02/02/2015
Petrobras: a seta do tempo se quebrou? Desistimos?
O que as centrais sindicais e a esquerda pretendem fazer diante da destruição do último impulso industrializante do Brasil no século XXI? Nada?
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por: Saul Leblon
O que vier a ocorrer com a Petrobrás contagiará irremediavelmente o destino do desenvolvimento brasileiro e a sorte da sociedade nas próximas décadas.
Se urgências e retificações de rumo forem deixadas ao sabor da lógica de mercado, descuidando-se da dimensão política que entrelaça o seu destino ao da nação, apetites vorazes debulharão a estatal até amesquinhá-la à condição de um trem enferrujado e solto no ar. Pronto para ser vendido como sucata.
O Brasil todo será tragado pelo mesmo arrastão, com consequências econômicas devastadoras e, políticas, imponderáveis.
A Petrobras é a maior produtora de petróleo do mundo entre as empresas de capital aberto.
Superou a produção da Exxon em mais de 150 mil barris/dia no final do ano passado.
Não foi um ponto fora da curva.
A estatal brasileira tem reservas e tecnologia para figurar na linha de frente do mercado por décadas.
Sozinha, ela representa mais de 10% de todo o investimento brasileiro de 2014, estimado em insuficientes 18,5% do PIB.
A operação Lava Jato flagrou a ação de um cupinzeiro incrustrado no mecanismo dessa alavanca decisiva para o salto estratégico do país no século XXI.
As empreiteiras associadas ao esquema investigado respondem, por sua vez, por um conjunto de obras em diferentes setores que somaria quase a metade da taxa de investimento em curso na economia.
Jogar no ralo esse conjunto com a água suja do banho –para usar uma metáfora tão gasta quanto pertinente— significa escavar o chão do país em profundidade suficiente para deixa-lo à deriva na luta pelo desenvolvimento em boa parte deste século.
A Petrobras e o pré-sal ocupam o centro da almejada transição de uma economia rica, cevada na injustiça secular, para uma democracia social próspera, convergente e soberana.
Ao lado do cupinzeiro que esburacou o caixa e a identidade histórica da estatal criada por Vargas, pulsa ainda intacto esse potencial capaz de reorientar a história brasileira.
Ainda, mas não por muito tempo, exceto se ganhar a blindagem de uma resistência política ao desmonte.
Desde 2010, quando o governo Lula instituiu a regulação soberana das reservas do pré-sal --as maiores descobertas de óleo deste século em todo o planeta-- abriu-se na agenda e no imaginário do país o horizonte de uma virada histórica.
Ela colocou na defensiva o projeto conservador para a sociedade. E o manteve assim até hoje...
De novo: mas não por muito tempo, se o desmente em marcha não for detido.
Se socialismo é levar a democracia às últimas consequências, esse lastro estratégico atalhou o percurso brasileiro rumo a uma fronteira ainda distante, mas que passou a ter um rumo crível e factível.
Embora tenha sugado escandalosos R$ 4 bilhões da estatal, o cupinzeiro empresarial-político e burocrático não invalidou essa densidade encorajadora.
O cupinzeiro feriu de vergonha a alma brasileira.
Não é só uma questão policial.
É que falhamos diante de um tesouro que cabe preservar e legar às futuras gerações.
O cupinzeiro deve ser investigado, extirpado e lancetado até o último ovo.
Doa a quem doer.
Uma falha, porém, não justifica outra pior.
O que se busca preservar não pode ficar à mercê da lógica que conduz ao desfecho oposto.
O saneamento contábil não pode, como se fez na intempestiva avaliação de perdas de R$ 88 bilhões, servir à ingênua compra de indulgência junto à república dos dividendos e seus porta-vozes na mídia.
É inútil o afago: a Petrobras ‘saneada’ que serve a essa gente já tem até nome e logotipo, é a Petrobrax tucana.
O único balanço consistente, desse ponto de vista, é o que inviabiliza a exploração soberana do pré-sal; devolve o comando da estatal aos mercados; troca o impulso industrializante do conteúdo nacional pelo bombeamento vertiginoso do óleo bruto; recicla os royalties da educação e da saúde em dividendos imediatos.
E faça isso como se não houvesse amanhã.
Como de fato não haverá, para o país acalentado pela maioria, se essa lógica prevalecer.
A mesma ressalva vale para a delegação integral do presente e do futuro da estatal à Polícia Federal.
Não é verdade que para ser contra a corrupção é preciso ser a favor de uma força-tarefa cuja isenção ficou lavrada no panfletária esforço de seus integrantes para eleger Aécio em 2014.
