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11/07/2015
BRICS: a Geostratégia por trás da Nova Geoeconomia
Brasil 247 - 11 de Julho de 2015 às 19:23
Em artigo especial para o 247, Marcelo Zero
comenta o sucesso da cúpula de Ufá, na Rússia, que consolidou a criação
do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Acordo Contingente de
Reservas (CRA), para ajudar países com dificuldades no balanço de
pagamentos; "O grande risco do Brasil no atual cenário mundial não vem,
portanto, do arrefecimento do ciclo das commodities e da crise
internacional, que afeta todo o mundo. Na realidade, o grande risco do
país provém de sua situação política interna e da cegueira estratégica
de uma elite neocolonial que aposta obtusamente na volta a um passado de
dependência e fragilidade", diz ele; leia a íntegra
Por Marcelo Zero, especial para o 247
Quando o economista do
Goldman Sachs, Jim O´Neill, cunhou, em 2001, o acrônimo BRIC,
referindo-se aos megapaíses emergentes Brasil, Rússia, Índia e China, o
termo não passava de uma expressão vazia, um mero exercício intelectual
que pretendia denotar a crescente importância desses países para os
investidores das nações mais desenvolvidas e seu potencial de gerar bons
negócios para as firmas das grandes nações industrializadas. Os BRICs
eram apenas uma nova fronteira de investimentos que se abria, no quadro
de uma geoeconomia rigorosamente dominada pelos mesmos players de sempre.
Mal sabia ele que, 14
anos depois, em Ufá, Rússia, os BRICs, agora transformados em BRICS, com
a adição da África do Sul, já seriam um importantíssimo e atuante
bloco, que vem transformando a velha geoeconomia mundial e
revolucionando a arquitetura financeira internacional.
Com efeito, na recente
cúpula realizada na cidade fundada por Ivã, o Terrível, os BRICS fizeram
algo que era impensável há uma década. Eles concretizaram seu próprio
banco de investimentos, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB),
e seu próprio Arranjo de Contingente de Reservas (CRA) para ajudar
países em dificuldades. Criados na Reunião de Fortaleza, eles agora
passam a operar. Os BRICS são, hoje, um bloco institucionalizado, que
atua com desembaraço sobre a ordem mundial.
Esses dois arranjos
financeiros não surgiram por acaso. Eles sugiram de uma necessidade: as
velhas instituições multilaterais surgidas no longínquo ano de 1944, em
Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, já não conseguem lidar com os
desafios postos pela nova geoeconomia mundial. A UNCTAD, agência
especializada da ONU para o comércio e o desenvolvimento, estima que os
países em desenvolvimento precisariam de US$ 1 trilhão para aprimorar a
sua infraestrutura. FMI e Banco mundial são incapazes de responder a
esse desafio.
Afinal, trata-se de
instituições esclerosadas, cuja governança não incorpora os interesses e
os anseios dos novos atores globais. Elas continuam nas velhas mãos das
antigas potências, agora fortemente atingidas pela crise mundial. Para
se ter uma ideia, a China, segunda economia mundial, tem menos votos no
FMI que o Benelux ( Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Além disso, são
organismos dominados por obsoletas ideias paleoliberais, e exigem
condicionalidades draconianas para fazer empréstimos.
A tentativa de abrir mais
espaço para os países emergentes nessas instituições multilaterais
esbarrou no Congresso dos EUA, o qual até hoje não aprovou a modificação
nas cotas e no sistema de votação do FMI e do Banco Mundial. Os EUA e a
Europa continuam a ser seus mandantes privilegiados.
É uma situação absurda.
Afinal, os BRICS têm 42% da população mundial e 26% do território do
planeta. São responsáveis por 23% da economia mundial e 15% do comércio
internacional. Não bastasse, eles detêm 75% das reservas monetárias
internacionais. Além disso, os BRICS foram responsáveis por 36% do
crescimento da economia mundial, na primeira década deste século. Com a
recessão nos países mais desenvolvidos, esse número pulou para cerca de
50%, mesmo com a desaceleração recente do crescimento desse bloco.
