10/11/2014
O muro a derrubar
O que falta para o governo federal definir uma agenda de conferências nacionais de ampla participação social, sobre temas nevrálgicos para o país? Nada.
Carta Maior - 10/11/2014 00:00
SaulLeblon
As celebrações da queda do muro de Berlim, neste 25º ano, careceram do brilho e do triunfalismo observado em outros aniversários.
A opacidade das imagens épicas não traduz apenas o escorrer do tempo.
Nunca a hegemonia dos chamados livres mercados foi tão radical quanto nesse quarto de século pós-muro.
E nunca suas promessas foram tão desmentidas pelos fatos. Sobretudo a partir do colapso da ordem neoliberal, em 2008.
Não se sanciona aqui o regime autoritário-burocrático do extinto sistema intramuros.
Importa reter, porém, que não se confirmaram as promessas de fastígio econômico, convergência social, cidadania plena e mesmo de paz mundial, em uma geopolítica supostamente saneada da tensão da guerra fria.
Em muitos casos, vive-se o inverso.
A dieta de arrocho e desemprego imposta às populações europeias nos dias que correm seria impensável no mundo anterior a 9 de novembro de 1989.
O desmonte do Estado do Bem Estar Social europeu, acelerado a partir de então, não apenas subtraiu uma estaca de resistência da civilização à voragem capitalista.
Ao reduzir o lado de dentro do Muro a um caso de patologia do horror, no dizer do filósofo italiano Domenico Losurdo, desqualificou-se, simultaneamente, a crítica de esquerda à degeneração soviética e à degradação capitalista subsequente.
O que se deu é sabido: os limites da democracia liberal ascenderam à condição de fim da história legitimando-se a captura definitiva do sistema político pelo poder econômico.
Qualquer dissonância seria carimbada, a partir de então, como fanatismo religioso, terrorismo ou corrupção.
O Estado e a ação estatal ganharam uma cruz no peito: zumbis.
A insistência em resgatá-los estaria condenada a repetir a matriz de ineficiência econômica, corrupção e repressão política.
Não é um vaticínio. É uma interdição à escolha das urnas.
Sob o martelete desse imperativo a agenda de amplos setores da esquerda rendeu-se incondicionalmente aos ditames do neoliberalismo econômico.
O que sobrou encontraria dificuldades para conciliar a genuflexão estratégica com bandeiras libertárias na esfera da democracia, dos costumes e do meio ambiente.
Como regular o clima, doce Marina, se a governança do mundo cabe ao Banco Central independente e às finanças desreguladas?
Tornou-se deselegante dar ao capitalismo o seu nome e as suas consequências.
Um gigantesco aparato de capilaridade inexcedível opera em todas as latitudes para desautorizar a aposta em qualquer lógica alternativa a essa que, em 2008, arrastou o capitalismo a sua maior crise em oitenta anos.
Não importa.
Tudo o que não é mercado é corrupção.
Tudo o que não é mercado é ineficiência.
É bolivarianismo, déficit e crise.
Assinado: mercados, mídia, togas e epígonos.
O maçarico que derrete votos em interditos está em plena operação num Brasil que acaba de rejeitar nas urnas a fatalidade da restauração neoliberal.
A amnésia histórica nunca foi tão providencial aos derrotados.
É forçoso relembrar, portanto, inclusive a setores progressistas.
A democracia é uma forma de Estado.
Sua forma atual no Brasil permite aos Cunhas & Itaús afogarem o país na lavagem cerebral aspergida sobre a luta política com mais força desde a queda do Muro, em 1989.
Tudo se passa como se não houvesse amanhã.
Para isso é preciso naturalizar o fato de que a liberdade irrestrita dos mercados implica a servidão das nações.
A mesma amnésia histórica leva o jornalismo isento a ‘esquecer’ que o desmonte global de direitos sociais após a queda do Muro de Berlim, assim como o avanço da desigualdade e a desregulação financeira compõem os fatores seminais da crise econômica global que ocorreria dezenove anos depois.
Se depender do conservadorismo, o segundo governo Dilma será soterrado pela lógica que anexou a derrubada do Muro de Berlim ao seu acervo simbólico.
Serão tempos extraordinários. Para os quais as ferramentas da rotina não servem mais.
Caberá ao governo e as forças progressistas brasileiras o desassombro de reinventá-las.
Questões concretas, que contribuam para derrubar o muro da dispersão progressista devem ter prioridade em lugar de temas esgotantes e pouco factíveis a atual correlação de forças.
Por exemplo: o que falta para o governo definir uma agenda de conferencias nacionais de ampla participação social, em 2015, sobre temas palpitantes da atualidade brasileira?
Nada.
Não é preciso a anuência do senhor Cunha, nem a simpatia de Aécio.
Ainda: o fim do financiamento empresarial de campanhas pode mudar a dinâmica eleitoral e institucional?
Pode.
Tem o apelo popular de impedir o tubarão de fraudar a vontade das sardinhas?
Tem.
Então talvez seja prioridade em relação a revisões ciclópicas pouco críveis.
Outra: a regulação da mídia une as forças progressistas com potencial para se constituir em um amplo movimento de legitimidade democrática incontestável pelos Cunhas & Aécios?
Sim.
Então cumpre estruturar sua articulação imediatamente.
Uma campanha de redução dos juros, de modo a que o Estado disponha de recursos adicionais para investir em qualidade de vida urbana e rural une o campo progressista e engendra outra lógica de desenvolvimento?
Sim. Pode, inclusive, sedimentar, na prática, uma frente de esquerda a partir dessa bandeira.
Então cumpre organizá-la.
São apenas exemplos.
Mas enlaçados a um mesmo potencial cuja pertinência não pode mais ser negligenciada: derrubar o muro da amnésia histórica com a força da mobilização política esclarecedora.
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