.26/09/2011
Muito mais significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser governado por uma mulher é ter uma presidente que conheceu, por dentro e na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. A característica mais marcante da presidente é sua longa trajetória como militante radical de esquerda.
Maria Rita Kehl*
(*) Artigo publicado no Blog de Maria Rita Kehl

Grosso modo, a escolha de Dilma parece ter sido mais pautada por razões políticas e interesses de classe do que pelo imaginário de gênero. Se assim foi, o mérito é todo dela. Durante os oito anos de seus dois governos, o presidente Lula perdeu grandes oportunidades de politizar os eleitores ao definir a relação necessariamente conflituosa entre a sociedade e seus governantes a partir de metáforas ligadas à vida familiar. Fiel ao seu estilo de homem cordial, na acepção de Ribeiro Couto/ Sérgio Buarque de Hollanda, Lula desde o início se apresentou como pai dos brasileiros. Antes da campanha de 2010, já apresentava sua futura candidata como a “mãe do PAC”. Dilma comprou o rótulo por conveniência, mas teve o mérito de não encarnar o estereótipo maternal que faria par com o estilo carismático e paternalista de Lula.
Quanto à identificação de Dilma com as causas feministas, vale lembrar que a presidente, em toda sua longa trajetória política – se contarmos desde os anos de militância no grupo Var-Palmares, na década de 1970 – nunca foi uma típica militante feminista. Como outras raras mulheres independentes de sua geração, as opções políticas da jovem Dilma Roussef pautaram-se antes por causas universais – liberdade, igualdade, socialismo – do que pelas lutas de gênero que, no Brasil, só se tornaram mais expressivas depois da derrota da luta armada. Quando as pioneiras das causas feministas começavam a levantar suas bandeiras, por aqui, a militante “Wanda” estava na cadeia.
Os preconceitos sexistas mais pesados contra ela surgiram durante a campanha, não por parte de eleitores, mas dos adversários políticos. O modo violento como a campanha de José Serra tentou explorar a polêmica sobre o aborto, a meu ver, não teria sido o mesmo com um candidato homem. Ao tentar caracterizar a possível simpatia de Dilma pela legalização do aborto como um grave de delito de opinião, Serra apostou na convicção popular de que a mulher que não criminaliza o aborto é um monstro que mata criancinhas. Dilma não enfrentou a polêmica com a seriedade que o caso exigia, mas pelo menos não desceu tão baixo. Em todo caso, nunca saberemos até onde a oposição teria chegado se a notícia de um suposto aborto de Mônica Serra não tivesse vindo à baila.
Outro preconceito que se manifestou durante a campanha foi o de que sendo mulher, a candidata não teria pulso firme para segurar os “radicais do PT”. Que saudades do tempo em que o PT contava com alguns radicais a incomodar a geléia geral do Congresso. No atual estado da arte, o governo Dilma corre mais risco de se descaracterizar em função do excesso de aliados ao centro e à direita do que pela pressão de supostos radicais à esquerda. Além do onipresente PMDB, com sua prática de toma-lá-dá-cá que já se incorporou ao folclore político do jeitinho brasileiro, a barca do governo terá que acolher agora os interesses do novo PSD, criado pelo prefeito de São Paulo para abocanhar cargos e supremacias junto ao governo Federal.
Será mais difícil a uma mulher defender-se da sedução e da chantagem de tais aliados? Não parece. Dilma já sabe que, com amigos assim, ninguém precisa de inimigos. A recente faxina (trabalho de mulher?...) executada pela presidente no Ministério dos Transportes, seguida do embate com a “banda podre” do PMDB a fim de eliminar os cabides de emprego na Agricultura e a corrupção no Turismo, provocaram, como sempre, ameaças de perda de apoio por parte da base dita “aliada”. A forma mais dura com que a primeira mulher presidente do Brasil tem se posicionado frente à chantagem de tais aliados também pode ser explicada pela consciência da desvantagem de seu estilo pessoal em comparação com o carisma popular que permitiu ao presidente Lula ser leniente com a corrupção sem perder prestígio entre eleitores, nem (conseqüentemente) apoio entre a classe política.
Na via oposta, penso que os preconceitos favoráveis a uma candidata mulher também não ajudam a politizar o debate. Seria uma presidenta mais apta a “cuidar com zelo materno” de seu povo? Escolho ao acaso exemplos brasileiros que contrariam tal premissa. Entre as poucas governadoras brasileiras, temos Roseana Sarney, filha de cacique político que governa o Estado com o pior IDH do país. No sul, ex- governadora Ieda Crusis, em 2009, colocou o aparato militar da PM do Estado para intimidar os participantes da festa dos 25 anos do MST. Maternais? Protetoras dos fracos e oprimidos? No Senado, basta mencionar o estilo fálico de Catia Abreu, ativa defensora dos direitos do agro negócio contra os ambientalistas que tentam preservar o que restou das florestas do Mato Grosso e em parte da Amazônia legal.
A própria Dilma, se fosse mais “maternal”, teria defendido com maior firmeza a qualidade de vida dos operários da Usina de Jirau, submetidos a condições sub humanas no canteiro de obras da Camargo Correia. Ou tentaria conciliar a brutal agenda desenvolvimentista com medidas efetivas de preservação da natureza, em prol da saúde das próximas gerações. O compromisso com as causas feministas poderia levar Dilma Roussef a se manifestar de maneira mais clara no debate sobre a descriminalização do aborto, mas parece que o escândalo que se promoveu em torno do assunto, durante a campanha, contribuiu para transformar o aborto numa espécie de tabu político para a atual gestão.