Em outras palavras, a
importância dos BRICS não é só avassaladora, como vem crescendo ano a
ano, mesmo com a crise tendo se abatido recentemente sobre seus
membros.
Enganam-se, contudo,
aqueles que consideram os BRICS somente uma associação de caráter
econômico. Na realidade, com a nova geoeconomia, na qual os BRICS são
grandes atores em ascensão, cria-se também, inexoravelmente, uma nova
geopolítica e uma nova geoestratégia.
É aí que a coisa se complica e surgem as resistências e as críticas ao bloco.
Por trás da nova geoeconomia, há uma surda luta geopolítica e geoestratégica.
A China está passando por
um processo de transição econômica que inclui uma calculada
desaceleração. A economia chinesa, baseada em investimentos volumosos e
em exportações de manufaturados, tem atualmente excesso de capacidade
instalada em muitos segmentos econômicos (construção civil, energia,
etc.) e precisa refazer a sua estratégia econômica, face à desaceleração
do comércio mundial.
Nesse sentido, a China
vem fazendo um duplo movimento. Primeiro, aumentar o consumo doméstico,
de modo a compensar o baixo dinamismo do comercio mundial.
Segundo, e mais
importante, reduzir a sua dependência em relação ao dólar e sua
exposição às crises norte-americanas, face às suas gigantescas reservas
nessa moeda, diminuindo a hegemonia do dólar norte-americano como grande
meio de troca mundial e como reserva internacional de valor.
A criação do NDB e do CRA
e a expansão do banco da China, bem como os maciços investimentos desse
país no exterior são parte de um processo que troca investimentos em
títulos do tesouro americano (reservas) por investimentos em
infraestrutura em países em desenvolvimento. Com isso, a China não
apenas assegura o afluxo de commodities e influência geopolítica, como
prepara as condições para que o renmimbi seja uma moeda mundial,
competindo com o dólar.
Outra disputa surda, mas intensa, que envolve o BRICS tange ao domínio da Eurásia.
Em 1997, Zbigniew Brzezinski, scholar
extremamente influente, que fora assessor presidencial para assuntos de
segurança nacional no período de 1977 a 1981, publicou, na Foreign Affairs, um artigo intitulado Uma Geoestratégia para a Eurásia, que já antecipava algumas teses de seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Nesse artigo, ele
argumenta, com razão, que a Eurásia é o eixo geoestratégico do mundo, já
que esse supercontinente, além concentrar boa parte do território e dos
recursos naturais do planeta, conecta os dois grandes polos econômicos
do mundo além dos EUA, a União Europeia e o Leste da Ásia. Para
Brzezinski, é vital que os EUA tenham o controle desse supercontinente,
caso queiram permanecer como a única e inconteste superpotência.
Pois bem, a geoestratégia
concebida por Brzezinski implicava várias ações de longo prazo
concomitantes. Em primeiro lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a
liderança dos EUA. Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a
celebração de um tratado de livre comércio transatlântico, como o
anunciado recentemente. Em segundo, o fortalecimento das novas nações
independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após o
colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até a
Ucrânia. Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de
Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de sua
política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus aliados.
Essa geoestratégia
colidiu, obviamente, com o fortalecimento da Rússia sob Putin e a
formação do BRICS. A crise da Ucrânia nada mais é que a expressão
visível e aguda desse choque geoestratégico.
Para fazer frente a esses
novos desafios, os EUA reordenaram sua geoestratégia, que antes estava
centrada na luta contra o terrorismo e no Oriente Médio. A nova
geoestratégia norte-americana, explicitada em 2012 com o documento
“Sustentando a liderança global dos EUA: Prioridades para a Defesa do
Século 21”, pretende se contrapor à crescente erosão de poder econômico e
geopolítico dos EUA e aliados europeus e realizar movimentos de
contenção da ascensão de países emergentes, notadamente os reunidos no
BRICS.
Fazem parte dessa contraofensiva a TPP, a Trasn-Pacific Partnership, que inclui países asiáticos próximos à China, mas que exclui Beijing, e a Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), que pretende reforçar os laços econômicos entre os EUA e a União Europeia.
