Médicos precisam repensar seus valores, antes que seja tarde
Renato Rovai
De tempos em tempos surgem denúncias envolvendo esquemas de corrupção ou denúncias de cobranças indevidas envolvendo médicos em diversos cantos do Brasil. A última operação neste sentido foi realizada há poucos dias, no dia 2 de janeiro. A operação de nome Desiderato, teve o objetivo de desarticular uma organização criminosa que desviava verbas do Sistema Único de Saúde (SUS).
A ação aconteceu em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina e foram cumpridos sete mandados de condução coercitiva, oito de prisão temporária, além de 21 mandados de busca e apreensão e 36 de sequestro de bens e valores.
De acordo com a Polícia Federal, produtos pagos pelo SUS eram desviados por cardiologistas para fins privados. Esses médicos ainda se beneficiavam de acordos com as empresas fornecedoras de materiais hospitalares e recebiam propina.
A investigação apontou que eram simuladas cirurgias e que as próteses não utilizadas eram desviadas e utilizadas em procedimentos nas clínicas de propriedade dos membros do grupo.
O problema simbólico dessa investigação é que ela não é um caso isolado. Ao contrário, se o leitor fizer uma busca no Google com palavras de denúncias de corrupção e de cobranças indevidas envolvendo profissionais de medicina, ficará chocado.
Todos os médicos são corruptos? Evidente que não. A maior parte deles trabalha duro e em condições precárias. Mas espalha-se a sensação de que essa categoria, que tem entre as suas atribuições a de zelar pela vida do paciente com a maior ética possível, tem se tornado cada dia mais mercantilista. E de menor espírito público.
Os esquemas de corrupção em procedimentos, compras de medicamentos e em bular horários de trabalho, incluindo casos de manufaturas de dedos de silicone para bater o ponto são recorrentes.
Mas há outro tipo de corrupção, em geral praticada de forma individual pelo profissional, e cujas denúncias abundam. Relatos de médicos que solicitam pagamentos extras pra realizar procedimentos pelo SUS são abundantes. Algo como se um professor dissesse que só ensinaria até a tabuada do quatro com o salário que recebe. E que o resto só se o pai lhe pagasse um valor à parte.
O paciente e seus familiares, em geral fragilizados, quando podem aceitam a chantagem e tocam a vida para a frente sem denunciar o crime.
As entidades médicas sabem que isso é comum. Mas não tratam do tema, porque na categoria se construiu o entendimento de que como o governo paga pouco para os procedimentos, essa solução se torna natural.
Ou seja, naturalizou-se a corrupção.
Ao mesmo tempo os médicos se organizaram como nunca para enfrentar o programa Mais Médicos, do governo federal. Que pode ter seus defeitos, mas que ampliou o atendimento em áreas onde não se conseguia resolver problemas básicos de saúde por ausência de profissionais da área.
Não se trata de jogar nas costas do médico o problema da saúde no Brasil. Que, aliás, também não é algo vinculado à corrupção, como alguns insistem em dizer. No Brasil, gasta-se muito pouco per capita com a saúde. Nosso principal problema é de orçamento e fontes de financiamento. E a despeito disso, o país ainda tem um atendimento universal de nível médio.
Na lógica da Belindia, não somos uma Bélgica, mas estamos muito mais longe de ser uma Índia.
Esses casos coletivos e individuais de corrução envolvendo médicos deveriam ser o centro das atenções de suas entidades organizativas, mas não são. A opção tem sido o silêncio. Se o leitor for aos sites dessas entidades, não vai encontrar nada sobre o tema. Nada sobre, por exemplo, a Operação Desiderato.
Ao fazer isso, o recado que se dá é que não se trata de algo importante. E que não há nada o que explicar. Num primeiro momento pode funcionar. E ajudar o assunto a sair de pauta. Mas se o olhar buscar um ponto mais ao longe, ficará claro que esse tipo de postura contribuirá para desgastar cada vez a imagem do profissional da medicina. Que já foi muito mais respeitado no Brasil.
Renato Rovai é editor da Revista Fórum
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