13/01/2010
O americano tranquilo
Carta Maior - 11/10/2010
Durante a campanha eleitoral, Obama prometeu, com entusiasmo febril de candidato, que aprofundaria a guerra no Afeganistão, como uma espécie de “compensação” pela retirada do Iraque. Hoje, está atolado no Iraque e no Afeganistão. Pior: está prestes a atolar-se numa terceira guerra.
Uri Avnery*
O Americano Tranquilo é o herói do romance de Graham Greene sobre a primeira guerra do Vietnã, na qual os franceses foram derrotados.
Era um norte-americano jovem e ingênuo, filho de um professor, que fora bem educado em Harvard, um idealista com todas as melhores intenções. Quando chega como soldado ao Vietnã, queria ajudar os nativos a superar os dois principais males que via lá: o colonialismo francês e o comunismo. Sem saber coisa alguma sobre o país no qual estava, provocou um desastre. O romance termina num massacre – resultado dos esforços desorientados do “americano tranqüilo”. Comprovou-se a velha máxima: “A estrada para o inferno é pavimentada de boas intenções”.
Já se passaram 54 anos depois que esse livro foi escrito, mas parece que o americano tranquilo não mudou. Ainda é idealista (pelo menos, ele acredita que seja idealista), ainda deseja levar a redenção a povos estrangeiros distantes sobre os quais nada sabe; e ainda provoca desastres terríveis: aconteceu no Iraque, no Afeganistão e agora, parece, no Iêmen.
O exemplo do Iraque é o mais simples de todos.
Os soldados norte-americanos foram mandados ao Iraque para derrubar o regime tirano de Saddam Hussein. Havia, é claro, outros objetivos menos altruístas, como assumir o controle do petróleo iraquiano e instalar o exército dos EUA no coração da região petroleira do Oriente Médio. Mas a aventura foi apresentada ao público norte-americano como empreitada idealista contra um ditador sanguinário que ameaçava o mundo com bombas nucleares.
Isso, há seis anos, e a guerra prossegue. Barack Obama, que se opôs à guerra desde o início, prometeu tirar os norte-americanos de lá. Apesar de muita conversa, não há fim à vista.
Por quê? Porque os que realmente tomam decisões em Washington não têm nem ideia do que é o país que querem libertar e ajudar a viver feliz para sempre.
Desde o início, o Iraque foi Estado artificial. Os britânicos costuraram umas às outras várias províncias otomanas, considerando os seus, dos britânicos, interesses coloniais. Coroaram um árabe sunita como rei dos curdos, que não são árabes, e dos xiitas, que não são sunitas. Só uma sucessão de ditadores, cada um mais brutal que o antecessor, impediu que o Estado se esfacelasse.
Os planejadores em Washington não têm qualquer interesse na história, na demografia nem na geografia do país que invadiram com força brutal. O caso, olhado de Washington, pareceu bem simples: alguém teria de derrubar o tirano, estabelecer instituições democráticas à maneira dos EUA, fazer eleições livres... E tudo o mais entraria “naturalmente” nos eixos.
Ao contrário das expectativas, os norte-americanos não foram recebidos com flores. Não se encontrou lá a terrível bomba atômica de Saddam. Como o elefante na loja de porcelana do provérbio, quebraram tudo, destruíram o país e acabaram presos num pântano.
Depois de anos de operações militares sangrentas que levaram a parte alguma, encontraram afinal uma panaceia. Para o inferno o idealismo; para o inferno os altos ideais; para o inferno todas as doutrinas militares. – Hoje, os EUA não fazem outra coisa além de subornar os chefes tribais que, sim, são a realidade do Iraque.
O americano tranquilo não sabe como se safar de lá. Sabe que, se sair agora, há risco de o país se autodesintegrar em matança geral.
Dois anos antes de invadir o Iraque, os norte-americanos invadiram o Afeganistão.
Por quê? Porque uma organização chamada Al-Qaeda (“a base”) declarara-se autora da destruição das Torres Gêmeas em New York. Os chefes da Al-Qaeda estavam no Afeganistão, lá estavam seus campos de treinamento. Para os norte-americanos, tudo pareceu simples – ninguém precisou pensar outra vez (de fato, parece, ninguém tampouco pensara antes).