Essa contraofensiva
também implica o abandono parcial da política unilateralista de
confrontação no Oriente Médio, que não funciona e consome volumosos
recursos militares e estratégicos. Os investimentos no shale oil,
mesmo com todos os problemas ambientais que geram, se inserem nessa
tentativa de diminuir a importância do Oriente Médio, na nova
geoestratégia norte-americana.
E o Brasil, como se insere, nesse tabuleiro geoestratégico?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Brasil também é alvo da contraofensiva norte-americana.
A recente distensão das
relações entre os EUA e Cuba, por exemplo, faz parte de um movimento de
reaproximação da única superpotência do planeta à América Latina e ao
Brasil. O conflito com Cuba sempre significou um entrave desnecessário e
obsoleto para uma relação mais fluida com os EUA. A eliminação desse
entrave, do ponto de vista dos EUA, ajuda a abrir caminhos para uma
retomada de sua histórica influência na região.
A Aliança do Pacífico, um
factoide do ponto de vista econômico e comercial, representa, na
realidade, uma ofensiva geopolítica direcionada contra a integração
regional, sob o disfarce de um regionalismo aberto voltado à integração
assimétrica com os EUA e outras potências tradicionais. O alvo é o
Mercosul e sua união aduaneira.
A contraofensiva
geoestratégica dos EUA passa, na América Latina, pela tentativa de
desarticulação da integração regional liderada pelo Brasil e pela
limitação da influência da China e da Rússia na região.
Entretanto, essa
contraofensiva não é necessariamente ruim para o país. Ao contrário, o
Brasil pode se aproveitar dessas disputas para se projetar ainda mais no
cenário mundial.
Essa possibilidade esbarra, contudo, na total cegueira estratégica das nossas elites.
Com o arrefecimento (não o
fim) do ciclo das commodities e a crise que agora também afeta países
emergentes e em desenvolvimento, ressurgiu com plena força o mito de que
a recente política externa brasileira é equivocada e precisa se
reorientar em direção ao seu “leito natural”, isto é, os EUA e demais
potências tradicionais. Critica-se o Mercosul, a integração regional, a
cooperação Sul-Sul, a parceria com os países emergentes e, é claro,
também os BRICS, grande foro que o Brasil utiliza para se consolidar
como liderança mundial.
Para os que padecem dessa
irremediável cegueira estratégica, o Brasil deve renunciar ao Mercosul e
sua união aduaneira, à cooperação Sul-Sul e a um BRICS politicamente
mais atuante e investir em acordos de livre comércio com os EUA e a
União Europeia, de modo a se inserir celeremente nas cadeias
internacionais de produção. Com a crise e a baixa das commodities, que
demanda esforços para se aumentar as exportações, principalmente as
exportações de manufaturados, em razão da óbvia contração da demanda
interna acarretada pelo ajuste, essas teses ganharam contornos
preocupantes de urgência.
Ora, isso seria um erro
gravíssimo. A integração regional absorve mais produtos manufaturados
brasileiros que todos os países desenvolvidos somados. A competitividade
dos nossos produtos manufaturados em nosso entorno regional está
relacionada justamente à união aduaneira. Sem ela, nossos produtos não
poderiam competir com bens chineses, norte-americanos, europeus, etc. O
mesmo ocorre com os outros vetores da nossa política externa, como a
cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com países emergentes.
Foram esses vetores que nos permitiram expandir nossa participação no
comércio mundial, de 0,88%, em 2000, para 1,43%, em 2011, e elevaram
substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.
É claro que o Brasil, em sua condição de global player,
tem de se aproximar mais dos EUA, da União Europeia e qualquer país ou
bloco que queria, nesse momento de baixo crescimento do comércio
mundial, estreitar seus laços de cooperação conosco. Mas o país tem de
fazer isso a partir da posição de relevo e de alto protagonismo que
conquistou justamente com esses vetores da política externa ativa e
altiva, que nos livrou da antiga dependência e fragilidade dos tempos
paleoliberais. Como membro do Mercosul e do BRICS, o Brasil pode muito
mais.
