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.26/09/2011
Muito mais significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser governado por uma mulher é ter uma presidente que conheceu, por dentro e na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. A característica mais marcante da presidente é sua longa trajetória como militante radical de esquerda.
Maria Rita Kehl*
(*) Artigo publicado no Blog de Maria Rita Kehl
Que diferença representa para o Brasil a eleição, pela primeira vez na nossa história, de uma presidente mulher? No plano simbólico, é evidente que a escolha de Dilma Roussef revela a ausência, ou pelo menos a irrelevância dos preconceitos sexistas na determinação do voto de grande parte dos brasileiros. Também não houve, em público, manifestações machistas em reação aos primeiros problemas enfrentados pela presidente. Passados quase oito meses desde a posse, os recentes escândalos em alguns ministérios, os primeiros sinais de inflação e o risco de desaceleração econômica provocaram uma queda de oito pontos na aprovação da presidente, que ainda assim continua mais alta do que a de todos os seus antecessores em início de governo, desde a volta das eleições diretas.
Grosso modo, a escolha de Dilma parece ter sido mais pautada por razões políticas e interesses de classe do que pelo imaginário de gênero. Se assim foi, o mérito é todo dela. Durante os oito anos de seus dois governos, o presidente Lula perdeu grandes oportunidades de politizar os eleitores ao definir a relação necessariamente conflituosa entre a sociedade e seus governantes a partir de metáforas ligadas à vida familiar. Fiel ao seu estilo de homem cordial, na acepção de Ribeiro Couto/ Sérgio Buarque de Hollanda, Lula desde o início se apresentou como pai dos brasileiros. Antes da campanha de 2010, já apresentava sua futura candidata como a “mãe do PAC”. Dilma comprou o rótulo por conveniência, mas teve o mérito de não encarnar o estereótipo maternal que faria par com o estilo carismático e paternalista de Lula.
Quanto à identificação de Dilma com as causas feministas, vale lembrar que a presidente, em toda sua longa trajetória política – se contarmos desde os anos de militância no grupo Var-Palmares, na década de 1970 – nunca foi uma típica militante feminista. Como outras raras mulheres independentes de sua geração, as opções políticas da jovem Dilma Roussef pautaram-se antes por causas universais – liberdade, igualdade, socialismo – do que pelas lutas de gênero que, no Brasil, só se tornaram mais expressivas depois da derrota da luta armada. Quando as pioneiras das causas feministas começavam a levantar suas bandeiras, por aqui, a militante “Wanda” estava na cadeia.
Os preconceitos sexistas mais pesados contra ela surgiram durante a campanha, não por parte de eleitores, mas dos adversários políticos. O modo violento como a campanha de José Serra tentou explorar a polêmica sobre o aborto, a meu ver, não teria sido o mesmo com um candidato homem. Ao tentar caracterizar a possível simpatia de Dilma pela legalização do aborto como um grave de delito de opinião, Serra apostou na convicção popular de que a mulher que não criminaliza o aborto é um monstro que mata criancinhas. Dilma não enfrentou a polêmica com a seriedade que o caso exigia, mas pelo menos não desceu tão baixo. Em todo caso, nunca saberemos até onde a oposição teria chegado se a notícia de um suposto aborto de Mônica Serra não tivesse vindo à baila.
Outro preconceito que se manifestou durante a campanha foi o de que sendo mulher, a candidata não teria pulso firme para segurar os “radicais do PT”. Que saudades do tempo em que o PT contava com alguns radicais a incomodar a geléia geral do Congresso. No atual estado da arte, o governo Dilma corre mais risco de se descaracterizar em função do excesso de aliados ao centro e à direita do que pela pressão de supostos radicais à esquerda. Além do onipresente PMDB, com sua prática de toma-lá-dá-cá que já se incorporou ao folclore político do jeitinho brasileiro, a barca do governo terá que acolher agora os interesses do novo PSD, criado pelo prefeito de São Paulo para abocanhar cargos e supremacias junto ao governo Federal.
