo de fora.
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