26/04/2015
Em memória de uma vítima esquecida do mundo que a Globo ajudou a criar em 1964. Por Paulo Nogueira
Uma figura feminina aparece na minha mente sempre que leio a respeito do papel da Globo no golpe de 1964.
Não a conhecia até recentemente, mas me apaixonei assim que a vi.
Ela estava num documentário sobre o golpe a que assisti no ano passado.
É um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época sinistra.
O documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois
cineastas americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no
Chile para entrevistar Allende.
Eles souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com
histórias de tortura e decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo
tinha sido trocado pelo embaixador da Suíça no Brasil.
Surgiria, como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um
pequeno épico do cinema que não se curva aos poderosos. Eram talentosos
os americanos. Haskell posteriormente receberia dois Oscars por
trabalhos na área de fotografia de grandes produções de Hollywood.
É uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as
barbaridades que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da
ditadura.
Ela é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas americanos.
Ela tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que
narrou meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.
“Fui colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”
Seu rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.
Durante a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”,
e ela lembrou que os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se
estivessem numa festa.
A certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu
mamilo. Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam
que iriam matá-la.
Uma das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as
torturas, como o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.
Comecei a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui
parar em quase 1 hora de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como
há muito tempo não ficava.
E depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que estaria fazendo?
E então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom
Casmurro quando as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver
história triste.
Maria Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que
comoveu aos cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.
Ela não viveu para ver o fim do horror militar.
Pouco tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um
trem. Ela estava com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a
que foi submetida, e tinha acabado de se consultar com seu médico.
Morava, então, em Berlim.
Dois anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir de novo.
Primeiro foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era
brilhante: passou em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu
aprovação para complementar seus estudos de medicina na Universidade de
Berlim.
Fiquei triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já
imaginava entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje.
Conservaria vestígios da beleza sobranceira e altiva do passado?
Num voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia,
hoje seria uma avó, cheia de histórias para contar aos netinhos.
Fantasio-a de bicicleta em Copenhague, feliz entre pessoas que são
felizes porque aquela é uma sociedade como prescreveu Rousseau: sem
extremos de opulência e de miséria.
Mas ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com
coragem assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio
de remorso por ter caminhado o caminho que escolheu.
Em Laura, o filme clássico de Preminger, o detetive se apaixona pela
foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la
no documentário.
Fico tolamente satisfeito quando minha filha Camila me conta que,
pesquisando, descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira
indomável.
Em fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma
para a presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso
deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão
conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte
de minha história. Mais que isso, eles fazem parte da história do
Brasil.”
Dilma citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”
E no meu também.
E é nela que penso quando reflito sobre o papel da Globo no golpe.
E nela projeto todos os outros tombados.
A Globo ficará eternamente impune – rica e impune — pelos
assassinatos que indiretamente promoveu ao abrir as portas para a
ditadura?
Nem um miserável pedido de desculpas será endereçado à memória de Dodora?
Ninguém a protegeu em vida, que ela ceifou ao se atirar sob as rodas de um trem nas remotas terras germânicas.
E a opulência impeninente da Globo em seu conquentenário mostra que também na morte Dodora continua desprotegida.
Roberto Marinho virou bilionário com o mundo que ele se empenhou
tanto por moldar, o das botas e das metralhadoras assassinas, e Dodora
só conseguiu escapar de tudo sob as rodas de um trem.
Tinha 31 anos.
(Acompanhe as publicações do DCM no Facebook. Curta aqui).
Uma figura feminina aparece na minha mente sempre que leio a respeito do papel da Globo no golpe de 1964.
Não a conhecia até recentemente, mas me apaixonei assim que a vi.
Ela estava num documentário sobre o golpe a que assisti no ano passado.
É um trabalho rústico, uma câmara e depoimentos. E é sublime como retrato de uma época sinistra.
O documentário foi gravado em 1971, no Chile. Os autores foram dois
cineastas americanos – Haskell Wexler e Saul Landau — que estavam no
Chile para entrevistar Allende.
Eles souberam que havia um grupo de exilados brasileiros com
histórias de tortura e decidiram registrá-las com sua câmara. O grupo
tinha sido trocado pelo embaixador da Suíça no Brasil.
Surgiria, como que por acaso, “Brasil, um relato da tortura”, um
pequeno épico do cinema que não se curva aos poderosos. Eram talentosos
os americanos. Haskell posteriormente receberia dois Oscars por
trabalhos na área de fotografia de grandes produções de Hollywood.
É uma mulher que me fisga no filme, uma jovem médica que narra as
barbaridades que ela e os companheiros sofreram nas mãos dos agentes da
ditadura.
