23/08/2018
O Brasil para inglês ver e o Brasil real
Um confronto entre ideias de FHC , reveladas ao inglês Financial Times, e de Fábio Konder Comparato
Do Blog Jornalistas Livres - 22 agosto, 2018
por Cesar Locatelli
Meu sucessor como presidente se coloca,
falsamente, como vítima de uma conspiração da ‘‘elite’’.
(FHC) (1)
Parece evidente que o Lula jamais será julgado de forma imparcial
(FKC) (2)
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), 87 anos, buscou um dos arautos do capitalismo financeiro global para fustigar Lula: publicou uma matéria no Financial Times, jornal inglês, em que nega que Lula esteja sofrendo perseguição política. Nega que a democracia brasileira esteja em ruínas. Nega a vigência de um Estado de Exceção no país. Nega inconformidades no impeachment de Dilma Rousseff e no processo que condenou Lula.
O jurista Fábio Konder Comparato (FKC), 81 anos, denuncia que nunca houve democracia no Brasil. Denuncia que Lula, considerado um intruso pela oligarquia, nunca será julgado de forma imparcial. Denuncia que o Judiciário brasileiro sempre foi corrupto. Denuncia que há dois ordenamentos jurídicos no país: o oficial e o real.
Apenas uma letra (FHC e FKC) e todo um universo os diferenciam. Colocamos seus pensamentos lado a lado.
A condenação de Lula
FHC
“O ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva tem todo o direito de defender o seu ponto de vista no país e no estrangeiro em relação aos processos judiciais que pesam sobre ele. Esses processos levaram à sua prisão, depois que um tribunal federal de apelação, em janeiro, manteve sua condenação por corrupção e lavagem de dinheiro.
A maneira pela qual Lula da Silva escolheu para defender-se para o mundo, no entanto, precisa ser contestada. Em um artigo recente, ele apresentou uma versão da história recente do Brasil que não carrega qualquer relação com a realidade. Isso seria um problema para os historiadores, não fosse ele o líder político influente que é.”
FKC
“A Operação Lava Jato manifestou uma estranha associação de alguns Procuradores da República com o juiz Sérgio Moro, para promover ações penais por corrupção, praticamente só contra políticos do PT e empresários a eles ligados.
A Operação acabou por provocar a destituição da presidente Dilma Rousseff pelo Congresso Nacional e a instalação de um novo governo federal, cuja atuação se destaca pela entrega de mão beijada da extraordinária riqueza das nossas jazidas de petróleo do pré-sal a estrangeiros, bem como pela redução escandalosamente inconstitucional dos direitos sociais, para benefício do grupo oligárquico dominante.
Logo a seguir, tivemos a esperada denúncia criminal do ex-presidente Lula, a fim de que ele não possa se candidatar à presidência em 2018. Atingido assim o verdadeiro objetivo da Operação Lava Jato, é de se esperar que ela venha desde logo a ser desmontada.” (FKC) (3)
O Estado de Direito
FHC
“O ex-presidente retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, em que o Estado de Direito deu lugar a medidas arbitrárias concebidas para minar a ele e seu partido. Isso não é verdade.”
FKC
“Eu andei estudando recentemente a tradição judicial brasileira. O Judiciário no Brasil sempre foi corrupto. E isso não era dito, obviamente, pelos brasileiros, mas foi dito, sem exceção, por todos os viajantes estrangeiros.” (4)
O governo FHC
FHC
“Também não é verdade, como Lula da Silva afirma, que o Brasil estava sem rumo antes que ele assumisse a presidência em 2003. É só lembrar da bem-sucedida estabilização da economia, depois de anos de hiperinflação, que começou com o Plano Real lançado pelo ex-presidente Itamar Franco e continuado durante o meu governo. Este foi também um período marcado pela constituição de programas sociais que Lula da Silva expandiria seria posteriormente.”
FKC
“Logo no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, foram privatizadas nada menos do que oitenta empresas públicas, notadamente a Companhia Vale do Rio Doce, uma das maiores empresas mineradoras do mundo, a maior produtora mundial de minério de ferro, de pelotas e de níquel, além de produtora de manganês, ferroliga, cobre, bauxita, potássio, caulim e alumínio. (….)
