quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Contraponto 15.313 - "Dilma pode escolher: ser Francisco ou Bergóglio?"


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13/11/2014


Dilma pode escolher: ser Francisco ou Bergóglio?



A história não é fatalidade. Um exemplo de quem mudou suas circunstâncias? O Papa, que deixou de ser Bergóglio para se tornar Francisco.



Carta Maior - 13/11/2014 00:00
 
Arquivo


por: Saul Leblon


A incerteza que  antecede as definições do segundo governo Dilma mantém o Brasil em suspenso à direita e à esquerda.

Mercados financeiros giram feito barata tonta ao sabor dos mais desencontrados boatos.

Vendidos suplicam por um boato baixista; comprados dão a vida por uma puxada nas cotações. 
Ganha-se na diferença diária entre um zunzum e outro.

Especulações sobre o comando da economia oscilam entre o tudo e o nada, muito pelo contrário.

Há lastro.

É evidente a dúvida e a divergência nos círculos da própria Presidenta e do PT: como negociar sem regredir e, sobretudo, com preservar margem para avançar?

A hipótese de se reeditar o modelo  ‘Lula 1.0’, ortodoxo na condução da economia, heterodoxo no fortalecimento ancorado em expansão de salários, emprego e  políticas sociais tromba na história.

O quadro de bonança externa que permitiu a relação acomodatícia entre interesses conflitantes não existe mais.

O ciclo acabou na crise de 2008, que levou ao ‘Lula 2.0’ e ao primeiro Dilma, de recortes mais heterodoxos (Leia a análise de Tarso Genro; nesta pág).

Não apenas isso.

O estreitamento da margem de manobra na economia não encontra qualquer compensação no ambiente político.

Dilma sai inequivocamente vitoriosa de uma disputa histórica, marcada pelo confronto feroz entre projetos distintos de país, em meio a uma transição de ciclo econômico global.

A derrota da restauração neoliberal nas urnas brasileiras não encerra o confronto que permanece em aberto em todo o mundo.

Por isso é ilusório imaginar que o terceiro turno desta vez cederá tão cedo ou em troca de pouco.

Não cederá.

A percepção dessa rigidez adiciona tensões imagináveis na atormentada busca de uma ordenação do próximo governo.

Como  honrar a vitória nas urnas e exercer a iniciativa na esfera econômica e social, sem ser emparedado pela roleta do mercado financeiro aqui e lá fora?

O ‘salvacionismo da rendição’ ganha força à medida em que as escolhas giram em falso no relógio do tempo político.

Aqui e ali ouvem-se apelos extremados para Dilma ‘resolver logo’.

O que?

Tudo.

‘Tudo o que o mercado quer’.

Em vão imagina-se que assim haverá a trégua que o comunicado oficial da vitória na noite de 26 de outubro não ensejou.

Setores do PT antigamente identificados com aquilo que se convencionou chamar de ‘paloccismo, que vem a ser o neoliberalismo de estrela na lapela, vendem a ilusão de um apaziguamento.

Em 2006 venderam a Lula a fraude de que se dissesse ‘fui traído’, as capas de ‘Veja’ sobre o dito ‘mensalão’ refluiriam.

O que se deu é sabido.

Dilma sabe que não dá para atender ao apetite pantagruélico e  ao mesmo tempo cumprir as obrigações da urna.

Que fazer?

É aconselhável, em primeiro lugar, olhar em volta.

Quem  recomenda é o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista desta semana a Carta Maior (assista nesta pág.).

A desordem no capitalismo internacional é tão grave que o seu principal bunker financeiro, o FMI, converge rapidamente para se transformar em defensor de incentivos fiscais e do investimento público, aqui demonizados pelos bravos rapazes e moças do jornalismo isento.

Até autoridades da zona do euro, arrasada pelo fracasso desse oximoro, a ‘contração expansiva’, ensaiam mudança de tom.

A busca do impossível –crescer e arrochar—  faz água por todas as latitudes.

Ou não será essa impossibilidade metafísica que ordena o  ziguezagueante discurso do G-20, reunido na distante Austrália?

Oxímoros -- contradições em seus próprios termos--  refletem o esgotamento de uma agenda.

