.14/08/2011
Da Carta Maior - 13/08/2011
O pressuposto teórico da política que está sendo aplicada na Inglaterra e em outros países europeus é que o investimento público e o endividamento estatal estão limitando o investimento privado. Nesta lógica, se se limita o investimento do setor público, serão liberadas as forças do setor privado. "Isso pode funcionar quando há pleno emprego, não quando há uma redução de demanda como a atual. Muito menos quando o comércio mundial está mostrando claros sinais de crise”, diz o especialista keynesiano Lord Robert Skidelsky (foto) à Carta Maior. Nos últimos 12 meses, Inglaterra teve a pior queda do nível de vida desde o pós-guerra.
Marcelo Justo - Correspondente da Carta Maior em Londres
A vantagem do Reino Unido é que não está no turbilhão da eurozona. Seu pesadelo é que se encontra em meio ao mais drástico programa de corte orçamentário da União Europeia. Os distúrbios que sacudiram Londres e outras cidades britânicas são uma mostra das tormentas sociais deste neoliberalismo inflexível. Mas o impacto não se limita às desventuras de pobres e excluídos. Com algumas poucas exceções no topo da pirâmide, a sociedade em seu conjunto está sofrendo o mega-ajuste. Segundo o respeitado Instituto de Estudos Fiscais, o Reino Unido experimentou nos últimos 12 meses a pior queda do nível de vida desde o pós-guerra.
A crise é profunda. Com o estouro financeiro de 2008, o modelo impulsionado pelo thatcherismo na década de 80 – predominância do setor financeiro, abertura econômica, desindustrialização – está fazendo água. O crescimento baseado no consumo graças ao crédito barato tocou seu limite. A dívida individual supera a casa dos 2 trilhões de dólares. A dívida pública se aproxima dessa cifra, equivalente a quase 70% de seu PIB, cortesia do resgate do setor financeiro e do estímulo à economia lançado no ano passado pelo governo trabalhista para evitar uma crise como a de 30. Com um déficit fiscal de 11%, a coalizão conservadora-liberal democrata do primeiro ministro David Cameron apostou em um programa de austeridade invocando o fantasma da crise grega. O ajuste, anunciado em junho do ano passado, consiste em um corte equivalente a 130 bilhões de dólares em cinco anos: cerca de 26 bilhões de dólares anuais. O objetivo é eliminar o déficit em 2015. O problema é aquele que tem todas as outras economias europeias que tentam sair da estagnação pela via da austeridade fiscal: de onde vai sair o crescimento?
O especialista keynesiano britânico, autor de “Keynes, o regresso do mestre”, Lord Robert Skidelsky, chama o programa de ajuste dos países europeus de “o grande experimento”. Segundo ele, estão colocando os ensinamentos da história econômica em um laboratório para ver se conservam sua validade. “Na crise de 30, John Maynard Keynes demonstrou que, em meio a uma crise, o Estado tinha que intervir para evitar uma depressão. A política adotada pelo governo britânico – e pela maioria dos governos europeus – tem sido a contrária. O keynesianismo inicial do início da crise foi uma reação instintiva de políticos que não queriam uma repetição da crise de 30, mais um resgate emergencial que um programa de médio prazo. Restaurada uma mínima normalidade, lançaram-se a este grande experimento que é abandonar tudo aquilo que foi aprendido”, disse Lord Skidelsky à Carta Maior.
A esquiva via exportadora
Em 2009, o PIB britânico caiu 4,9%. O programa de ajuste da coalizão foi um salva-vidas de chumbo para uma economia que começava a dar tímidos sinais de recuperação no ano passado. O corte médio do gasto ministerial foi de aproximadamente 20%: cerca de 500 mil postos estatais desaparecerão nos próximos dois anos. O impacto no consumo foi notável. No final de junho, a cadeia de música e vídeos HMV anunciou o fechamento de 60 lojas, a rede de moda Jane Normam fechou 33 lojas, a de chocolates Thortons cerca de 180 e a de tapetes Carpetright outras 27.