Essa privatização, justificada à época pelo chamado Consenso de Washington – conjunto de dez recomendações do Fundo Monetário Internacional adotadas em 1990 – foi, na verdade, operada na bacia das almas.
Os compradores da Companhia do Rio Doce, por exemplo, beneficiaram-se de financiamento subsidiado pelo BNDES, não tendo sido levado em conta, no preço de venda das ações de controle, o valor potencial das reservas de ferro por ela possuídas, as maiores do mundo.
Contra essa operação de venda do controle público da Vale do Rio Doce foram intentadas mais de cem ações judiciais, nenhuma delas acolhida pelo Judiciário; o que bem demonstrou a submissão cabal dos magistrados à dominação da oligarquia empresarial, nacional e estrangeira.
Para completar esse quadro de completo abandono do princípio republicano e do Estado de Direito, logo no começo do seu mandato Fernando Henrique Cardoso iniciou tratativas junto ao Congresso Nacional para operar uma mudança constitucional, permitindo a sua própria reeleição como Presidente da República, incluindo nessas tratativas a compra de votos de vários deputados federais, que acabaram sendo judicialmente condenados. O Presidente, no entanto, saiu ileso de todo esse criminoso episódio, não tendo contra ele sido intentado em juízo procedimento algum.” (5)
Sobre a democracia brasileira
FHC
“Sua versão das últimas décadas da história brasileira é peculiar, na qual ele às vezes aparece como o salvador do povo e, por vezes, como vítima de uma conspiração da ‘elite’. Sua versão propicia, inadvertidamente, a deslegitimação do esforço coletivo que é o fundamento da democracia brasileira.”
FKC
“O governo verdadeiro da democracia, que nunca, jamais, em momento algum, vigorou no Brasil, é o regime político em que a soberania, ou seja, o poder supremo, pertence a quem? Ao povo. Acontece que a burguesia, muito mais inteligente, do que a gente imagina, já desde o século XVIII aceitou essa ideia, mas debaixo do pano era ela que dava as cartas no regime da chamada democracia representativa.” (6)
O impeachment de Dilma
FHC
“O impeachment e deposição da presidente Dilma Rousseff do cargo em 2016 não foi, ao contrário do que Lula da Silva afirma, um golpe de Estado. Foi o resultado de, entre outras coisas, a violação do seu governo de lei de responsabilidade fiscal do Brasil no período imediatamente anterior à eleição 2014.
O processo de impeachment seguiu todas as conformidades constitucionais, sob a supervisão do Supremo Tribunal brasileiro, no qual a maioria dos ministros foi nomeada por Lula da Silva e Dilma.”
FKC
“Haveria alguma personalidade com mais chances do que ele [o juiz Sérgio Moro] para enfrentar politicamente Luiz Inácio Lula da Silva?
Acontece que nenhum magistrado pode candidatar-se a algum posto eletivo no Brasil. Só restava, portanto, uma saída, que era inviabilizar a própria candidatura potencial de Lula, mediante a sua condenação criminal. Foi o que fez Sérgio Moro em sentença prolatada em julho de 2017. Logo em seguida, em flagrante violação de seus deveres de magistrado (Lei Complementar n. 35, de 14.03.1979, art. 36, III), o Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que atuou como segunda instância no respectivo processo, teceu publicamente rasgados elogios à sentença condenatória.
Não foi essa, porém, a única condenação criminal a Lula, como não tardou a se verificar.
Nesse meio tempo, nossos oligarcas prepararam e executaram em 2016 o afastamento de Dilma Rousseff da presidência da República, por meio de manobras ilegítimas, com a conivência do Ministério Público e do Poder Judiciário. O proveito para a oligarquia brasileira e o Estado norte-americano foi imediato e conspícuo, como se verá mais abaixo.” (5)
O devido processo
FHC
“A minha crítica não é motivada pelo antagonismo pessoal. Lula da Silva e eu lutamos juntos contra o regime autoritário que dominou o Brasil entre 1964 e 1985. Na sequência, quando concorremos como adversários em eleições democráticas, eu mantive uma relação construtiva com ele.