Será mais difícil a uma mulher defender-se da sedução e da chantagem de tais aliados? Não parece. Dilma já sabe que, com amigos assim, ninguém precisa de inimigos. A recente faxina (trabalho de mulher?...) executada pela presidente no Ministério dos Transportes, seguida do embate com a “banda podre” do PMDB a fim de eliminar os cabides de emprego na Agricultura e a corrupção no Turismo, provocaram, como sempre, ameaças de perda de apoio por parte da base dita “aliada”. A forma mais dura com que a primeira mulher presidente do Brasil tem se posicionado frente à chantagem de tais aliados também pode ser explicada pela consciência da desvantagem de seu estilo pessoal em comparação com o carisma popular que permitiu ao presidente Lula ser leniente com a corrupção sem perder prestígio entre eleitores, nem (conseqüentemente) apoio entre a classe política.
Na via oposta, penso que os preconceitos favoráveis a uma candidata mulher também não ajudam a politizar o debate. Seria uma presidenta mais apta a “cuidar com zelo materno” de seu povo? Escolho ao acaso exemplos brasileiros que contrariam tal premissa. Entre as poucas governadoras brasileiras, temos Roseana Sarney, filha de cacique político que governa o Estado com o pior IDH do país. No sul, ex- governadora Ieda Crusis, em 2009, colocou o aparato militar da PM do Estado para intimidar os participantes da festa dos 25 anos do MST. Maternais? Protetoras dos fracos e oprimidos? No Senado, basta mencionar o estilo fálico de Catia Abreu, ativa defensora dos direitos do agro negócio contra os ambientalistas que tentam preservar o que restou das florestas do Mato Grosso e em parte da Amazônia legal.
A própria Dilma, se fosse mais “maternal”, teria defendido com maior firmeza a qualidade de vida dos operários da Usina de Jirau, submetidos a condições sub humanas no canteiro de obras da Camargo Correia. Ou tentaria conciliar a brutal agenda desenvolvimentista com medidas efetivas de preservação da natureza, em prol da saúde das próximas gerações. O compromisso com as causas feministas poderia levar Dilma Roussef a se manifestar de maneira mais clara no debate sobre a descriminalização do aborto, mas parece que o escândalo que se promoveu em torno do assunto, durante a campanha, contribuiu para transformar o aborto numa espécie de tabu político para a atual gestão.
Outras questões relativas à saúde das mulheres, no entanto, ainda podem ser contempladas no governo Dilma. Os casos mais óbvios seriam novas políticas de proteção à maternidade, com ênfase no amparo às mães adolescentes. Além disso, toda e qualquer melhoria no atendimento à saúde de maneira geral beneficiaria as mulheres, acostumadas a cuidar não apenas da saúde dos filhos, mas também de pais, sogros e maridos. Ainda há tempo para esperar da primeira mulher presidente do Brasil medidas que diminuam a desigualdade de gênero no país, sobretudo nas classes mais baixas.
Essa esperança deve-se ao fato de Dilma, em sua trajetória pessoal e política, ter escolhido as alternativas progressistas que se apresentaram à sua geração. Afinal, a característica mais marcante da presidente é sua longa trajetória como militante radical de esquerda. Este segundo aspecto de sua biografia coloca o país diante de um fato espantoso, bem menos alardeado na imprensa: o de que há menos de quatro décadas, a atual chefe das Forças Armadas estava pendurada no pau de arara em uma dependência clandestina desse mesmo Exército, seminua, a levar choques elétricos, pancadas e socos até o limite da exaustão, em conseqüência de sua participação na luta contra a ditadura. Ali, segundo entrevista concedida em 2009 para o blog do Luis Nassif, a militante “Wanda” aprendeu a “mentir adoidado” para defender os companheiros que ainda estavam em liberdade. Ali, freqüentemente perdeu a noção de tempo entre uma sessão e outra, jogada sem roupas no chão de um banheiro frio para refletir melhor se não seria o caso de “tomar juízo” e delatar alguém. O pior da vida no presídio, disse Dilma na entrevista, eram os períodos de espera, sem saber quando e como seria o próximo round com os torturadores.
