12/10/2014
O juiz da conjuntura e a conjuntura do juiz
Candidatura a uma vaga no STF -- a ser definida depois
da eleição -- permite questionar atuação de ministro responsável pela
Operação Lava Jato.
Blog do Paulo Moreira Leite
Se
é fácil entender a natureza explosiva dos depoimentos sobre a Petrobras
que chegaram à Tv, na conjuntura de um país que dentro de quinze dias
irá votar para presidente da República, também é conveniente avaliar a
conjuntura do juiz Sérgio Moro, responsável pela Operação Lava Jato.
Embora nenhum presidente da República já tenha indicado ministros
para o STF com base em listas corporativas, em agosto o nome de Sérgio
Moro surgiu numa lista de três nomes da Associação de Juizes Federais, a
AJUFE, que mobilizou seus associados para criar uma lista tríplice de
candidatos mais votados para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria de
Joaquim Barbosa. Numa relação na qual nenhum nome é incluído sem
consentimento do próprio interessado, Sérgio Moro foi o mais votado, com
141 votos.Você pode achar que os dois fatos não passam de simples coincidência. Mas também pode imaginar que estão ligados e que uma postura espetaculosa até o dia da eleição, favorecendo a criminalização do governo Dilma Rousseff numa investigação que está longe, muito longe de encerrada, pode ser motivo de recompensa depois da contagem dos votos. Você interpreta e decide. Mas conheça alguns dados.
Começando pelo começo. A Lei 12 850, de 2013, contém uma seção específica sobre Colaboração Premiada. O parágrafo 2o. diz que “o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia.” No parágrafo terceiro, marca-se um prazo para o fim do segredo: “o acordo deixa de ser sigiloso assim que recebida a denúncia.”
Isso acontece porque o Estado tem o dever de proteger cidadãos que decidiram colaborar com a Justiça e deve evitar que sejam expostos publicamente. Também deve manter as revelações em segredo, única forma de impedir que os demais implicados possam destruir provas e construir álibis forjados unicamente para responder às denúncias conhecidas de antemão.
Tanto a lei 12850 como a experiência juridica mais elementar permitem questionar a divulgação dos depoimentos de Paulo Roberto Costa e Alberto Yousseff sobre corrupção na Petrobras, gravados e divulgados quando os dois se encontravam na condição de colaboradores da Justiça. Neste papel, que pode assegurar a porta da liberdade para pessoas que a Lei poderia condenar inicialmente a 50 e até 100 anos de prisão, cada palavra, cada sentença, cada vírgula, tem um significado e uma função. “O sigilo está na essência da delação premiada, “afirma o assistente de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
A própria presidente da República, Dilma Rousseff, tentou obter a íntegra dos documentos que dão base à delação premiada de Yousseff e Paulo Roberto Costa. Fez o pedido ao Supremo Tribunal Federal e à Procuradoria Geral da República. Os dois pedidos foram recusados, o que deixou a República brasileira numa situação institucional insólita. Enquanto informações que deveriam ser mantidas em segredo são divulgadas a conta gotas, por decisão de um juiz de um tribunal de primeira instância, a presidente da República é prejudicada em seu dever maior, que é defender a Constituição.
Dilma não fazia uma simples retórica eleitoral quando denunciou, referindo-se a seus adversários políticos: “Eles sempre querem dar um golpe. E estão dando um golpe.”
A autonomia das investigações policiais recomenda que se faça segredo — mesmo diante da presidente da República — até o início das operações. O pressuposto é que dessa forma é possível garantir que as investigações possam ser realizadas com mãos livres para cumprir o dever de investigar o governo. Mas essa fase se encerra depois que são feitas prisões e operações de busca e apreensão. Isso porque não se pode imaginar que uma presidente possa ser mantida na ignorância sobre fatos e pessoas que podem representar um risco para o país.
Depois que a própria Dilma Rousseff colocou a questão nestes termos, o juiz Sergio Moro distribuiu nota dando explicações.
Argumentou que os “depoimentos foram prestados em audência aberta e em ação penal publica, imperando os mandamentos constitucionais do contraditório e da publicidade.” Moro alegou ainda que em crimes “contra a Administração Publica a transparência nos processos e investigações é a única forma de garantir o controle da população sobre a gestão da coisa pública e sobre a ‘integridade da Justiça.” Disse também que a divulgação, pela imprensa, é um “consectário normal do interesse público e do princípio da publicidade dos atos processuais em uma ação penal na qual nãoi foi imposto segredo de Justiça.”
Os argumentos de Sérgio Moro seriam 100% coerentes — não fosse seu comportamento, de um magistrado que não exibe maiores compromissos com a isenção de seu trabalho, à frente da lendária balança que simboliza a Justiça, mas coloca-se como parte do trabalho de acusação. Entre juristas, considera-se uma extravagância, que um magistrado, que mais tarde irá julgar dois acusados, promova uma audiência pública onde eles são orientados a dar depoimentos sob medida para serem divulgados em ambiente de escândalo. Pode-se imaginar quem, nessa situação, deixaria de atender toda e qualquer solicitação feita pela autoridade que na hora devida terá a palavra final sobre sua liberdade.
No STF e especialmente na sede da Procuradoria Geral da República, a gravação é vista como um atalho formal, destinado a cortornar o que diz a lei 12 850. Os documentos originais da delação são mantidos num computador sem contato com a internet, em versão criptografada. Como você deve ter lido em outra nota neste espaço, para o professor Luiz Moreira, integrante do Conselho Nacional do Ministério Público, “é lamentável que o sistema de justiça produza essa anomalia e que um procedimento judicial cercado de técnicas sofisticadas de colhimento dos testemunhos simplesmente se volte contra a ordem judicial que determina seu sigilo.”