Se os EUA conhecessem o país que decidiram invadir, talvez tivessem hesitado. O Afeganistão é um histórico cemitério de exércitos invasores. Grandes impérios saíram de lá escafedidos, com o rabo entre as pernas. Diferente do Iraque, que é plano, o Afeganistão é país montanhoso, um paraíso para a guerra de guerrilhas. Além de ser lar de vários povos e de incontáveis tribos, cada povo e cada tribo é furiosamente zeloso da própria independência.
Os estrategistas em Washington não tomaram conhecimento de nada disso. Para eles, parece, todos os países são idênticos, todas as sociedades são iguais. No Afeganistão, também, bastaria estabelecer uma democracia livre à moda dos EUA, com eleições à moda dos EUA e viva! – tudo daria certo e para sempre.
O elefante entrou na loja de porcelanas sem pedir licença e obteve vitória estrondosa. A Força Aérea “bombou”, o exército não encontrou obstáculos, a Al-Qaeda sumiu como fantasma, os Talibãs (“estudantes religiosos”) fugiram como coelhos. As mulheres poderiam voltar a andar pela rua sem véus, as meninas encheriam as escolas, os campos de ópio voltariam a florescer – e também floresceriam sem obstáculos os amigos de Washington em Cabul.
Contudo… a guerra prossegue, ano após ano, o número de norte-americanos mortos sobe inexoravelmente. Para quê? Ninguém sabe. É como se a guerra tivesse adquirido vida própria, sem quê nem por que, sem objetivo, sem razão. Norte-americano que esteja no Afeganistão e olhe em volta, tem de perguntar-se: o que, diabos, estamos fazendo aqui?
O objetivo imediato, a expulsão da Al-Qaeda do Afeganistão, foi ostensivamente alcançado. A Al-Qaeda já não está lá – supondo-se que algum dia tenha estado.
Escrevi certa vez que a Al-Qaeda é invenção dos EUA e que Osama Bin-Laden foi descoberto pela central de seleção de atores de Hollywood e mandado para fazer aquele papel. Osama Bin-Laden é perfeito demais para ser autêntico.
Claro, estou exagerando um pouco. Mas só um pouco. Os EUA vivem precisando de um inimigo universal. No passado, foi o Comunismo Internacional, cujos agentes eram vistos atrás de cada árvore, por baixo de cada tábua do assoalho. Infelizmente, já não há União Soviética, há falta de inimigo, alguém teria de preencher o papel. Foi quando acharam a jihad planetária, encarnada na Al-Qaeda. Esmagar o “Terrorismo Universal” passou a ser a razão de ser de tudo que os EUA fazem.
Essa razão de ser não é razão; como objetivo, é irracional. O terrorismo é arma, instrumento de guerra. As mais diferentes organizações fazem uso do terror, há terror dos dois lados em luta nos mais diferentes países, cada lado com seu objetivo diferente e muitas vezes oposto a todos os demais; há terroristas de todos os lados. Fazer guerra universal contra “o terror internacional” é como fazer guerra a alguma “artilharia internacional” ou a alguma “marinha internacional”.
Não há, no planeta, nenhum movimento terrorista universal liderado por Osama Bin-Laden. Graças aos EUA, “Al-Qaeda” tornou-se griffe prestigiada no mercado da guerrilha, assim como “McDonald” e “Armani”, no mundo do fast-food e da moda. Cada militante de organização islâmica pode hoje se apropriar da griffe, mesmo sem pagar royalties a Bin-Laden.
Os governos controlados pelos EUA, que sempre rotularam de “comunistas” os seus inimigos locais, para obter ajuda dos patrões norte-americanos, hoje rotulam os seus inimigos locais de “terroristas da Al-Qaeda”.
Ninguém sabe onde está Bin-Laden – nem se existe ou está vivo. Ninguém sabe, sequer, se está no Afeganistão. Há quem diga que se mudou para o vizinho Paquistão. E mesmo que lá esteja: que fundamento há em alguém fazer guerra e matar milhares de homens, mulheres e crianças... Para caçar um único homem?