Lamento que o ex-presidente enfrente acusações adicionais de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas o fato é que os processos judiciais em que ele esteve envolvido seguido o devido processo e foram realizadas em conformidade com a Constituição e o Estado de Direito.”
FKC
“Os grandes burocratas casavam-se com as filhas dos grandes fazendeiros, dos grandes senhores de engenho (…) O dinheiro público era considerado um patrimônio próprio desta sociedade, de grandes agentes estatais e grandes empresários. (…) Afinal das contas, é todo um velho costume. Acontece que a operação Lava Jato, como eu disse antes, ela veio entrar nesse campo e atacar esse velho costume. E, a meu ver, isso foi necessário para desmoralizar os petistas e os governantes ligados ao petismo. Mas, ao final das contas, teve um lado negativo para eles, americanos e seus asseclas brasileiros: é que ficou evidente que, ao final das contas, isso aqui não começou ontem com o Lula, vem de séculos.” (4)
Efeitos “colaterais” da operação Lava Jato
FHC
“O caso de Lula da Silva não é um caso isolado. No Brasil, existem os políticos de todos os partidos na prisão, muitos dos quais tiveram condenações mantidas por um tribunal de apelações. Entre eles incluem-se membros do meu próprio partido, o PSDB.”
FKC
“O que, porém, ninguém previra foi o espraiamento da Operação Lava Jato, de modo a atingir individualmente os próprios oligarcas; inclusive o Presidente da República, fato sem precedentes em nossa história republicana. Denunciado criminalmente duas vezes pelo Procurador-Geral da República, Michel Temer teve que prodigalizar uma ampla distribuição de benesses aos deputados federais, a fim de barrar o início do processo penal perante o Supremo Tribunal Federal. Tudo isso, enfim, parece assegurar que, segundo todas as probabilidades, a coligação oligárquica tradicional permanecerá como titular da soberania em nosso país durante um tempo indefinido.” (5)
Sobre o cumprimento de pena quando ainda cabe recurso
FHC
“O precedente para a prisão após uma condenação ser mantida por um tribunal federal de apelações decorre de um acórdão do Supremo Tribunal que é muito anterior à condenação de Lula da Silva. Pessoas condenadas começam a cumprir sua sentença sem que isso afete o seu direito de recorrer aos tribunais superiores.”
FKC
“O preceito fundamental da presunção de inocência, assegurado pelo art. 5º, incisos LVII e LXI, da Lei Maior, está sendo lesionado pela Presidente dessa Suprema Corte diante da insistente recusa de pautar o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54 – na qual se busca ver reconhecida a necessidade do trânsito em julgado de sentença condenatória para o início do cumprimento de pena, exatamente como previsto no Texto Constitucional.” (FKC e mais quatro juristas em petição ao STF) (7)
Sobre a (in)elegibilidade de Lula
FHC
“Além disso, a inelegibilidade de Lula da Silva para concorrer à presidência nas próximas eleições é resultado de uma iniciativa popular que recebeu mais de 1 milhão de assinaturas, foi aprovada pelo Congresso e assinado em lei por ele mesmo em 2010. A chamada Lei da Ficha Limpa, resultante de uma campanha da sociedade civil contra a corrupção, proíbe qualquer pessoa condenada por um tribunal de apelações de concorrer a um cargo eletivo.
A iniciativa popular que resultou na lei foi uma resposta direta ao escândalo do Mensalão, um esquema fraudulento de compra de descoberto em 2005. O desmantelamento desse esquema de corrupção não impediu outro, ainda maior, de ser perpetrado em alguns dos maiores empresas estatais, notadamente Petrobras. A investigação sobre este escândalo, conhecido como Lava Jato ou “Car Wash”, descobriu um esquema para desviar bilhões de dólares para Partido dos Trabalhadores de Lula da Silva.”