Em uma economia acostumada a crescer graças ao consumo e ao crédito fácil, o resultado está à vista. No último trimestre de 2010, o PIB teve uma queda de 0,7% e o governo atribuiu o fato às...fortes nevascas de dezembro. Nos dois primeiros trimestres, o crescimento se situou entre 0,5 e 0,7%. As desculpas governamentais seguiram mostrando uma enorme dose de engenho. O casamento do príncipe William com Kate Middleton no final de abril, que havia despertado expectativas de crescimento via maior consumo, passou de sinal alentador à justificação do pobre desempenho pela quantidade de feriados. A oposição trabalhista que não propõe um modelo radicalmente diferente, assinala o óbvio: este corte, “demasiado rápido e demasiado profundo”, implica uma menor arrecadação de impostos, uma maior gasto fiscal pela via do desemprego e uma queda da atividade econômica pela diminuição do consumo.
A resposta do governo é que o plano era imprescindível para conservar a confiança dos mercados financeiros e que o setor privado vai preencher o vazio. “O pressuposto teórico desta política é que o investimento público e o endividamento estatal estão limitando (“crowding out”) o investimento privado. Em outras palavras, se se limita o investimento do setor público, serão liberadas as forças do setor privado. Isso pode funcionar quando há pleno emprego, não quando há uma redução de demanda como a atual. Muito menos quando o comércio mundial está mostrando claros sinais de crise”, disse ainda Lord Skidelsky à Carta Maior.
A estratégia governamental tem um problema adicional. A reestruturação econômica thatcherista nos anos 80 reduziu o setor industrial a cerca de 13% do PIB. Nem sequer a desvalorização da libra, que perdeu cerca de 20% de seu valor em relação à eurozona, principal sócio comercial do Reino Unido, serviu para sustentar esta via. Após alguns meses alentadores, junho mostrou a queda mais estrepitosa dos pedidos de compra desde maio de 2009.
Na quarta-feira, o Banco Central da Inglaterra voltou a rebaixar as perspectivas de crescimento para este ano, de 1,8 para 1,4%. “O vento contra em nível mundial e no nosso consumo doméstico estão intensificando-se diariamente”, assinalou o diretor do Banco da Inglaterra, Mervyn King. Na realidade, seu prognóstico é otimista. O banco se caracterizou por ajustar periodicamente para baixo suas previsões de crescimento. King esclareceu que seus cálculos não levavam em contra “o inimaginável, que é melhor não mencionar”: o risco de uma crise total na dívida da eurozona. Em todo caso, como tinham advertido os keynesianos, o plano atual não parece servir sequer para a eliminação do déficit. A mesma Oficina Nacional de Estatísticas indicou recentemente que o Reino Unido não poderá cumprir suas próprias metas de redução do déficit nestes cinco anos.
O futuro
O governo converteu o ajuste em um artigo de valor religioso: abandoná-lo seria uma heresia. Neste contexto, as armas que restam são reduzidas. A taxa de juros não se moveu do 0,5% nos últimos 22 meses: o nível mais baixo desde o pós-guerra. Apesar disso, o crédito não flui nem para os consumidores nem para as pequenas ou médias empresas porque os bancos estão reconstituindo seus balanços depois da festa financeira. Na quarta-feira, o diretor do Banco da Inglaterra insinuou abrir novamente a carteira e imprimir mais dinheiro. “Uma política monetária expansiva, a possibilidade de um crescimento da demanda mundial e o atual valor da libra esterlina deveriam melhorar nossa economia”, disse King como quem atira para o ar para ver se acerta algum pássaro.
O governo insinuou que poderia rebaixar o imposto de 50% para os que ganham mais de 150 mil libras (cerca de 220 mil dólares), mas não há nenhuma garantia que essa soma será reinvestida na economia ou servirá para tentar tirá-la do poço. Enquanto isso, mesmo em uma sociedade tradicional e conservadora, que ainda sonha com seus anos de glória imperial, as mostras de descontentamento vão aumentando. No ano passado, os estudantes puseram em xeque o governo com seu protesto contra o aumento das matrículas universitárias. Em março, mais de 500 mil pessoas se manifestaram contra os ajustes. Os distúrbios dos últimos dias assinalam que, além disso, a crise pode terminar em uma desintegração social como a pintada por Anthony Burgess, em “A laranja mecânica” ou por J.G Ballard, em suas novelas sobre um mundo futuro fragmentado pela febre consumista e pela desigualdade.
Tradução: Katarina Peixoto
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