A celebração açodada de
acordos de livre comércio assimétricos com potências tradicionais,
somada a uma desarticulação da integração regional e a um baixo
investimento no BRICS e nas demais parcerias estratégicas com países
emergentes, acabaria transformando o Brasil num grande México, o país da
América Latina, que nos últimos 12 anos, apresentou o menor crescimento
do PIB per capita na América Latina, à exceção da Guatemala. O país que
tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza.
Na recente viagem de
Dilma aos EUA, Obama declarou, em alto e bom som, que seu país considera
o Brasil não somente uma potência regional, mas também uma potência
mundial. Não foi mera retórica diplomática. Foi constatação da
verdade.
Contudo, o Brasil só
adquiriu esse status perante os EUA e os demais países do mundo porque
fez aposta geoestratégica correta de investir na integração regional, na
cooperação Sul-Sul e nas parcerias com os demais BRICS. O Brasil se
converteu em grande ator mundial porque, em essência, investiu em seus
próprios interesses.
O grande risco do Brasil
no atual cenário mundial não vem, portanto, do arrefecimento do ciclo
das commodities e da crise internacional, que afeta todo o mundo. Na
realidade, o grande risco do país provém de sua situação política
interna e da cegueira estratégica de uma elite neocolonial que aposta
obtusamente na volta a um passado de dependência e fragilidade.
O centro da política
externa brasileira tem de continuar a ser a integração regional a
cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com emergentes,
particularmente com o BRICS, que se tornou, de fato, um novo polo
político que contribui para o multilateralismo e uma ordem mundial menos
assimétrica. É isso que nos cacifa para termos uma relação mais
proveitosa com os EUA. É isso que nos faz potência.
Entretanto, se os
interesses retrógados internos preponderarem, talvez na próxima viagem
aos EUA o Brasil não seja saudado nem como potência mundial, nem como
potência regional. Seremos, de novo, apenas o quintal.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
.
Em artigo especial para o 247, Marcelo Zero
comenta o sucesso da cúpula de Ufá, na Rússia, que consolidou a criação
do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Acordo Contingente de
Reservas (CRA), para ajudar países com dificuldades no balanço de
pagamentos; "O grande risco do Brasil no atual cenário mundial não vem,
portanto, do arrefecimento do ciclo das commodities e da crise
internacional, que afeta todo o mundo. Na realidade, o grande risco do
país provém de sua situação política interna e da cegueira estratégica
de uma elite neocolonial que aposta obtusamente na volta a um passado de
dependência e fragilidade", diz ele; leia a íntegra
Por Marcelo Zero, especial para o 247
Quando o economista do
Goldman Sachs, Jim O´Neill, cunhou, em 2001, o acrônimo BRIC,
referindo-se aos megapaíses emergentes Brasil, Rússia, Índia e China, o
termo não passava de uma expressão vazia, um mero exercício intelectual
que pretendia denotar a crescente importância desses países para os
investidores das nações mais desenvolvidas e seu potencial de gerar bons
negócios para as firmas das grandes nações industrializadas. Os BRICs
eram apenas uma nova fronteira de investimentos que se abria, no quadro
de uma geoeconomia rigorosamente dominada pelos mesmos players de sempre.
Mal sabia ele que, 14
anos depois, em Ufá, Rússia, os BRICs, agora transformados em BRICS, com
a adição da África do Sul, já seriam um importantíssimo e atuante
bloco, que vem transformando a velha geoeconomia mundial e
revolucionando a arquitetura financeira internacional.
Com efeito, na recente
cúpula realizada na cidade fundada por Ivã, o Terrível, os BRICS fizeram
algo que era impensável há uma década. Eles concretizaram seu próprio
banco de investimentos, o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS (NDB),
e seu próprio Arranjo de Contingente de Reservas (CRA) para ajudar
países em dificuldades. Criados na Reunião de Fortaleza, eles agora
passam a operar. Os BRICS são, hoje, um bloco institucionalizado, que
atua com desembaraço sobre a ordem mundial.
