24/03/2013
A guerra do Miojo
Paulo Moreira Leite
É claro que, como qualquer cidadão de bom senso, tenho muitas preocupações sobre a qualidade do ensino de nossas escolas e o desempenho dos jovens em todas as fases de aprendizado.
Mas confesso que não entendo o escândalo em torno das redações do ENEM. Ou melhor: entendo perfeitamente.Não passa de uma combinação de nossa velha hipocrisia em relação à garotada, combinada com um esforço permanente para desmoralizar toda iniciativa destinada a fortalecer a educação pública. (Os grifos em verde negritado são do ContrapontoPIG)
Vamos combinar que o português é uma língua complexa, de regras muito particulares e assimilação difícil. As exceções são frequentes, os casos especiais também.
O mais grave é que as regras são submetidas a reformas ortográficas periódicas, o que torna o aprendizado um esforço permanente. O sujeito mal conseguiu memorizar as mudanças quando é informado que em algum ponto do universo foram aprovadas novas regras por motivos que só estão claros para quem reside em outra galáxia.
Profissional que lida com a língua portuguesa há quatro décadas, confesso que frequentemente me vejo às voltas com dúvidas e até cometo erros que poderiam ser motivo de humilhação pública num país onde a falta de educação formal chega a ser motivo de ofensa e preconceito.
No caso do ENEM, esse comportamento se agrava por um esforço para condenar uma postura descontraída e irreverente dos estudantes. Tudo bem que é meio esquisito um sujeito interromper uma redação e dar uma receita de Miojo. Ou fazer um elogio a seu time de coração.
Mas eu pergunto se isso é o mais importante. Provas de redação devem medir a capacidade de uma pessoa se expressar. Muito mais importante, portanto, é saber se a receita está bem redigida, com pontos, vírgulas e frases no local correto, do que implicar com o assunto escolhido. Basta ler a imprensa pátria para confirmar que a distinção entre assuntos sérios e assuntos leves, questões relevantes, puro entretenimento e bobagens comerciais tornou-se muito difícil de definir, certo?
Essa postura de afirmar autoridade sobre a juventude é um traço de comportamento daninho. Reflete insegurança em relação ao futuro.
No caso do ENEM, há um agravante. O combate a todo esforço de melhorar a qualidade do ensino público é uma das bandeiras sagradas que unem os meios de comunicação, a rede privada e a indústria de vestibulares.
Com muito mais virtudes do que defeitos, o ENEM é uma ameaça à ordem criada pela privatização da educação que se transformou em política de Estado durante o regime militar – e nunca foi questionada como era preciso.
Cabe às autoridades aprimorar o ENEM, sem impressionar-se com reações histéricas nem cair na armadilha de fazer inúteis demonstrações de autoridade diante de uma garotada que, desde o início dos tempos, apenas irá dar risada daqueles que não se esforçam para compreendê-la.
Paulo Moreira Leite. Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em Washington. É autor do livro A mulher que era o general da casa - Histórias da resistência civil à ditadura.
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