Aquela  que levou  o mundo a transitar da longa convalescença de 2008 direto para uma era de estagnação.

O ‘novo normal’, a perder de vista, sob os timoneiros do arrocho, compõe um cotidiano em que nada se move.

Exceto as curvas da desigualdade, o empoçamento  do capital fictício, o fastígio dos paraísos fiscais e a fuga da juventude desempregada para lugar nenhum.

Os dados estão carimbados no rosto de pedra dos participantes do G 20: 75 milhões de jovens nunca encontrarão trabalho em sua vida; o estoque do desemprego mundial requer a criação de 200 milhões de vagas. Mas a Europa continua a despejar gente na rua, enquanto nos EUA cresce o emprego precário e o rendimento da classe média hiberna há 15 anos.

Que arranjo ministerial é o mais indicado para enfrentar o terceiro turno do conservadorismo no Brasil, enquanto se espera um alvorecer da longa noite neoliberal?

Trazer o conflito para dentro do governo é uma forma de rachar a frente derrotada em 26 de outubro.

A que custo, porém,  sob o chicote do juro alto e do emprego declinante?

Outra hipótese é reformar a bicicleta da correlação de forças pedalando o mais depressa possível para longe da macroeconomia da recessão: baixar juro, usar o dinheiro economizado para obras, coordenar o câmbio, exportar, investir e contratar.

O jogral conservador diz que é o caminho para a morte súbita do governo Dilma.

É melhor morrer em fogo lento? Degrau por degrau na ladeira do desemprego, da erosão salarial e do desacorçoo, até o enterro solene em 2018?

Não há escolha fácil num mundo difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.

Mas a história não é uma ciência exata; por mais que o mercado lhe sonegue esse predicado ela muda sob a ação dos homens e de suas circunstâncias.

Mudanças no exercício do poder podem alterar as circunstancias e tornar possível o impossível.

Um exemplo meramente ilustrativo?

O Papa.

Nos últimos dias, o Papa Francisco foi elogiado por duas estrelas incontestáveis da constelação progressista latino-americana: sua conterrânea argentina, Estela Carloto,  líder do movimento das Abuelas de Mayo, que ele recebeu no Vaticano e a seu neto recém localizado;  e o brasileiro Pedro Stedile, o indobrável dirigente do MST, um dos convidados do Encontro  Mundial de Movimentos Populares, patrocinado pelo Papa, no final do outubro.

A receptividade do anfitrião impressionou o marxista Stédile.

 ‘O Papa deu uma grande contribuição (ao encontro), com um documento irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós; em 2.000 anos, nenhum Papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos sociais’, atestou Stédile.

Antes de afrontar  dois mil anos de história, o sucessor de Bento XVI --o doutrinário conservador Ratzinger, que renunciou em fevereiro de 2013--, já havia impressionado uns e surpreendido outros ao deflagrar uma devassa nos círculos de poder santo.

Sem cerimonia, Francisco afastou chefões acusados de abusos sexuais; criou comissões investigativas para devassar as sacristias do poder; abateu  corruptos abrigados em batinas purpuras; degredou veneráveis incrustrados na burocracia do Banco do Vaticano, de laços conhecidos com o crime organizado italiano.

Nesta 4ª feira, outras vozes da esquerda regional rasgaram elogios ao Papa por uma nova decisão corajosa.

 Francisco determinou que o Vaticano abra seus arquivos secretos quando isso for do interesse das investigações sobre desaparecidos políticos durante a ditadura militar argentina.

Uma reforma jurídica do Estado do Vaticano foi determinada pelo Papa para legalizar essa ruptura.

Sua orientação atinge a ultraconservadora hierarquia do catolicismo argentino.
Ela já começou a colaborar com as Abuelas de Mayo, na localização de filhos de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura que entre  1976 a 1983 matou cerca de 30 mil  argentinos.

A decisão de abrir os arquivos da Igreja tem um significado político especial para o Papa Francisco.

Quando o nome do Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, 76 anos, foi consagrado em março de 2013 pelo Concílio romano, a reação predominante na esquerda latino-americana –  inclua-se nisso Carta Maior—foi de desalento e apreensão.