O juiz Moro exerce a sua determinação investigativa do alto de uma biografia que inclui esposa, irmão, amigos e empregos interligados pelo intercurso com o tucanato e o ódio ao PT .
A Moro o que é de Moro.
Aos acionistas o que é dos acionistas.
Não se inclua nessas atribuições a terceirização do passo seguinte do país e do pré-sal ao braço local da agenda do arrocho.
Qual?
A mesma que acumula sinais explosivos de saturação no seu laboratório de ponta, na Grécia, onde logrou derrubar o PIB em 25%; e na Espanha, em que jogou 24% dos assalariados no desemprego (leia o especial sobre a vitória do Syriza, nesta pág, e a cobertura da Marcha pela Mudança, que levou multidões às ruas de Madrid no último sábado, sob a liderança do Podemos).
Se o governo federal erra ao descuidar do que lhe cabe –a preservação política e estratégica da Petrobras-- não se justifica que as forças progressistas endossem a mesma eutanásia em versões diferentes de silencio e prostração.
O que tem a dizer as centrais sindicais sobre a rota de destruição do projeto que encerra o derradeiro impulso industrializante do país no século XIX?
Nada?
Então, viva Eduardo Cunha.
Desqualificar a Petrobrás, e o potencial que ela representa, é a pedra basilar do mutirão graúdo, cujo alvo não é a lisura na gestão da coisa pública.
Fosse, o impoluto Cunha –que nunca se perderá pelo nome-- não teria a sua vitória à presidência da Câmara festejada como a praça da apoteose do corso conservador.
Fosse outra coisa, o clamor pela faxina viria associado não a ‘cunhas’, mas à luta pela reforma política, à defesa do pré-sal e do que ele significa para o crescimento, a educação e a saúde.
O alalaô do dinheiro grosso enxerga na Laja Jato a larga avenida do samba até o impeachment de Dilma, a destruição do PT e a entrega do estandarte de ouro do pré-sal ao capital estrangeiro, acompanhado da dedicatória: um banco de sangue alternativo à anemia dos juros internacionais.
É a hora da xepa do petróleo brasileiro, vibram os patrióticos editoriais das Organizações Globo, de conhecidas tradições.
Seu peculiar ufanismo consiste em sobrepor os casos de corrupção à projeção rudimentar da irrelevância da estatal com base na cotação presente do barril (50% abaixo dos US$ 100 de um ano atrás).
Um pouco como fez, desastradamente, a direção da Petrobras na reavaliação de seus ativos, na semana passada.
Se é assim, ladeira abaixo, com tantos problemas e mazelas, qual o sentido em se manter uma trava de soberania em torno de 50 bilhões de barris acumulados seis mil metros abaixo da linha do mar?
Por que não queimar logo isso, bombeando o estorvo a quem quiser levar, antes que seja tarde demais?
O despropósito entreguista não admite resposta contábil, nem policial.
Ele deve ser afrontado por uma frente progressista, que incorpore o desassombro e o discernimento histórico da geração que há 67 anos lançou a campanha ‘O petróleo é nosso’. A mesma que cinco anos depois havia acumulado massa crítica para dar a Getúlio a base política de onde nasceria a Petrobras, em 1953.
Se dependesse das restrições da época, do derrotismo das elites e do jogral entreguista, Vargas não teria cometido o arrojo de desafiar a supremacia inconteste das grandes petroleiras internacionais.
Tampouco teria atado isso a uma teimosa insistência na industrialização, que legou ao Brasil um trunfo singular entre as nações em desenvolvimento.
Assim como Juscelino não teria feito Brasília.
Ou Celso Furtado fincado pé em erradicar o apartheid nacional, que tinha no Nordeste um bantustão avant la lettre.
A determinação de abraçar cada uma dessas agendas extraiu do engajamento popular a viabilidade sonegada pelos orçamentos, pelas elites, pelos seus sócios estrangeiros e o seu aparato emissor e golpista.
Se a seta do tempo não se quebrou, cabe aos sindicatos, movimentos sociais e partidos de esquerda atualizarem essa determinação nos dias que correm.
E não há muitos dias mais a perder nessa corrida contra o tempo.
Como fazê-lo?
Na forma de uma conferência nacional em defesa da Petrobrás -- por que não?
Que redesenhe o futuro da estatal quebrando a espinha das expectativas entreguistas no presente.
Ideias?
Todas as que forem ordenadas pelo que é essencial.