Há os que dizem: OK, Bin-Laden não existe. Mas é preciso impedir a volta dos Talibãs ao governo do Afeganistão. Por que, santo deus?! Quem são os norte-americanos que mandam no Afeganistão? Querem o quê? Pode-se ter todos os argumentos do mundo contra todos os fanáticos religiosos do mundo, e contra os Talibãs especificamente e, mesmo assim... Seria motivo para essa guerra interminável?
Se os afegãos preferem ser governados pelos Talibãs, em vez dos mercadores de ópio que hoje estão no poder em Cabul... o problema é deles! E parece que, sim, que preferem os Talibãs, dado que, como antes e até hoje, os Talibãs outra vez controlam praticamente todo o país, ou quase isso. Nada justifica uma guerra como a do Vietnã, no Afeganistão. OK, mas... e como é que os EUA sairão de lá? Obama não sabe.
Durante a campanha eleitoral, Obama prometeu, com entusiasmo febril de candidato, que aprofundaria a guerra no Afeganistão, como uma espécie de “compensação” pela retirada do Iraque. Hoje, está atolado no Iraque e no Afeganistão. Pior: está prestes a atolar-se, também, numa terceira guerra.
Durante os últimos dias, o nome do Iêmen está em todas as manchetes. Iêmen – um segundo Afeganistão, um terceiro Vietnã. O elefante está pronto para entrar em outra loja de porcelanas. Dessa vez, tampouco está preocupado com a porcelana.
Sei pouco sobre o Iêmen, mas sei o suficiente para entender que só doido teria qualquer interesse em deixar-se enredar lá. É mais um Estado artificial, composto de metades incompatíveis – o país de Sanaa no norte e o sul (ex-britânico). A maior parte do país é montanhosa, controlada por tribos belicosas que defendem todas, a própria independência. Como o Afeganistão, é um paraíso para especialistas locais em guerra de guerrilhas.
Lá também há um grupo que adotou a griffe “Al-Qaeda”: é a “Al-Qaeda da Península Arábica” (depois que os militantes iemenitas uniram-se aos irmãos sauditas). Mas seus chefes interessam-se muito menos pela revolução mundial do que pelas intrigas e batalhas das tribos entre elas e o governo “central” – uma realidade com história de milhares de anos. Só doido absoluto poria a própria cabeça nesse travesseiro.
O nome Iêmen significa “a terra à direita”. (Se se olha para Meca a partir do Oeste, o Iêmen fica à direita, com a Síria à esquerda.) A direita também conota felicidade; e o nome Iêmen é associado a al-Yamana, palavra em árabe para “estar feliz”. Os romanos chamavam aquela terra de Arabia Felix (“Arábia Feliz”), porque era terra próspera, que enriqueceu no comércio de especiarias.
(Aliás, por falar nisso, talvez interesse a Obama saber que outro líder de superpotência, César Augusto, tentou uma vez invadir o Iêmen e foi rechaçado.)
Se o americano tranquilo, na sua mistura de idealismo e ignorância, resolver levar para lá a democracia e as quinquilharias de sempre, porá fim a qualquer felicidade que lá ainda haja. Os EUA afundarão em outro pântano, dezenas de milhares de pessoas serão mortas. Tudo terminará em desastre.
É possível que o problema tenha raízes – inter alia – na arquitetura de Washington DC.
A cidade é tomada por prédios enormes, de ministérios e escritórios e serviços oficiais da única superpotência que há no mundo. As pessoas que trabalham lá sentem o poder tremendo daquele império. Olham para os chefes tribais do Afeganistão e do Iêmen como um rinoceronte olha as formigas que correm entre suas patas. O rinoceronte caminha sem ver por cima das formigas. Mas alguma formiga sempre sobrevive.
Além do mais, o americano tranquilo faz pensar também no Mefistófeles do Fausto, de Goethe, que se autodefine como a força que “sempre quer o mau e sempre cria o bom”. Só que ao contrário.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1263069068/
Tradução: Caia Fitipaldi
*Uri Avnery é jornalista, membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense).
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