O  265° Papa de Roma, o primeiro latino-americano a ocupar o trono de Pedro,  não oferecia motivos para comemorações.

A própria Estela Carloto desabafou na época que o sucessor do Papa Bento XVI fazia parte da “Igreja que escureceu o país” durante a ditadura.

‘É verdade, não sentimos muita alegria com a sua eleição; nunca tínhamos ouvido Bergoglio fazer menção aos desaparecidos, nem dar qualquer apoio à busca pelas nossas crianças’, admitiu ela após o encontro efusivo no Vaticano, onde fez uma autocrítica cercada de elogio ao renascido conterrâneo.

Não apenas omissão. A principal acusação contra o bispo Bergoglio era de cumplicidade.

Ele poderia, mas nunca facilitou, por exemplo, a reunião das abuelas desesperadas com o Papa.

O primeiro encontro delas com o Sumo Pontífice, em 1980, deu-se no Brasil e só aconteceu por interferência de religiosos brasileiros.

No livro “El Silencio”, o premiado jornalista argentino, Horacio Verbitsky, recolheu depoimentos e reconstituições que lançam sombras ainda mais densas sobre o passado do cardeal Bergoglio.

Sabe-se, por exemplo, que no dia em que a ‘fumata bianca’ do Vaticano anunciou o ‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal argentino no balcão , Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento, a 11.200 quilômetros de distância, em Buenos Aires.

O relato foi estampado nos jornais argentinos e também na Folha de S. Paulo.

A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na memória dessa sexagenária.

Em maio de 1976, seu irmão, padre Orlando Yorio, foi delatado à ditadura sedenta e recém-instalada, juntamente com o sacerdote Francisco Jalics, que hoje mora na Alemanha.

Os dois religiosos ficaram cinco meses nas mãos dos militares. Incomunicáveis, na temível Escola Mecânica da Marinha, adaptada para ser a máquina de moer ossos do regime.

Por omissão ou conivência ativa, atribui-se ao então cardeal Bergoglio — então com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas argentinos—um pedaço da responsabilidade por essas prisões.

Essa é a convicção de Graciela, baseada no que ouviu do irmão, falecido em 2000, militante da Teologia da Libertação como Jalics, que se diz  reconciliado com Francisco.

Não faltaram vozes  progressistas a rejeitar esse enredo macabro, dando testemunho da retidão discreta do conservador Bergóglio  sob o terror militar.

A corajosa abertura dos arquivos do Vaticano agora poderá dar-lhe o salvo conduto definitivo afastando  sua biografia da sombra desse período.

Mas o fato é que Bergóglio já se reinventou sob o manto de Francisco. Hoje, figura como uma referência sintomática do vento novo que sopra na contracorrente da decadência neoliberal no mundo.

O que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade discreta do seu cardinalato  na Argentina?

Seria maculado pela reprovação silenciosa de muitos; seria uma figura irrelevante  na desordem mundial; seria um pequeno conservador na cena extremada de um mundo em busca de nova identidade e de um ciclo renovador para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.

Seriam, enfim, tudo o que Francisco decidiu não ser e não é.

O que sobra disso para a pasmaceira de um Brasil que oscila entre um Meirelles ou um Tombini na Fazenda?

Sobra a lição da inexcedível capacidade humana para se reinventar nas amarras das circunstâncias, alterando-as no processo, mesmo sem ignorá-las.

Sobra a hipótese de Dilma vestir o manto da Presidência e poder escolher entre ser Bergóglio ou Francisco.

Sobra o espaço das escolhas na história.

Não fosse assim ela não seria  história, mas fatalidade.

Leia, abaixo, trechos do ilustrativo discurso do Papa Francisco, em 27 de outubro, na recepção aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos Populares, no Vaticano:

‘Obrigado por terem aceitado este convite para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo hoje (...). Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela! Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam, chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de domesticar’

‘( solidariedade) é pensar e agir em termos de comunidade, de prioridade de vida de todos sobre a apropriação dos bens por parte de alguns. É enfrentar os destrutivos efeitos do Império do dinheiro: os deslocamentos forçados, as migrações dolorosas, o tráfico de pessoas, a droga, a guerra, a violência e todas essas realidades que muitos de vocês sofrem e que todos somos chamados a transformar. A solidariedade, entendida em seu sentido mais profundo, é um modo de fazer história, e é isso que os movimentos populares fazem’.