O essencial é o inadiável: mobilizar a força política dos que tem muito a perder se o destino da empresa for reduzido a um obituário nas mãos da contabilidade de mercado e da força tarefa comandada pela isenção dos juízes que ontem condenariam Vargas, Jango e Juscelino; hoje esganarão a Petrobrás, Lula , Dilma, o PT e o que mais recender qualquer aroma de tradição trabalhista e progressista.
A menos que sejam confrontados por uma coluna de fogo política, cuja articulação está nas mãos dos movimentos sociais e da esquerda.
O patrimônio do FGTS soma mais de R$ 340 bilhões, por exemplo.
Equivale a três vezes o valor de mercado a que foi reduzida a Petrobrás na última sexta-feira, estrangulada pela ação convergente de corruptos, entreguistas e da inefável pátria dos dividendos.
Sim, o FGTS está aplicado em diferentes projetos; o financiamento imobiliário, o principal deles.
Mas se as ações da maior empresa aberta de petróleo do mundo caíram 18% apenas este ano, brasileiros na linha de tiro da sua derrocada –a maioria-- poderão decidir e exigir que uma fatia do Fundo ajude a fustigar a marcha da destruição.
Ou será melhor deixar que o juiz Moro cuide disso?
É preciso discernir o que está em jogo.
Para escrutinar com desassombro os desafios em curso.
A importância da Petrobrás hoje talvez seja até maior do que nos anos 50.
Ela deixou de significar apenas petróleo nacional.
Tornou-se o espelho de uma dissidência poderosa aos interditos ao desenvolvimento num tempo de mobilidade paralisante dos capitais na vida das nações.
Fortemente imbricada nas encomendas cativas de toda a cadeia da extração, refino e usos sofisticados da petroquímica, a regulação soberana do pré-sal faculta ao Brasil um novo berçário industrializante.
Uma espécie de controle de capitais via encomendas à indústria local.
Um genial drible nos livres mercados.
Não é uma certeza, é uma possibilidade histórica.
Mas a integração entre compras direcionadas à indústria brasileira e o investimento estratégico já funciona, de forma similar e com sucesso, nas aquisições de medicamentos para o SUS, com fomento da rede de laboratórios nacionais pelo BNDES, por exemplo.
Projete isso para a escala de uma riqueza da ordem de 50 bilhões de barris (mesmo que seja a um preço médio de US$ 60 cada).
Se esse modelo entrar em voo de cruzeiro, o discurso da insignificância brasileira na definição do passo seguinte do seu crescimento cairá em coma.
Esse é o ponto de mutação que está em jogo.
É sobre isso que os movimentos sociais e a esquerda precisam refletir.
Logo.
E, sobretudo, antes de aquiescerem ao desalento convocado por aqueles que demonstram intolerância com o círculo virtuoso que palavras como soberania, petróleo, industrialização, educação e democracia social desenham nas possibilidades do futuro brasileiro.
Ao contrário do que martela a mídia isenta, o óleo do pré-sal –graças à tecnologia da Petrobras e ao risco zero dos poços-- é o menos vulnerável a um novo preço de equilíbrio em torno de US$ 60/70/b/dia.
A escala gigantesca das reservas é outro diferencial quando cálculos de amortização de custos tem que ser refeitos.
O conjunto oferece o melhor horizonte de desenvolvimento para a indústria de petróleo em todo o mundo.
A taxa que mede isso, como já se mencionou neste espaço, mostra que o pré-sal brasileiro garante 88% de óleo recuperável sobre o total existente, contra 75% na Arábia Saudita, 65% na Rússia e 55% nos EUA.
Claro, há a questão ambiental. E não é negligenciável.
Acrescente-se a esse acervo a insubstituível necessidade de uma oferta estável de petróleo para que a humanidade –e cada nação-- possa transitar rumo a energias renováveis, sem atropelos de abastecimento ou de custos.
Os custos ainda são expressivos por conta do elevado aporte de crédito externo, mas a espiral ascendente da produção –o pre-sal já propicia 700 mil barris/dia— reafirma aquilo que o conservadorismo tenta negar em múltiplas frentes nesse momento.
O pré-sal e o seu modelo de regulação soberana continuam a figurar como o grande bilhete premiado do desenvolvimento brasileiro em nosso tempo.
Se o corporativismo imobilizante, a exemplo do esquerdismo cego, ignorar as interações entre esse trunfo e a resistência ao modelo do arrocho que acossa o país, é porque, de fato, a seta do tempo se quebrou.
Pior que isso, talvez.
Mudou de direção.
E avança agora como um raio para reverter aquilo que a geração de 1953 tinha como guia inabalável: a consciência histórica de sua responsabilidade para fazer do desenvolvimento a construção coletiva de um povo, não uma prerrogativa dos mercados.
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