20/03/2012
Da Carta Capital - 20/03/2012
Por Marcio Sampaio de Castro
“Sigam a trilha do dinheiro”, dizia o já lendário Garganta Profunda aos repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein durante as investigações do escândalo Watergate, que levaria à renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon. Seguindo essa lógica, passados um ano da Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, que permitiu o início de mais uma “guerra humanitária”, e cinco meses da derrubada e do assassinato de Muamar Kaddafi na Líbia, é possível fazer um balanço e dizer que os eventos que conduziram a esse desfecho podem ser classificados como qualquer coisa, menos de “humanitários”.
Um olhar mais detido sobre as ações de Kaddafi no continente africano nos anos que antecederam as ações da OTAN – o braço armado do Ocidente e de suas instituições – permite iluminar diversas questões inexploradas pelo complexo midiático ocidental – frequentemente a atuar como um braço propagandístico travestido de jornalismo.
Até às vésperas do levante, o ditador líbio liderava a União Africana, que por diversas vezes barrou a iniciativa dos Estados Unidos de instalarem no continente a sede do seu AFRICOM – Comando Militar da África. Por outro lado, o fortalecimento do Banco Africano de Desenvolvimento, com recursos advindos principalmente do petróleo extraído sob regras determinadas pela Líbia National Oil Corporatoin (empresa estatal), vinha representando um paulatino afastamento do bloco do controle financeiro draconiano exercido por instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
O exemplo mais emblemático foi a criação do RASCOM (Organização Africana de Comunicação Regional por Satélite, na sigla em inglês). Cansados de pagar uma taxa anual de 500 milhões de dólares para alugar satélites europeus, o que resultava nas tarifas de telefonia mais caras do mundo, os africanos resolveram adquirir seu próprio satélite por 400 milhões de dólares. Após 14 anos de idas e vindas, com promessas e pré-condições estabelecidas pelas instituições financeiras presididas por norte-americanos e europeus, em 2007, o governo líbio bancou ¾ do valor para aquisição do equipamento, enquanto instituições de fomento africanas cobriram a fatia restante.
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Estima-se que nas duas últimas décadas o país do Magreb tenha investido em outros países do continente, principalmente na região subsaariana, algo em torno de 150 bilhões de dólares. Recursos empregados em investimentos que foram desde a criação de fábricas e hotéis até a compra de armas para a manutenção de regimes aliados.
Mas a ousadia maior do excêntrico Kaddafi foi a ideia de criar o gold dinar, uma moeda única africana a ser usada, entre outras coisas, para todas as transações com o petróleo líbio, que deveriam passar inevitavelmente pelo seu Banco Central, em substituição ao dólar e ao euro.
Para viabilizar essa guinada, as reservas em ouro no país chegavam às vésperas do levante a 144 toneladas. Uma das maiores do mundo. Não é difícil imaginar que esse projeto tenha deixado muita gente acima do Trópico de Câncer insatisfeita.
As portas do inferno naturalmente se abriram para o ditador líbio e a rebelião armada, que levou à Resolução do CS da ONU, emitida com o objetivo de “evitar um banho de sangue”, no dizer de alguns líderes ocidentais, foi vista com bons olhos por muitos que até podiam tolerar o seu passado terrorista, mas não um futuro repleto de ações provocativas à estrutura econômica vigente.
Até a votação do Conselho, em março de 2011, os relatos quanto ao número de mortos pela repressão governamental variavam em um mesmo período de 200 a impressionantes 6 mil mortos.
Esta cifra mais alta de acordo com os números da ONG Federação Internacional das Ligas dos Direitos Humanos divulgados em relatório amplamente replicado pelas agências internacionais de notícia de sempre. O dado curioso é que os dados foram veiculados dias antes da votação no Conselho, o que certamente contribuiu para aumentar as pressões para que houvesse uma intervenção estrangeira na Líbia.