FKC
“No Brasil, desde a colonização até agora, existem dois ordenamentos jurídicos. Existe o ordenamento oficial, que em grande parte não é aplicado. E existe o ordenamento jurídico real, que é dado nas suas grandes decisões justamente pelos oligarcas. Na Constituição de 88 introduziu-se o plebiscito e o referendo. E um jurista que é mais ou menos conhecido no meio jurídico propôs, ao Conselho Federal da OAB, uma lei para regulamentar o plebiscito e o referendo. Evidentemente que essa lei nunca foi aprovada. Por quê? Porque o plebiscito e o refendo existem no ordenamento oficial, como mostra para o estrangeiro, ‘nós somos um povo civilizado, democrata etc.’, mas não pode existir na realidade.” (6)
O momento atual do Sistema de Justiça brasileiro
FHC
“O Brasil está passando por um processo doloroso mas necessário de remoralizar a sua vida pública, e as ações do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário fazem parte deste processo.
Nem sempre me sinto confortável com as penas impostas ou com a expansão das detenções preventivas, em que o acusado é preso antes mesmo de seu primeiro julgamento em um tribunal inferior.”
FKC
“Como era de se esperar, os bons resultados das políticas implementadas pelo Governo Lula não deixaram de inquietar o poder oligárquico. Aproveitando-se do controle oligopólico que exerce há décadas sobre os meios de comunicação de massa, ele centrou seus ataques nos casos de corrupção ou prevaricação envolvendo ministros, que foram obrigados a deixar seus cargos.
Malgrado tais percalços, no entanto, o apoio popular a Lula não cedeu durante ambos os mandatos. Ao final do primeiro deles, em dezembro de 2006, uma pesquisa do Instituto Datafolha indicou que 52% dos entrevistados consideravam o seu governo ótimo ou bom; e em março de 2010, no último ano do segundo mandato, essa percentagem havia aumentado para 76%. Tais fatos voltaram a inquietar sobremaneira nossos oligarcas.” (7)
O país de FHC e o país de FKC
FHC
“É uma grave distorção da realidade, no entanto, para dizer que há uma campanha segmentada no Brasil para perseguir indivíduos específicos. O meu país merece mais respeito.”
FKC
“Durante anos … eu estou com 81 anos, até mais ou menos os 75 ou 76 anos, eu tinha esperança nesse país. Confesso que agora não tenho mais. É claro que a história é sempre feita de imprevistos e é possível que surja um imprevisto qualquer, a morte súbita de alguém ou um acontecimento extraordinário, mas dentro dos cânones constitucionais, eu não vejo saída.”
“Mas, então, por que o senhor continua?” Perguntou Rodolfo Lucena.
“Porque eu acho que tenho o dever de denunciar. Denúncia é importante. Se não produzir efeitos imediatos, ela acaba produzindo efeitos futuramente. E ela serve de exemplo. Eu disse que a mentalidade coletiva só se muda através de uma educação pública e educação pública organizada durante gerações, mas essa educação pública organizada durante gerações, ela é também estimulada pela denúncia. Porque se o crime coletivo ficar evidente para a população, os oligarcas não poderão escondê-lo. Eles vão tentar levar a coisa ao máximo que puderem sem cair no abismo, mas o que eu não sei é quando isso vai se dar.” (4)
Notas
1 Todas as citações ao ex-presidente FHC foram extraídas do artigo Lula da Silva’s vision of Brazil is a damaging fiction:
https://www.ft.com/content/7775bddc-a46c-11e8-a1b6-f368d365bf0e
2 Comparato: ‘Parece evidente que Lula jamais será julgado de forma imparcial’: https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2018/07/comparato-parece-evidente-que-lula-jamais-sera-julgado-de-forma-imparcial
3 Contra o absolutismo do Judiciário, o controle social. Entrevista com Fábio Konder Comparato:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias?id=560415:contra-o-absolutismo-do-judiciario-o-controle-social-entrevista-especial-fabio-konder-comparato-2&catid=159
4 Comparato fala a Tutameia sobre julgamento de Lula: https://youtu.be/wM2Csu4Ei68
5 Comparato: 2016, a grande revanche oligárquica:
6 Prof Fábio Konder Comparato A oligarquia brasileira ao longo da história: https://www.youtube.com/watch?v=qyBr8cEjV_8&feature=youtu.be
7 Medida Cautelar na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 54: https://www.conjur.com.br/dl/adpf-pt-pcdob-omissao-carmen-lucia.pdf
8 Essa matéria recebeu o selo 024-2018 do Observatório do Judiciário.
9 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:
https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario.
Cesar Locatelli
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