Por conta deste episódio, Dilma Roussef conhece o valor inestimável da solidariedade entre companheiras de prisão, homenageadas por ela em um dos momentos mais emocionantes da festa da posse. “Devo grande parte de ter superado (...) e agüentado (a tortura) às minhas companheiras de cela”, declarou Dilma a Luis Nassif na entrevista de 2009, ao mencionar o recurso inteligente e corajoso inventado por elas para “dessolenizar” o medo da tortura através do humor. Cada vez que uma prisioneira era levada para o interrogatório, as outras piscavam um olho cúmplice e ironizavam: “não se preocupe, companheira. Se você for torturada a gente denuncia...”
Graças ao que aprendeu com essa experiência, se é que se pode escrever “graças” num caso assim, Dilma teria desenvolvido a capacidade de manter sangue frio diante do torturador, a calcular o que podia ser dito porque já era sabido e o que deveria ser calado com falsa tranqüilidade, sem nunca afrontar o inimigo para não aumentar sua fúria. Por ironia, não do destino, mas da política, é possível que o exercício democrático do poder venha a exigir que a presidente recorra, no presente, aos mesmos recursos de resistência que soube desenvolver em sua sinistra temporada nos porões da ditadura. Astúcia e sangue frio podem lhe valer mais do que a força, nas inúmeras vezes em que for encostada contra a parede pelos aliados do governo, caso decida permanecer menos leniente com a corrupção e com o cinismo palaciano do que seu antecessor cordial.
Muito mais significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser governado por uma mulher é ter uma presidente que conheceu, por dentro e na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. Nesse quesito, a posição tíbia dos sucessivos governos brasileiros frente à ala conservadora do Exército envergonha o país diante do mundo, em particular a América Latina. De Dilma, que afinal decidiu-se a substituir o sinistro Nelson Jobim no Ministério da Defesa, espera-se uma posição decisiva a favor da abertura da investigação sobre os desaparecidos políticos do governo militar, assim como o apoio claro à decisão de tornar públicos os nomes dos assassinos e torturadores, praticantes de crimes de Estado não contemplados pela Lei da Anistia.
Ao fazer valer o direito das famílias dos militantes assassinados e desaparecidos, a presidente alcançaria também o efeito de prevenir a perpetuação dos assassinatos de jovens das periferias brasileiras por policiais militares a quem, até hoje, nenhum governante disse com firmeza que tais práticas não seriam mais admitidas por aqui. O Brasil foi o único país da América Latina que encerrou uma ditadura sem julgar publicamente nem punir seus torturadores. Indiretamente, os termos em que se negociou a lei da Anistia por aqui funcionaram como um aval para a perpetuação da violência do Estado. No livro O que resta da ditadura (org. Edson Telles e Vladimir Safatle, Ed. Boitempo) a procuradora Flavia Piovesan cita pesquisa feita pela norte-americana Kathryn Sikkink onde se revela que o julgamento dos crimes contra direitos humanos serve para fortalecer, e não para enfraquecer o Estado de Direito. Ainda segundo a pesquisa, depois do fim do período militar no Brasil, a violência policial tornou-se maior do que a praticada na Argentina durante a ditadura. De uma presidente que foi presa política por ter lutado em favor das liberdades democráticas se espera que atue decisivamente para condenar, no passado, e eliminar no presente, a violência dos agentes do Estado que a sociedade, envergonhada, acostumou-se a considerar como um traço indelével da “cultura” brasileira.
*Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".
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segunda-feira, 26 de setembro de 2011
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