domingo, 20 de março de 2011

Contraponto 4995 - "Vamos ter um novo Afeganistão?"

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20/03/2011
Vamos ter um novo Afeganistão?

Do Direto da Redação - Publicado em 20/03/2011

Rui Martins*

Berna (Suiça) - O coronel Khadafi não é nenhum santo e nem flor que se cheire, porém essa guerra, em frente à Europa, contra um país com um vasto deserto, pode virar um outro Afeganistão. Quem tem razão ? Sarkozy, o presidente francês, que conseguiu obter do Conselho de Segurança uma resolução favorável à intervenção ? Angela Merkel e Dilma Rousseff, as duas mulheres que, pela Alemanha e pelo Brasil, preferiram uma moderada abstenção, ou Chaves e Morales, defensores de Khadafi, que seria vítima de uma guerra neocolonialista ?

Não esperem de mim a resposta. Seria muito cômodo para o leitor, pegar aqui os argumentos e ir dormir sossegado, sabendo porque é contra ou a favor. Prefiro mostrar quem está envolvido, ficando a conclusão para cada um.

Por que a ONU, que foi contra a invasão do Iraque, aprovou os bombardeios aéreos na Líbia, sob a justificativa de se impedir os ataques do coronel Khadafi ao seu próprio povo ? Temos de voltar à época da guerra na ex-Iuguslávia, quando os sérvios, a fim de manter a unidade do país e guardar sua supremacia, começaram a atacar as comunidades civis da Bósnia Herzegovínia. De acordo com decisões do Tribunal Penal Internacional os sérvios de Slobodan Milosevich cometeram genocídio, durante uma guerra que durou mais de três anos. Uma guerra que envolvia nacionalismo, política e religião.

Durante esse período, a ONU, dirigida pelo egípcio Butros Galli, não interferiu para impedir o genocídio, e a Otan acabou entrando na região só na fase final. Essa guerra tinha alguns aspectos estranhos, porque Slobodan Milosevich dirigia um dos últimos países comunistas na Europa e o fato de lutar contra os croatas, que apoiaram a Alemanha na Segunda Guerra Mundial, e de ter sido combatido pela Otan, deu a pista falsa de guerra política. Na verdade, era uma questão étnica que se afirmou no momento final dos ajustes, quando os albaneses habitantes do Kosovo pediram sua independência.

Os sérvios diziam que o Kosovo era deles, pois ali estavam os fundamentos históricos do país. Porém, a imigração albanesa se tornou majoritária, mudou a fisionomia do Kosovo e como as duas comunidades não se misturaram, veio a guerra. Naquela vez, ONU decidiu intervir para evitar os choques entre as duas comunidades e o Kosovo acabou obtendo sua independência.

Essa intervenção da ONU dentro de um território sérvio foi justificada pelo princípio da “ingerência humanitarian”, criado na época da Guerra do Biafra, pelo francês criador dos Médicos Sem Fronteiras, Bernard Kouchner, posteriormente político e ministro dos governos de Mitterrand e Sarkozy. A Guerra de Biafra foi a secessão de uma parte do território da Nigéria, ex-colônia inglesa, onde havia muito petróleo.

O princípio da ingerência humanitária chegou a ser invocado quando Saddam Hussein exterminou algumas aldeias curdas com gás letal, porém não foi usado para justificar a invasão do Iraque, nem a primeira e nem a segunda. Mas, embora pouco seja citado atualmente, está por detrás da resolução votada pelo Conselho de Segurança da ONU, autorizando atacar Khadafi.

O voto favorável de dez países à intervenção na Líbia foi motivado pelo fato do coronel Khadafi ter reagido de maneira violenta e desproporcional aos primeiros protestos dos líbios contra seu governo. Os países árabes vivem, neste momento, o efeito dominó de uma revolução pela democracia, pelo pluripartidarismo e contra regimes autocráticos, desfechado por jovens na Tunísia e que derrubou o ditador Ben Ali. Logo depois, o movimento se propagou para o Egito, onde foi derrubado pelo povo o presidente vitalício local Hosni Mubarak.