Ela é bonita, articulada, e pesquisando vejo que fascinou também os documentaristas americanos.
Ela tinha 25 anos na ocasião, e riu ao lembrar as torturas, que
narrou meticulosamente. Parecia invencível diante das violências.
“Fui colocada nua numa sala com cerca de 15 homens”, disse ela. “Fui espancada e esbofeteada.”
Seu rosto bonito ficou, contou ela, completamente deformado, conforme queriam os algozes.
Durante a sessão puseram num volume ensurdecedor “música de macumba”,
e ela lembrou que os torturadores pareciam “excitados, felizes” como se
estivessem numa festa.
A certa altura, a agarraram pelos seios e puseram uma tesoura em seu
mamilo. Pressionavam e soltavam, e ameaçavam extirpá-lo. Também diziam
que iriam matá-la.
Uma das forças do vídeo é que os entrevistados mostram como eram as
torturas, como o pau de arara. São reproduções realistas e assustadoras.
Comecei a ver, por sugestão de minha filha Camila, e não consegui
parar em quase 1 hora de conteúdo extraordinário. Fiquei perturbado como
há muito tempo não ficava.
E depois quis saber mais das pessoas. Particularmente dela: passados mais de quarenta anos, que estaria fazendo?
E então vem a parte triste. Como escreveu Machado de Assis em Dom
Casmurro quando as coisas degringolam, pare aqui quem não quer ver
história triste.
Maria Auxiliadora Lara Barcelos, este o nome daquela guerreira que
comoveu aos cineastas e a mim. Dora ou Dodora, como a chamavam.
Ela não viveu para ver o fim do horror militar.
Pouco tempo depois, como Ana Karenina, se jogou sob as rodas de um
trem. Ela estava com problemas psiquiátricos derivados da selvageria a
que foi submetida, e tinha acabado de se consultar com seu médico.
Morava, então, em Berlim.
Dois anos depois de feito o documentário, Pinochet tomou o poder no Chile, e Dora teve que partir de novo.
Primeiro foi para a Bélgica, e depois para a Alemanha Ocidental. Era
brilhante: passou em primeiro lugar entre 600 estrangeiros e conseguiu
aprovação para complementar seus estudos de medicina na Universidade de
Berlim.
Fiquei triste, quase enlutado, ao saber do que ocorreu com ela. Já
imaginava entrevistá-la, e especulava sobre como ela estaria hoje.
Conservaria vestígios da beleza sobranceira e altiva do passado?
Num voo mental, penso que se ela tivesse nascido na Escandinávia,
hoje seria uma avó, cheia de histórias para contar aos netinhos.
Fantasio-a de bicicleta em Copenhague, feliz entre pessoas que são
felizes porque aquela é uma sociedade como prescreveu Rousseau: sem
extremos de opulência e de miséria.
Mas ela nasceu e cresceu na terra da iniquidade, que combateu com
coragem assombrosa e idealismo inexpugnável. Não há em sua fala vestígio
de remorso por ter caminhado o caminho que escolheu.
Em Laura, o filme clássico de Preminger, o detetive se apaixona pela
foto de uma mulher assassinada. Como que me apaixonei por Dora ao vê-la
no documentário.
Fico tolamente satisfeito quando minha filha Camila me conta que,
pesquisando, descobriu que Dilma prestara tributo àquela brasileira
indomável.
Em fevereiro de 2010, quando o PT confirmou a candidatura de Dilma
para a presidência da república, Dilma disse em seu discurso: “Não posso
deixar de ter uma lembrança especial para aqueles que não mais estão
conosco. Para aqueles que caíram pelos nossos ideais. Eles fazem parte
de minha história. Mais que isso, eles fazem parte da história do
Brasil.”
Dilma citou três pessoas. Uma delas era Dodora. “Dodora, você está aqui no meu coração.”
E no meu também.
E é nela que penso quando reflito sobre o papel da Globo no golpe.
E nela projeto todos os outros tombados.
A Globo ficará eternamente impune – rica e impune — pelos
assassinatos que indiretamente promoveu ao abrir as portas para a
ditadura?
Nem um miserável pedido de desculpas será endereçado à memória de Dodora?
Ninguém a protegeu em vida, que ela ceifou ao se atirar sob as rodas de um trem nas remotas terras germânicas.
E a opulência impeninente da Globo em seu conquentenário mostra que também na morte Dodora continua desprotegida.
Roberto Marinho virou bilionário com o mundo que ele se empenhou
tanto por moldar, o das botas e das metralhadoras assassinas, e Dodora
só conseguiu escapar de tudo sob as rodas de um trem.
Tinha 31 anos.
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