Outras questões relativas à saúde das mulheres, no entanto, ainda podem ser contempladas no governo Dilma. Os casos mais óbvios seriam novas políticas de proteção à maternidade, com ênfase no amparo às mães adolescentes. Além disso, toda e qualquer melhoria no atendimento à saúde de maneira geral beneficiaria as mulheres, acostumadas a cuidar não apenas da saúde dos filhos, mas também de pais, sogros e maridos. Ainda há tempo para esperar da primeira mulher presidente do Brasil medidas que diminuam a desigualdade de gênero no país, sobretudo nas classes mais baixas.
Essa esperança deve-se ao fato de Dilma, em sua trajetória pessoal e política, ter escolhido as alternativas progressistas que se apresentaram à sua geração. Afinal, a característica mais marcante da presidente é sua longa trajetória como militante radical de esquerda. Este segundo aspecto de sua biografia coloca o país diante de um fato espantoso, bem menos alardeado na imprensa: o de que há menos de quatro décadas, a atual chefe das Forças Armadas estava pendurada no pau de arara em uma dependência clandestina desse mesmo Exército, seminua, a levar choques elétricos, pancadas e socos até o limite da exaustão, em conseqüência de sua participação na luta contra a ditadura. Ali, segundo entrevista concedida em 2009 para o blog do Luis Nassif, a militante “Wanda” aprendeu a “mentir adoidado” para defender os companheiros que ainda estavam em liberdade. Ali, freqüentemente perdeu a noção de tempo entre uma sessão e outra, jogada sem roupas no chão de um banheiro frio para refletir melhor se não seria o caso de “tomar juízo” e delatar alguém. O pior da vida no presídio, disse Dilma na entrevista, eram os períodos de espera, sem saber quando e como seria o próximo round com os torturadores.
Por conta deste episódio, Dilma Roussef conhece o valor inestimável da solidariedade entre companheiras de prisão, homenageadas por ela em um dos momentos mais emocionantes da festa da posse. “Devo grande parte de ter superado (...) e agüentado (a tortura) às minhas companheiras de cela”, declarou Dilma a Luis Nassif na entrevista de 2009, ao mencionar o recurso inteligente e corajoso inventado por elas para “dessolenizar” o medo da tortura através do humor. Cada vez que uma prisioneira era levada para o interrogatório, as outras piscavam um olho cúmplice e ironizavam: “não se preocupe, companheira. Se você for torturada a gente denuncia...”
Graças ao que aprendeu com essa experiência, se é que se pode escrever “graças” num caso assim, Dilma teria desenvolvido a capacidade de manter sangue frio diante do torturador, a calcular o que podia ser dito porque já era sabido e o que deveria ser calado com falsa tranqüilidade, sem nunca afrontar o inimigo para não aumentar sua fúria. Por ironia, não do destino, mas da política, é possível que o exercício democrático do poder venha a exigir que a presidente recorra, no presente, aos mesmos recursos de resistência que soube desenvolver em sua sinistra temporada nos porões da ditadura. Astúcia e sangue frio podem lhe valer mais do que a força, nas inúmeras vezes em que for encostada contra a parede pelos aliados do governo, caso decida permanecer menos leniente com a corrupção e com o cinismo palaciano do que seu antecessor cordial.
Muito mais significativo diante do profundo conservadorismo brasileiro do que ser governado por uma mulher é ter uma presidente que conheceu, por dentro e na pele, a violência e o arbítrio da ditadura militar. Nesse quesito, a posição tíbia dos sucessivos governos brasileiros frente à ala conservadora do Exército envergonha o país diante do mundo, em particular a América Latina. De Dilma, que afinal decidiu-se a substituir o sinistro Nelson Jobim no Ministério da Defesa, espera-se uma posição decisiva a favor da abertura da investigação sobre os desaparecidos políticos do governo militar, assim como o apoio claro à decisão de tornar públicos os nomes dos assassinos e torturadores, praticantes de crimes de Estado não contemplados pela Lei da Anistia.
Ao fazer valer o direito das famílias dos militantes assassinados e desaparecidos, a presidente alcançaria também o efeito de prevenir a perpetuação dos assassinatos de jovens das periferias brasileiras por policiais militares a quem, até hoje, nenhum governante disse com firmeza que tais práticas não seriam mais admitidas por aqui. O Brasil foi o único país da América Latina que encerrou uma ditadura sem julgar publicamente nem punir seus torturadores. Indiretamente, os termos em que se negociou a lei da Anistia por aqui funcionaram como um aval para a perpetuação da violência do Estado. No livro O que resta da ditadura (org. Edson Telles e Vladimir Safatle, Ed. Boitempo) a procuradora Flavia Piovesan cita pesquisa feita pela norte-americana Kathryn Sikkink onde se revela que o julgamento dos crimes contra direitos humanos serve para fortalecer, e não para enfraquecer o Estado de Direito. Ainda segundo a pesquisa, depois do fim do período militar no Brasil, a violência policial tornou-se maior do que a praticada na Argentina durante a ditadura. De uma presidente que foi presa política por ter lutado em favor das liberdades democráticas se espera que atue decisivamente para condenar, no passado, e eliminar no presente, a violência dos agentes do Estado que a sociedade, envergonhada, acostumou-se a considerar como um traço indelével da “cultura” brasileira.
*Maria Rita Kehl é psicanalista, ensaísta e poeta, é autora do livro "A mínima diferença - o masculino e o feminino na cultura".
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