Esses dois presidentes ou ditadores eram amigos da França e dos EUA, mas isso em nada lhes ajudou, pois diante da exigência popular foram abandonados por seus amigos e tiveram de renunciar. Mas a chamada Primavera Árabe chegou também na Líbia, onde o coronel Muammar Khadafi governa há 42 anos, e o povo começou a fazer manifestações como fizeram os tunisianos e egípcios. Porém, Khadafi, antigo líder popular, não aceitou a contestação, alegando ser insuflada pela Al Qaeda, de Bin Laden e por fundamentalistas.

Ao contrário do ocorrido na Tunísia e Egito, a contestação virou revolta e as próprias declarações iradas de Khadafi, dizendo que ia acabar com os revoltados, levantou a teoria da ingerência humanitária. Mas, é claro, nem sempre a França, Inglaterra ou os EUA se sensibilizam com as dores do povo. É preciso que isso possa levar a vantagens políticas ou econômicas.

Dizem que Sarkozy, cuja reeleição não é certa, estava mal cotado por suas péssimas posições durante as revoltas na Tunísia e Egito. Ao assumir a defesa do povo líbio poderia ver seu Ibope melhorar, o que parece confirmado neste começo da guerra contra Khadafi. E não se pode esquecer que a Líbia é um país rico em petróleo, extraído pelas grandes multinacionais francesa, inglesa e americana do petróleo. Mas não será correto se ignorar que o povo líbio mostrou querer democracia e mudança no governo.

Muammar Khadafi tem um passado de combatente contra o colonialismo, adulado pela esquerda, e patrocinou movimentos de libertação, porém, existem algumas notas negativas no seu dossiê. A mais recente foi o contencioso com a Suíça, pois seu filho Hanibal, conhecido como violento, tinha batido nas empregadas domésticas quando num hotel em Genebra. Preso para prestar depoimento, isso provocou a ira do pai Khadafi que sequestrou e prendeu dois empresários suíços, em Tripoli, obrigou o presidente suíço a uma degradante submissão e pediu na assembléia-geral da ONU o desmembramento da Suíça.

Alguns anos antes, houve o caso das enfermeiras búlgaras e de um jovem médico palestino injustamente acusados de terem infectado voluntariamente crianças com Aids e passíveis de pena de morte. O processo durou oito anos, durante o qual os acusados estiveram presos e só foram libertados graças à intervenção da ex-esposa do presidente Sarkozy, Cecília, ainda no começo do seu mandato.

Antes disso, Khadafi foi acusado de ter derrubado um avião da Panam sobre a região de Lockerbie na Escócia, atentado que matou quase 300 pessoas. Houve também um avião francês de passageiros derrubado, num atentado semelhante, na África.

Esse o quadro. Agora o futuro – um general belga afirmou hoje uma verdade conhecida pelos militares : quando se começa uma guerra nunca se sabe onde isso vai levar. Pode ser que a guerra contra Khadafi termine nas próximas semanas, mas – e esse é o risco – pode ser outra Caixa de Pandora, como foi a guerra contra o Iraque e contra o Afganistão.

A Líbia tem uma grande parte do seu território formada de desertos de areia. Se Khadafi conseguir convencer seu povo de que o país está sofrendo uma invasão estrangeira e neocolonialista, como está afirmando na televisão, a Líbia, bem em frente à Europa, poderá se transformar num Afeganistão número 2, com o risco de levar atentados para dentro da Europa. E poderá mesmo acabar com a Primavera Árabe, pois o desejo de democracia dos jovens poderá ser substituído pela revolta contra os americanos e os ocidentais.

As próximas semanas nos dirão para que lado soprará o vento e se Sarkozy ganhou ou se foi um frustrado aprendiz de feiticeiro.

*Rui Martins. Jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura, é líder emigrante, ex-membro eleito no primeiro conselho de emigrantes junto ao Itamaraty. Criou os movimentos Brasileirinhos Apátridas e Estado dos Emigrantes, vive em Berna, na Suíça. Escreve para o Expresso, de Lisboa, Correio do Brasil e agência BrPress.
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