22/03/2010
"O liberalismo, trunfo ideológico da direita"
Carta Maior 21/03/2010
Emir Sader*
A crise de 1929 tinha colocado o liberalismo na defensiva ou mesmo fora do campo ideológico de debates, por ser tido consensualmente acusado como culpado pela anarquia dos mercados que estava na base da maior crise vivida pelo capitalismo. O modelo keynesiano, a economia centralmente planificada soviética e os modelos fascistas – em especial na Alemanha e na Itália – tem componentes fortemente antineoliberais, tanto no plano econômico, como no político.
O esgotamento do ciclo longo expansivo do capitalismo do segundo pós-guerra permitiu o renascimento do liberalismo no plano econômico, com seu diagnóstico de que somente a desregulamentação da economia permitiria retomar seu crescimento. Foi um diagnóstico vencedor, diante do keynesanismo esgotado – e, com ele, a social democracia – e da ausência de uma interpretação anticapitalista que disputasse hegemonia com o novo modelo ascendente, que retomava com as tradições liberais no plano econômico.
Por outro lado, o fim da URSS e do campo socialista, permitiram recompor a vigência do liberalismo político, a partir das teorias do totalitarismo – que, partindo da polarização democracia/totalitarismo como a predominante para interpretar a história contemporânea, buscam amalgamar nessa categoria o nazismo e o socialismo soviético. O esquema formal da democracia liberal ganhou vezos de valor universal, tornando-se a própria definição de democracia, com seus canones gerais: eleições periódicas, separação dos poderes do Estado, pluralidade de partidos, imprensa “libre” – identificada com imprensa privada.
Essa ofensiva liberal – seja nas suas duplas dimensões, econômica e política, seja apenas numa delas – funcionou no campo teórico como um vendaval, arrasando as resistências keynesianas e, principalmente, no campo da esquerda. Como se, condenados ao capitalismo, fosse melhor optar por sua versão “democrática”, isto é, liberal, mesmo se esta estivesse acompanhada do ideário econômico neoliberal. Seria um anteparo de defesa contra as recaídas – consideradas estruturais – do socialismo em totalitarismos.
Uma analise fundamental de Perry Anderson demonstra como teóricos clássicos da radicalização da democracia e, em um caso, da fusão entre socialismo e liberalismo - como John Rawls, Habermas, Bobbio – terminaram defendendo as “guerras humanitárias”, como instrumento de imposição dos valores supostamente universais do liberalismo. (Nota: Anderson, Perry, “ Arms and Rights: The Adjustable Center”, in Spectrum, Ed. Verso, Londres, 2005).
O eurocentrismo, agora na versão yankee do “modo de vida norteamericano”, grassou por todos os quadrantes, conquistou ares de universalidade, arvorou-se no direito de invadir, destruir, ocupar, para impor seu modo de vida, como se fosse legitimado por um direito universal. (Terminada a URSS, Tony Blair reciclou a Otan para ser o bastião dos “direitos humanos” no mundo, cunhando a expressão “guerras humanitárias”, nova bandeira dos impérios, espécies de “imperialismos humanitário” ou de “imperialismo dos direitos humanos” contra as periferias.)
O socialismo reduzido ao destino totalitário, o capitalismo a destino inexorável, democracia ficou reduzido a democracia liberal, sistema econômico a capitalismo. Despareceram essas especificações, com o socialismo desapareceu também sua antípoda – o capitalismo -, numa vitória das teses do “fim da história”. Tudo o que acontecesse se daria nos horizontes da democracia liberal e da economia de mercado, o resto seriam retrocessos e não avanços.
A força ideológica da direita vem do renascimento do liberalismo. Mesmo com o esgotamento do modelo neoliberal, sua expressão política parece sobreviver sem feridas, como se não tivessem relações umbilicais. A democracia reinstaurada no Brasil teve limites claramente liberais, que não alteraram as relações de poder – da terra, do dinheiro, da mídia - herdadas da ditadura, a tal ponto que foi vítima indefesa das políticas neoliberais, de mercantalização absoluta da sociedade, às quais foi funcional.
Superar o modelo neoliberal supõe não apenas desenvolver um novo modelo econômico, mas um novo modelo político, que democratize profundamente as estruturas do Estado e adapte às necessidades de democratização profunda da nossa sociedade: da propriedade da terra, do capital financeiro, da mídia, entre tantas outras esferas.
Superar o neoliberalismo, como objetivo urgente significa também apontar para a superação do liberalismo e do capitalismo. Criar um novo bloco social, político e cultural de forças em nível nacional, que hegemonize o processo de transformações antineoliberais, numa dinâmica de construção de novas formas de poder popular e de uma sociedade humanista, solidária, socialista.
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