Esses dois arranjos
financeiros não surgiram por acaso. Eles sugiram de uma necessidade: as
velhas instituições multilaterais surgidas no longínquo ano de 1944, em
Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial, já não conseguem lidar com os
desafios postos pela nova geoeconomia mundial. A UNCTAD, agência
especializada da ONU para o comércio e o desenvolvimento, estima que os
países em desenvolvimento precisariam de US$ 1 trilhão para aprimorar a
sua infraestrutura. FMI e Banco mundial são incapazes de responder a
esse desafio.
Afinal, trata-se de
instituições esclerosadas, cuja governança não incorpora os interesses e
os anseios dos novos atores globais. Elas continuam nas velhas mãos das
antigas potências, agora fortemente atingidas pela crise mundial. Para
se ter uma ideia, a China, segunda economia mundial, tem menos votos no
FMI que o Benelux ( Bélgica, Holanda e Luxemburgo). Além disso, são
organismos dominados por obsoletas ideias paleoliberais, e exigem
condicionalidades draconianas para fazer empréstimos.
A tentativa de abrir mais
espaço para os países emergentes nessas instituições multilaterais
esbarrou no Congresso dos EUA, o qual até hoje não aprovou a modificação
nas cotas e no sistema de votação do FMI e do Banco Mundial. Os EUA e a
Europa continuam a ser seus mandantes privilegiados.
É uma situação absurda.
Afinal, os BRICS têm 42% da população mundial e 26% do território do
planeta. São responsáveis por 23% da economia mundial e 15% do comércio
internacional. Não bastasse, eles detêm 75% das reservas monetárias
internacionais. Além disso, os BRICS foram responsáveis por 36% do
crescimento da economia mundial, na primeira década deste século. Com a
recessão nos países mais desenvolvidos, esse número pulou para cerca de
50%, mesmo com a desaceleração recente do crescimento desse bloco.
Em outras palavras, a
importância dos BRICS não é só avassaladora, como vem crescendo ano a
ano, mesmo com a crise tendo se abatido recentemente sobre seus
membros.
Enganam-se, contudo,
aqueles que consideram os BRICS somente uma associação de caráter
econômico. Na realidade, com a nova geoeconomia, na qual os BRICS são
grandes atores em ascensão, cria-se também, inexoravelmente, uma nova
geopolítica e uma nova geoestratégia.
É aí que a coisa se complica e surgem as resistências e as críticas ao bloco.
Por trás da nova geoeconomia, há uma surda luta geopolítica e geoestratégica.
A China está passando por
um processo de transição econômica que inclui uma calculada
desaceleração. A economia chinesa, baseada em investimentos volumosos e
em exportações de manufaturados, tem atualmente excesso de capacidade
instalada em muitos segmentos econômicos (construção civil, energia,
etc.) e precisa refazer a sua estratégia econômica, face à desaceleração
do comércio mundial.
Nesse sentido, a China
vem fazendo um duplo movimento. Primeiro, aumentar o consumo doméstico,
de modo a compensar o baixo dinamismo do comercio mundial.
Segundo, e mais
importante, reduzir a sua dependência em relação ao dólar e sua
exposição às crises norte-americanas, face às suas gigantescas reservas
nessa moeda, diminuindo a hegemonia do dólar norte-americano como grande
meio de troca mundial e como reserva internacional de valor.
A criação do NDB e do CRA
e a expansão do banco da China, bem como os maciços investimentos desse
país no exterior são parte de um processo que troca investimentos em
títulos do tesouro americano (reservas) por investimentos em
infraestrutura em países em desenvolvimento. Com isso, a China não
apenas assegura o afluxo de commodities e influência geopolítica, como
prepara as condições para que o renmimbi seja uma moeda mundial,
competindo com o dólar.
Outra disputa surda, mas intensa, que envolve o BRICS tange ao domínio da Eurásia.
Em 1997, Zbigniew Brzezinski, scholar
extremamente influente, que fora assessor presidencial para assuntos de
segurança nacional no período de 1977 a 1981, publicou, na Foreign Affairs, um artigo intitulado Uma Geoestratégia para a Eurásia, que já antecipava algumas teses de seu livro O Grande Tabuleiro de Xadrez.
