por Dr. Rosinha e Marcelo Zero, para o Viomundo
Perto do que fez e faz parte da nossa mídia nativa, as trapaças do império midiático de Rupert Murdoch mais parecem pequenos delitos de um reles amador.
Alguns dos jornais de Murdoch foram acusados de montar um esquema ilegal de escutas telefônicas e interceptação de e-mails para ter acesso a informações privilegiadas. Nestas paragens tropicais, certo órgão de imprensa também montou um esquema ilegal de “arapongagem”. Mas as semelhanças param por aí.
Na Inglaterra, o esquema contava com o auxílio de policiais, que vazavam informações confidenciais, principalmente para o News of The World, um jornaleco especializado em fofocas sobre celebridades. O objetivo, bastante vulgar, era dar “furos” e vender muitos exemplares. No Brasil, o esquema tinha (tem?) o auxílio decisivo de uma organização criminosa, que usava (usa?) a revista semanal de maior circulação do país para veicular informações, muitas vezes falsas, convenientes aos seus interesses econômicos e políticos.
O objetivo principal de ambos, revista e organização, bem menos prosaico que o de Murdoch, era (é?) o de acossar governos eleitos com uma série infindável de fabricados “escândalos” e, quem sabe, desestabilizá-los.
Temos de tirar o chapéu para a mídia tupiniquim, ou, pelo menos, para parte dela. Essa mídia, que já se autodefiniu, com muita propriedade, como um partido de oposição, não hesita em colocar seus interesses políticos, acobertados sob o manto da liberdade de imprensa, acima do dever de bem informar os cidadãos, das regras do bom jornalismo, do bom senso, e até mesmo das leis do país. Ante a ousadia e o cinismo dessa mídia, que chama carinhosamente a ditadura de “ditabranda” e cujos compromissos históricos com a democracia podem ser definidos, eufemisticamente, como “questionáveis”, os Murdochs empalidecem…
Claro está que ninguém questiona o direito de qualquer órgão de imprensa de ter suas fontes privilegiadas e secretas. Bob Woodward e Carl Bernstein se valeram das informações confidenciais de Garganta Profunda, o agente da CIA William Mark Felt, para fazer a sua antológica série de reportagens sobre Watergate, escândalo que levou o então presidente americano Richard Nixon à renúncia.
Entretanto, Woodward e Bernstein atuaram sob o rígido comando de Benjamin Bradlee, o grande editor do Washington Post. Bradlee exigia que as informações de Garganta Profunda fossem verificadas por, pelo menos, duas outras fontes independentes. Ademais, antes de divulgar as matérias sobre o assunto, os repórteres tinham de consultar as pessoas citadas para ver se elas queriam dar a sua versão dos fatos. Assim, mesmo com sua fonte privilegiada, Woodward e Bernstein tiveram de fazer um paciente e sério trabalho de garimpagem e análise das informações coletadas. As reportagens foram produzidas em cuidadosas doses homeopáticas, sempre com muita consistência. Aos poucos, elas foram revelando a extensão do caso. Entre o fato que as desencadeou, a invasão dos escritórios de campanha do Partido Democrata, e a transformação de Watergate num escândalo nacional, transcorreu praticamente um ano. Foi uma verdadeira maratona de jornalismo de primeiro nível, do ponto de vista ético, profissional e intelectual.
Aqui, no entanto, dá-se preferência à série de escândalos de cem metros rasos. Rasos em mais de um sentido. Como o mal disfarçado objetivo é manter o governo permanentemente acossado, instaurou-se um vale-tudo ético e profissional em algumas redações. Não interessa investigar a fundo, dar consistência factual às denúncias, ou ter um mínimo de imparcialidade e objetividade na cobertura. Interessa apenas a fabricação continuada de escândalos, não importa o quão precários sejam, pois o escândalo de hoje, uma vez esgotado, será rapidamente substituído pela denúncia de amanhã. A precariedade é tanta, que a imensa maioria dos supostos “grandes escândalos nacionais” acaba não tendo nenhuma continuidade na justiça, por absoluta falta de provas e evidências. Sob a batuta de Bradlee, nossos “jornalistas-arapongas”, mesmo os mais consagrados, não durariam uma semana sequer. Seriam mandados, aos pontapés, de volta aos cursos de formação.