Outro aspecto é que Yousseff e Paulo Roberto Costa têm sido orientados a nada dizer sobre autoridades com direito a foro privilegiado, como ministros, senadores, deputados, governadores. A explicação é inacreditável: é que essas revelações iriam retirar o caso da guarda de Sérgio Moro, que ficaria obrigado a transferir o caso para o STF.
É estranho que tente, abertamente, dirigir fatos investigados de acordo com as conveniencias de uma autoridade encarregada de apurar e punir um delito, quando o enredo da investigação indica outros caminhos. O nome disso é bagunça institucional, uma situação intolerável, que deixou uma triste memória na AP 470, com inúmeras distorções que resultaram num julgamento com penas fortes a partir de provas fracas, conduzido por um ministro-relator que esteve longe de exibir a postura equilibrada de magistrado, comportando-se como uma peça auxiliar e até principal da acusação.
A opção por um depoimento completo — o criptografado, inviolável — e uma segunda versão, pronta para divulgação, também permite uma seleção política de fatos e personagens. Numa reportagem sobre o depoimento de Paulo Roberto Costa, VEJA dizia que ele fez diversas acusações ao PSB e ao ex-governador Eduardo Campos. Parecia muito razoável, já que a usina Abreu Lima, centro de operações de Paulo Roberto Costa, foi construida em Pernambuco, com a indispensável participação do governo de Estado. No depoimento divulgado na semana passada, as referências ao PSB e a Eduardo Campos sumiram. Aécio Neves tinha acabado de receber apoio formal dos socialistas. Será coincidência?
A presença de Alberto Yousseff ajuda a dar volume às denúncias divulgadas mas a decisão de aceitá-lo no regime de delação premiada causa muita estranheza. Em 2002 o doleiro já havia colaborado com a polícia, durante a CPI do Banestado. Naquele momento, livrou-se das penas principais porque reuniu provas contra 60 doleiros menores, com os quais operava. Também admitiu ter movimentado US$ 5 bilhões em operações ilegais. Em função disso, recebeu os benefícios previstos em lei. Como é obrigatório em acordos desse tipo, assumiu o compromisso de que não iria mais envolver-se em atividades criminosas. Mas Yousseff não cumpriu essa parte, como as investigações de 2014 vieram a demonstrar. Mesmo assim, com a credibilidade em dúvida, conseguiu ingressar no programa de colaboração com a Justiça,”o que nunca imaginei que fosse acontecer depois que traiu o acordo de 2002,” afirma um dos responsáveis pelas investigações do Banestado.
Há menos de um mês, no julgamento de um habeas corpus, o Supremo anulou uma decisão de Sérgio Moro. Seria um caso trivial no judiciário, onde instancias superiores existem para modificar ou confirmar decisões dos patamares inferiores, não fosse pela linguagem particularmente dura dos ministros. Ricardo Lewandovski, que era o relator do caso, afirmou que “ele usurpou a competência” da instância superior. Celso de Mello, que também julgou o caso, disse que a decisão de Sérgio Moro foi um “ato absolutamente destituído de qualquer ortodoxia processual, na medida em que o magistrado federal de primeira instância procedeu a uma conduta de usurpação de competência deste Supremo Tribunal Federal.”
Em 2012, durante o julgamento da AP 470, Sérgio Morto tornou-se assistente da ministra Rosa Weber, que fez carreira na justiça do trabalho do Rio Grande do Sul. Partidário de punições duríssimas, o juiz logo caiu nas graças de jornalistas que fazem a cobertura do Supremo. Eles passaram a tratar Sérgio Moro como a eminência parda por trás das sentenças que a ministra apresentava em plenário. Embora tivesse interesse em permanecer no STF, chegando a enfrentar uma guerra nos tribunais para combinar o trabalho em Brasília com a devida carga horária como professor da Universidade Federal do Paraná, Sérgio Moro acabou retornando ao Paraná.
Na mesma semana em que os vazamentos da Petrobrás chegavam a TV e aos jornais — em breve, estarão no centro da propaganda política de Aécio — o PGR Rodrigo Janot decidiu arquivar a denuncia criminal sobre o aeroporto de Claudio. Sabe: aquela pista de 1 km que custou R$ 14 milhões ao contribuinte mineiro e hoje decora a fazenda de um tio do candidato do PSDB.
Não é a primeira vez que uma denúncia grave — embora a gravidade real dos fatos ainda não seja inteiramente conhecida — chega ao segundo turno de uma eleição presidencial. O retrospecto das campanhas presidenciais depois de 1989, quando o eleitor recuperou o direito de escolher presidentes pelo voto direto, parece ter formulado uma situação constante: nas vezes em que o Partido dos Trabalhadores teve chances reais de capturar — ou manter o governo federal — ocorrem eventos extraeleitorais capazes de interferir no resultado da eleição. Foi assim em 1989, 2002, 2006 e agora, em 2014.
Só se respirou uma situação que se pode chamar de normalidade em ocasiões onde a vitória do PSDB parecia assegurada — em 1994 e 1998 — ou em 2010, quando o candidato do PSDB não empolgava sequer os próprios aliados. Em 2012, ano de eleições municipais, que ocorreu o julgamento da AP 470. As principais sentenças, em ambiente de triunfo, foram anunciadas às vésperas da votação. Decisões que representavam garantias de direitos dos réus, como o desmembramento do julgamento foram evitadas com o argumento de que não se deveria atrasar a decisão.
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