Nesse artigo, ele
argumenta, com razão, que a Eurásia é o eixo geoestratégico do mundo, já
que esse supercontinente, além concentrar boa parte do território e dos
recursos naturais do planeta, conecta os dois grandes polos econômicos
do mundo além dos EUA, a União Europeia e o Leste da Ásia. Para
Brzezinski, é vital que os EUA tenham o controle desse supercontinente,
caso queiram permanecer como a única e inconteste superpotência.
Pois bem, a geoestratégia
concebida por Brzezinski implicava várias ações de longo prazo
concomitantes. Em primeiro lugar, o fortalecimento da Europa unida, sob a
liderança dos EUA. Para tanto, Brzezinski já sugeria, inclusive, a
celebração de um tratado de livre comércio transatlântico, como o
anunciado recentemente. Em segundo, o fortalecimento das novas nações
independentes da Ásia Central e do Leste Europeu, que surgiram após o
colapso da União Soviética, e a consequente expansão da OTAN até a
Ucrânia. Em terceiro lugar, e mais importante, a geoestratégia de
Brzezinski previa o enfraquecimento da Rússia e o enquadramento de sua
política externa nos imperativos geopolíticos dos EUA e seus aliados.
Essa geoestratégia
colidiu, obviamente, com o fortalecimento da Rússia sob Putin e a
formação do BRICS. A crise da Ucrânia nada mais é que a expressão
visível e aguda desse choque geoestratégico.
Para fazer frente a esses
novos desafios, os EUA reordenaram sua geoestratégia, que antes estava
centrada na luta contra o terrorismo e no Oriente Médio. A nova
geoestratégia norte-americana, explicitada em 2012 com o documento
“Sustentando a liderança global dos EUA: Prioridades para a Defesa do
Século 21”, pretende se contrapor à crescente erosão de poder econômico e
geopolítico dos EUA e aliados europeus e realizar movimentos de
contenção da ascensão de países emergentes, notadamente os reunidos no
BRICS.
Fazem parte dessa contraofensiva a TPP, a Trasn-Pacific Partnership, que inclui países asiáticos próximos à China, mas que exclui Beijing, e a Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), que pretende reforçar os laços econômicos entre os EUA e a União Europeia.
Essa contraofensiva
também implica o abandono parcial da política unilateralista de
confrontação no Oriente Médio, que não funciona e consome volumosos
recursos militares e estratégicos. Os investimentos no shale oil,
mesmo com todos os problemas ambientais que geram, se inserem nessa
tentativa de diminuir a importância do Oriente Médio, na nova
geoestratégia norte-americana.
E o Brasil, como se insere, nesse tabuleiro geoestratégico?
Em primeiro lugar, é preciso considerar que o Brasil também é alvo da contraofensiva norte-americana.
A recente distensão das
relações entre os EUA e Cuba, por exemplo, faz parte de um movimento de
reaproximação da única superpotência do planeta à América Latina e ao
Brasil. O conflito com Cuba sempre significou um entrave desnecessário e
obsoleto para uma relação mais fluida com os EUA. A eliminação desse
entrave, do ponto de vista dos EUA, ajuda a abrir caminhos para uma
retomada de sua histórica influência na região.
A Aliança do Pacífico, um
factoide do ponto de vista econômico e comercial, representa, na
realidade, uma ofensiva geopolítica direcionada contra a integração
regional, sob o disfarce de um regionalismo aberto voltado à integração
assimétrica com os EUA e outras potências tradicionais. O alvo é o
Mercosul e sua união aduaneira.
A contraofensiva
geoestratégica dos EUA passa, na América Latina, pela tentativa de
desarticulação da integração regional liderada pelo Brasil e pela
limitação da influência da China e da Rússia na região.
Entretanto, essa
contraofensiva não é necessariamente ruim para o país. Ao contrário, o
Brasil pode se aproveitar dessas disputas para se projetar ainda mais no
cenário mundial.
Essa possibilidade esbarra, contudo, na total cegueira estratégica das nossas elites.