Algumas das “reportagens” são simples invenções. Trata-se de um novo gênero (vá lá) literário, que mistura ficção policial de segunda, panfleto político de terceira e informações obtidas no submundo do crime.
O problema principal não é, portanto, ter como fonte Cachoeira ou outro destacado membro do crime organizado, algo que já tornou inquietantemente recorrente em alguns órgãos da nossa mídia. O problema central é a prática perigosamente usual de um péssimo jornalismo. O problema não é o uso do escroque como fonte, mas a prática sistemática do jornalismo-escroque, que frauda a busca da verdade e da informação completa e fidedigna.
Ironicamente, esse “jornalismo” não causa danos graves aos governos eleitos, a não ser pela saída de alguns ministros que, na maioria dos casos, mais tarde serão inocentados nos inquéritos. Lula passou praticamente sete anos sob intenso e cerrado bombardeio midiático, mas despediu-se com popularidade recorde, para desespero do partido de oposição travestido de imprensa. Dilma é também alvo da máquina de fabricar escândalos, mas o seu nível de aprovação popular não para de crescer.
Porém, esse “jornalismo” causa, sim, sérios danos à democracia.
O primeiro deles refere-se à tendência à simplificação moralista do debate político e à tentação autoritária nela contida. Como a oposição, midiática e partidária, não tem discurso político e intelectual alternativo ao do governo, escolheu o discurso moralista contra a corrupção como única possibilidade de se afirmar.
Tal discurso, frise-se, foi historicamente esgrimido como forma de legitimação de forças ou regimes autoritários. Hitler, por exemplo, legitimou em grande parte a sua ascensão no cenário político alemão com o recurso demagogo da “limpeza das ruas” alemãs de judeus, ciganos, comunistas e corruptos. No Brasil, a luta contra governos mais progressistas sempre foi feita sob a égide do “combate à corrupção”. Foi assim no embate contra Getúlio, cujo suicídio, impulsionado pelo udenismo, acabou por levar ao poder Jânio Quadros, cuja vassoura moralizadora, além de não ter dado nenhuma resposta ao problema da corrupção, abriu caminho para a aventura totalitária do golpe de 1964, realizado também sob o manto moralizador do combate aos corruptos e aos comunistas.
O segundo dano diz respeito à perda de centralidade dos grandes temas nacionais na arena política. Com efeito, o caráter espetacular das denúncias sobre corrupção, frequentemente intensificado por discursos moralizantes e simplificadores, que tentam explicar as mazelas do país como uma questão essencialmente ética, tende a afastar do debate político temas fundamentais para o desenvolvimento do país e até mesmo para o próprio combate à corrupção.
Tal combate, imprescindível e necessário, vem sendo feito pelas instituições republicanas de controle, como a Polícia Federal, o Ministério Público, a CGU, o TCU, etc., que, nos governos Lula e Dilma, foram consideravelmente fortalecidas. É uma luta institucional e suprapartidária, para a qual uma imprensa séria poderia prestar serviços inestimáveis. Contudo, boa parte da nossa imprensa, ao banalizar as denúncias e partidarizar histericamente suas “investigações”, presta um desserviço a esse combate e à democracia brasileira.
As travessuras de Murdoch não causaram prejuízos graves à democracia inglesa. Lá, as instituições funcionaram, e muitos já foram indiciados e presos. Aqui, os danos à democracia persistem, mas não preocupam os neoudenistas de plantão, que, sem o brilho de Carlos Lacerda, continuam impunemente empenhados nesse simulacro primário de jornalismo.
Deveriam preocupar, pois essas práticas minam a democracia que eles dizem defender e da qual todos dependemos. Quem tem como fonte Cachoeira pode acabar se afogando.
Dr. Rosinha, médico com especialização em Pediatria, Saúde Pública e Medicina do Trabalho, é deputado federal (PT-PR). No twitter: @DrRosinha
Marcelo Zero é assessor técnico da Liderança
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