Da Carta Capital - 15 de agosto de 2011 às 9:21h
Luiz Gonzaga Beluzzo*
Tem razão o economista Heiner Flassbeck: o âmago da crise que ora nos aflige está nos sistemas financeiros –bancos, quase-bancos e mercados de títulos, criaturas nascidas do matrimônio entre governos frouxos e “inovadores” incontroláveis. Tangidos pelas normas da concorrência sem peias e, portanto, envolvidos na perseguição de resultados acima da média, os bancos e assemelhados- entregaram–se a um esporte de alta periculosidade. Lançaram-se- à aventura da superalavancagem e cultivaram a ilusão da diversificação de riscos, enquanto praticavam exatamente o contrário do que afirmava a teoria dos mercados eficiente
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A despeito de suas verdades e de sua força simbólica, a palavra “financeirização” diz menos do que estaria obrigada a revelar. Comprada pelo valor de face, a expressão obscurece a compreensão das leis de movimento do sistema econômico e social que hoje estrebucha sob o olhar desconfiado dos que promoveram sua derrocada. Assim, quase sempre são obscurecidas as conexões entre os desenvolvimentos da finança contemporânea e a globalização do capital produtivo. As relações entre esses fenômenos determinaram a rápida acumulação de capacidade produtiva nos emergentes asiáticos e a farra financeira nos submergentes do Primeiro Mundo. Esse “arranjo” engendrou na área desenvolvida a criação de empregos de baixa qualidade, a queda dos rendimentos da massa assalariada e o avanço assustador da desigualdade. Não faltou à festança a deterioração persistente da receita pública, matriz dos déficits fiscais produzidos por regimes tributários cada vez mais regressivos. Com tais ingredientes, o receituário dito neoliberal preparou a gororoba do “excesso” de endividamento público e privado.
A crise deflagrada em 2007 mostra de forma cabal a natureza e as consequências das reformas financeiras, fiscais e trabalhistas do início dos anos 1980 promovidas pela mão visível do Estado. Elas trataram de remover os controles que pretendiam impedir a subordinação das decisões de gasto geradoras de empregos, renda, lucros e impostos às avaliações diárias e voláteis do estoque de riqueza produzida.
As ditas reformas aceleraram as mudanças na composição e repartição da riqueza social, acentuaram as assimetrias entre o crescimento de países e regiões e aprofundaram as desigualdades na distribuição da renda entre as classes sociais.
Nesse ambiente, sucederam-se os episódios de “inflação de ativos” acompanhados da persistente fuga do capital manufatureiro para regiões de menor custo de mão de obra. Não espanta que, ao longo dos ciclos de prosperidade, fossem intensos os surtos de eliminação dos melhores postos de trabalho nas economias centrais. A desregulamentação e as novas regras fiscais montaram uma usina de desigualdades e uma fábrica de instabilidades.
É tolice, senão esperteza, buscar os “culpados” pelo desfecho desastroso das políticas adotadas a partir da “estagflação” dos anos 1970. Os slogans que proclamavam “mais mercado e menos Estado” não são menos ridículos do que a aceitação dessa falsa dicotomia por quem deveriam criticá-la. O jogo entre o Estado e os mercados cuida, com especial carinho, das relações entre as classes sociais, ou seja, das formas e condições de apropriação da riqueza e da renda entre os protagonistas antagônicos do processo de criação de valor. No capitalismo realmente existente, não há “espontaneidade” ou “naturalidade” nas normas que regem a acumulação de riqueza monetária e abstrata, obtida mediante a produção de novos valores (mercadorias) e o rastro de direitos representativos da propriedade e das relações débito-crédito.
O desenvolvimento da crise demonstra que a eficácia dos instrumentos de “intervenção” do Estado, leia-se, a carga tributária, os níveis de gasto e de endividamento do governo, estão submetidos à preservação do poder privado de acumular riqueza social. A “confiança” dos controladores privados do crédito é decisiva para conferir força e legitimidade à política fiscal e de endividamento público.
Se o desequilíbrio fiscal e o crescimento do débito público na composição dos patrimônios privados tornarem-se, na visão dos mercados, fenômenos profundos e duradouros, a desconfiança dos possuidores de riqueza se desloca das desgraças da finança privada para a situação financeira do Estado. Neste momento, os senhores do universo, salvos pela vigorosa intervenção do Estado, já consideram insustentáveis a trajetória das dívidas privadas e públicas, passivos que criaram generosamente na etapa da euforia inconsequente. O estoque de liquidez injetada nas reservas bancárias para adquirir a massa de ativos privados podres se recusa a produzir os novos fluxos de crédito para governos, empresas e famílias. A isso Keynes chamou de “armadilha da liquidez”, o predomínio absoluto do estoque de riqueza monetária e abstrata sobre o impulso a produzir novo valor, criando renda e emprego.
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