‘Queremos que se ouça a sua voz, que, em geral, se escuta pouco. Talvez porque incomoda, talvez porque o seu grito incomoda, talvez porque se tem medo da mudança que vocês reivindicam, mas, sem a sua presença, sem ir realmente às periferias, as boas propostas e projetos que frequentemente ouvimos nas conferências internacionais ficam no reino da ideia’

‘Não é possível abordar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que unicamente tranquilizem e convertam os pobres em seres domesticados e inofensivos.

‘Este encontro nosso responde a um anseio muito concreto, algo que qualquer pai, qualquer mãe quer para os seus filhos; um anseio que deveria estar ao alcance de todos, mas que hoje vemos com tristeza cada vez mais longe da maioria: terra, teto e trabalho. É estranho, mas, se eu falo disso para alguns, significa que o papa é comunista’.

‘Terra, teto e trabalho – isso pelo qual vocês lutam – são direitos sagrados. Reivindicar isso não é nada raro, é a doutrina social da Igreja. Vou me deter um pouco sobre cada um deles, porque vocês os escolheram como tema para este encontro.

‘‘Quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos, tratando-os como qualquer mercadoria, milhões de pessoas sofrem e morrem de fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isso é um verdadeiro escândalo (...) deixem-me dizer-lhes que, em certos países, e aqui cito o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, "a reforma agrária é, além de uma necessidade política, uma obrigação moral’

‘Eu disse e repito: uma casa para cada família. Mas, além disso, um teto, para que seja um lar, tem uma dimensão comunitária: e é o bairro... e é precisamente no bairro onde se começa a construir essa grande família da humanidade, a partir do mais imediato, a partir da convivência com os vizinhos (...) ali, o espaço público não é um mero lugar de trânsito, mas uma extensão do próprio lar, um lugar para gerar vínculos com os vizinhos’.

‘O desemprego juvenil, a informalidade e a falta de direitos trabalhistas não são inevitáveis, são o resultado de uma prévia opção social, de um sistema econômico que coloca os lucros acima do homem, que considera o ser humano em si mesmo como um bem de consumo, que pode ser usado e depois jogado fora. Isso acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro e não o homem, a pessoa humana’

‘Descartam-se os idosos, porque, bom, não servem, não produzem. Nem crianças nem idosos produzem. Estamos assistindo a um terceiro descarte muito doloroso, o descarte dos jovens. Milhões de jovens (...) aqui na Itália, passou um pouquinho dos 40% de jovens desempregados. Sabem o que significa 40% de jovens? Toda uma geração, anular toda uma geração para manter o equilíbrio. Em outro país da Europa, está passando os 50% ...São dados claros do descarte. Descarte, descarte (...) para poder manter e reequilibrar um sistema em cujo centro está o deus dinheiro, e não a pessoa humana’

‘Um sistema econômico centrado no deus dinheiro também precisa saquear a natureza, saquear a natureza, para sustentar o ritmo frenético de consumo que lhe é inerente’.

‘Alguns de vocês expressaram: esse sistema não se aguenta mais. Temos que mudá-lo, temos que voltar a levar a dignidade humana para o centro, e que, sobre esse pilar, se construam as estruturas sociais alternativas de que precisamos. É preciso fazer isso com coragem, mas também com inteligência. Com tenacidade, mas sem fanatismo (...) Os cristãos têm algo muito lindo, um guia de ação, um programa, poderíamos dizer, revolucionário. Recomendo-lhes vivamente que o leiam, que leiam as Bem-aventuranças que estão no capítulo 5 de São Mateus e 6 de São Lucas (cfr. Mt 5, 3; e Lc 6, 20) e que leiam a passagem de Mateus 25’

‘A perspectiva de um mundo da paz e da justiça duradouras nos exige superar o assistencialismo paternalista, nos exige criar novas formas de participação que inclua os movimentos populares e anime as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais com essa torrente de energia moral que surge da incorporação dos excluídos na construção do destino comum. Digamos juntos com o coração: nenhuma família sem moradia, nenhum agricultor sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá’.
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