O fato é que, objetivamente, após o início dos bombardeios da OTAN, que deveria limitar-se somente a criar uma zona de exclusão aérea, impedindo os aviões da Força Aérea Líbia de atacar manifestações pacíficas, o número de mortos chegaria a 50 mil cinco meses após o início da intervenção, segundo dados do próprio Conselho Nacional de Transição Líbio, aliado da organização militar ocidental. Com o encerramento oficial das hostilidades, esse número é estimado entre 120 mil e 200 mil mortos. O banho de sangue parece não ter sido evitado.
A contribuição dos aviões da coalizão e dos mísseis Tomahawk para o aumento no número de mortos no conflito parece que começa finalmente a ser investigada.
Um relatório da Comissão Internacional de Investigação Líbia, apresentado ao 19º Conselho de Direitos Humanos em Genebra, Suíça, no último dia 9, questiona as ações da OTAN no país norte-africano em pelo menos 20 das diversas surtidas aéreas efetuadas pelos jatos da Organização. A representação diplomática russa, em um gesto muito mais político do que humanitário, também protocolou esta semana junto ao secretário-geral da ONU, Ban-Ki-moon, um pedido para que os “bombardeios massivos” efetuados ao longo da campanha de “libertação” e a consequente morte de civis sejam investigados.
Longe dos salões europeus, as ruas das principais cidades líbias são ocupadas agora por gangues armadas, onde tiroteios, sequestros e torturas tornaram-se lugar comum. As vítimas preferenciais desses grupos são simpatizantes do antigo regime e africanos subsaarianos. Uma busca na internet com expressões como massacre of black lybians dá acesso a vídeos para os quais é preciso ter estômago para vê-los, dado o grau de selvageria ali exibidos.
Até a ONG Médicos Sem Fronteiras anunciou no último mês de janeiro que deixaria de atuar na Líbia em função dos recorrentes casos de maus tratos contra prisioneiros praticados pelos numerosos grupos rebeldes, que assumiram o controle de forma praticamente independente entre si de diversas regiões do país. Registre-se que essas ocorrências são todas pós queda do ditador e curiosamente não têm causado sequer suspiros de indignação em nome dos direitos humanos.
No cenário externo, com o desaparecimento de Kaddafi, a África subsaariana converteu-se rapidamente em foco de uma corrida que em nada lembra a discreta movimentação chinesa na última década por ali.
Foto: Esam al-Fetor/Reuters/LatinStock
O presidente de Uganda, Yoweri Museveni, recebeu no final de 2011 em seu território um contingente de marines norte-americanos despachado para lá em nome da cooperação e do combate ao terrorismo internacional. Nos dizeres da vetusta publicação militar Star and Stripes, os soldados estão ali “para dar treinamento especializado para as forças designadas para a missão da União Africana na Somália” no combate ao grupo filiado a Al-Qaida denominado al-Shabaab. Eles também estariam por lá para auxiliar o governo local a combater o proscrito “senhor da guerra” Joseph Kony, que virou hit na internet com o vídeo Kony 2012. A peça traz denúncias de ações perpetradas pelo grupo do líder sanguinário há mais de uma década.
O que muita gente não sabe é que Yoweri Museveni foi um fiel aliado do ditador líbio, com quem planejava a construção de um oleoduto, que ligaria o país ao Quênia e depois ao mar, para escoar a sua produção de petróleo.
Descoberta há pouco mais de seis anos, a jazida ugandense é estimada inicialmente em 2 bilhões de barris e, apesar de cedida em grande parte para a exploração do grupo britânico Tullow Oil PLC, tinha em Kaddafi um parceiro importante para o desenvolvimento e financiamento de toda uma infraestrutura.
O mesmo padrão de ajuda humanitária e cooperação militar vêm se espalhando rapidamente pelo chifre da África, onde coincidentemente reservas de petróleo e gás têm mostrado um potencial nada desprezível para exploração.
Retornando à Líbia, o país que apresentava, até o início de 2011, o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da África, um PIB per capta superior ao brasileiro e uma taxa de crescimento de 10,64%, segundo dados do FMI, encontra-se agora às voltas com uma infraestrutura bastante danificada, principalmente pelos bombardeios humanitários, uma sociedade em estágio de pré-anomia e um Estado tomador de empréstimos internacionais voltados à sua reconstrução. A pergunta que fica é: para quem a guerra foi um bom negócio?
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