26/04/2016
Golpe e resistência
Ironicamente, deve-se à direita a reaglutinação das forças de esquerda
Levi Bianco/Brazil Photo Press/AFP
As emoções desses dias enunciam embates profundos
Na sua inexcedível capacidade de superar a fantasia, a política rasteira nos transportou, no domingo 17,
para o imaginário de Macondo, promovendo o encontro do realismo
fantástico com o espírito de Macunaíma, no que ele tem de moralmente
grotesco e de lassidão. A sociedade, preocupada com os destinos de seu
país, postou-se diante da tevê para saber como votavam seus
representantes chamados a decidir o destino do mandato da presidenta da
República.
Mas, no lugar de um espetáculo cívico,
presenciou uma ópera-bufa. Por horas, assistiu incrédula e, certamente,
constrangida ao desfilar tragicômico de personagens ridículos que se sucediam diante das câmeras. Assim, o Brasil conheceu a Câmara e seus deputados. Aplausos para as exceções.
Não se ouviu dos adeptos do “sim” um só
conceito político ou jurídico, um só desenvolvimento de raciocínio
adulto, lógico, mas, tão só, um desalentador desfilar de sandices e
pieguices: referências domésticas, familiares, expressões de uma religiosidade primitiva...
Absoluta ausência de senso e decoro. Ao fundo, a algaravia de mercado
persa, incompatível com uma Casa de Leis. Mestre de cerimônia do
espetáculo burlesco, reinou impávida essa figura abjeta representada
pelo ainda presidente da Câmara, deputado-réu, materialização de Frank Underwood, que salta da série estadunidense e dos esgotos do Capitólio para conviver conosco.
O espetáculo grotesco oferecido pela Câmara Federal expõe à
saciedade quão imperiosa é a reforma, profunda, do sistema eleitoral
que a produziu. Mas como esperar que nossos parlamentares livrem a
legislação das mazelas e vícios que garantem a reprodução de seus
mandatos? Pois essa Câmara abriu o processo de impeachment.
Uma Casa de maioria hegemonizada por um agrupamento de
acusados, presidida por um parlamentar consabidamente desonesto, no
comando de um processo de cassação de uma presidenta consabidamente
honesta. E, se esse processo tiver curso no Senado, há risco de vermos
uma presidenta legitimamente eleita por 54,5 milhões de votos ser
substituída por um vice perjuro, sem um só voto.
Pobre política brasileira.
A crise da democracia representativa
nacional está exposta à luz do sol e pode atingir o paroxismo, que
certamente tomará as vestes de crise institucional, no iminente encontro
da desmoralização parlamentar com o exercício da Presidência por um vice sem legitimidade.
Longe de promover o encontro da Nação
com seu destino, de liderar a distensão política a caminho da união
nacional, o hipotético governo será instrumento de desagregação,
agravando a até há pouco escamoteada luta de classes, que será
aprofundada, independentemente do que fizerem os movimentos sociais, em
razão das características da crise e do remédio prometido pelo
receituário neoliberal e exigido pelos financiadores da caríssima
campanha pró-impeachment: menos investimentos, mais superávit
primário e menos compensações sociais, flexibilização do trabalho e
reforma da Previdência (contra os aposentados), mais privatização, mais
recessão, mais desemprego. E, cereja do bolo, a entrega do pré-sal às
multinacionais do petróleo. Ao fim e ao cabo, mais crise social.
Aliás, deve-se à direita o desmanche das
ilusões de conciliação de classe que por tanto tempo encantaram
lideranças petistas, imobilizando-as diante da luta ideológica, a que
renunciaram, como renunciaram seus governos às reformas que poderiam,
sem ferir o sistema, alterar a estrutura do Estado e promover uma
correlação de forças favorável às massas. Renunciaram a uma reforma
tributária progressiva, renunciaram à reforma política (daí a Câmara de
hoje, que será sucedida por outra ainda pior), à democratização dos
meios de comunicação de massa, à reforma do Poder Judiciário, à reforma
agrária, à reforma do ensino militar, para citar as mais ingentes.
Um governo de origem popular, recém-saído
de uma refrega eleitoral para cujo desfecho a esquerda foi decisiva,
opta pelos entendimentos de cúpula que cevaram as forças que o trairiam
na primeira oportunidade. Para agradar ao “mercado”, opta por um
reajuste fiscal recessivo, afasta-se de suas bases e não conquista a
classe dominante, para quem acenava. Essa continuou no comando do golpe,
do qual o 17 de abril não é nem o ponto de partida nem o ponto de
chegada.
O processo histórico é, porém, contumaz em pregar peças, e
assim ficamos a dever à direita brasileira a reaglutinação das
esquerdas e do movimento social, e a virtual unidade, na ação, do
movimento sindical. Foi a ameaça da captura do Estado, sem voto, para
alterar a agenda de prioridades, projeto da classe dominante brasileira,
que reconciliou o governo com as massas, quando essas descobriram que o
golpe era mesmo contra elas, isto é, contra os direitos dos
trabalhadores, agora em 2016 como em 1954 e em 1964.
A iminência do golpe de Estado, operado a partir das
entranhas do Estado, por setores do Ministério Público Federal, da
Polícia Federal e do Judiciário, mas articulado de fora pelas forças de
sempre (o monopólio ideológico dos meios de comunicação liderados pelo
sistema Globo), ensejou às esquerdas, como mecanismo de defesa que logo
se transformou em instrumento de luta, a unidade na ação, de que
resultou a Frente Brasil Popular, e, com ela, a unificação dos
movimentos populares e as grandes mobilizações.
A consigna “Não vai ter golpe, vai ter luta”, que em
outras palavras significa a retomada, pela esquerda, da questão
democrática, e a decisão pelo enfrentamento, tanto funcionou como
discurso aglutinador quanto orientou a ação. Nas ruas, as massas
redescobriram sua força, e não pretendem refluir. O movimento social,
assim, está na fronteira de um salto de qualidade que lhe permitirá
caminhar da defesa da legalidade e da democracia para as eleições e a
construção de um novo tipo de sociedade. Golpeadas pela farsa do impeachment, as esquerdas se preparam para unir a luta parlamentar à luta nas ruas.
As emoções desses dias parecem enunciar embates de duração, intensidade e profundidade impossíveis de prever.
Roberto Amaral *Ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB, partido do qual se desfiliou.
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