Com o arrefecimento (não o
fim) do ciclo das commodities e a crise que agora também afeta países
emergentes e em desenvolvimento, ressurgiu com plena força o mito de que
a recente política externa brasileira é equivocada e precisa se
reorientar em direção ao seu “leito natural”, isto é, os EUA e demais
potências tradicionais. Critica-se o Mercosul, a integração regional, a
cooperação Sul-Sul, a parceria com os países emergentes e, é claro,
também os BRICS, grande foro que o Brasil utiliza para se consolidar
como liderança mundial.
Para os que padecem dessa
irremediável cegueira estratégica, o Brasil deve renunciar ao Mercosul e
sua união aduaneira, à cooperação Sul-Sul e a um BRICS politicamente
mais atuante e investir em acordos de livre comércio com os EUA e a
União Europeia, de modo a se inserir celeremente nas cadeias
internacionais de produção. Com a crise e a baixa das commodities, que
demanda esforços para se aumentar as exportações, principalmente as
exportações de manufaturados, em razão da óbvia contração da demanda
interna acarretada pelo ajuste, essas teses ganharam contornos
preocupantes de urgência.
Ora, isso seria um erro
gravíssimo. A integração regional absorve mais produtos manufaturados
brasileiros que todos os países desenvolvidos somados. A competitividade
dos nossos produtos manufaturados em nosso entorno regional está
relacionada justamente à união aduaneira. Sem ela, nossos produtos não
poderiam competir com bens chineses, norte-americanos, europeus, etc. O
mesmo ocorre com os outros vetores da nossa política externa, como a
cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com países emergentes.
Foram esses vetores que nos permitiram expandir nossa participação no
comércio mundial, de 0,88%, em 2000, para 1,43%, em 2011, e elevaram
substancialmente o protagonismo internacional do Brasil.
É claro que o Brasil, em sua condição de global player,
tem de se aproximar mais dos EUA, da União Europeia e qualquer país ou
bloco que queria, nesse momento de baixo crescimento do comércio
mundial, estreitar seus laços de cooperação conosco. Mas o país tem de
fazer isso a partir da posição de relevo e de alto protagonismo que
conquistou justamente com esses vetores da política externa ativa e
altiva, que nos livrou da antiga dependência e fragilidade dos tempos
paleoliberais. Como membro do Mercosul e do BRICS, o Brasil pode muito
mais.
A celebração açodada de
acordos de livre comércio assimétricos com potências tradicionais,
somada a uma desarticulação da integração regional e a um baixo
investimento no BRICS e nas demais parcerias estratégicas com países
emergentes, acabaria transformando o Brasil num grande México, o país da
América Latina, que nos últimos 12 anos, apresentou o menor crescimento
do PIB per capita na América Latina, à exceção da Guatemala. O país que
tem 51% da sua população abaixo da linha da pobreza.
Na recente viagem de
Dilma aos EUA, Obama declarou, em alto e bom som, que seu país considera
o Brasil não somente uma potência regional, mas também uma potência
mundial. Não foi mera retórica diplomática. Foi constatação da
verdade.
Contudo, o Brasil só
adquiriu esse status perante os EUA e os demais países do mundo porque
fez aposta geoestratégica correta de investir na integração regional, na
cooperação Sul-Sul e nas parcerias com os demais BRICS. O Brasil se
converteu em grande ator mundial porque, em essência, investiu em seus
próprios interesses.
O grande risco do Brasil
no atual cenário mundial não vem, portanto, do arrefecimento do ciclo
das commodities e da crise internacional, que afeta todo o mundo. Na
realidade, o grande risco do país provém de sua situação política
interna e da cegueira estratégica de uma elite neocolonial que aposta
obtusamente na volta a um passado de dependência e fragilidade.
O centro da política
externa brasileira tem de continuar a ser a integração regional a
cooperação Sul-Sul e as parcerias estratégicas com emergentes,
particularmente com o BRICS, que se tornou, de fato, um novo polo
político que contribui para o multilateralismo e uma ordem mundial menos
assimétrica. É isso que nos cacifa para termos uma relação mais
proveitosa com os EUA. É isso que nos faz potência.
Entretanto, se os
interesses retrógados internos preponderarem, talvez na próxima viagem
aos EUA o Brasil não seja saudado nem como potência mundial, nem como
potência regional. Seremos, de novo, apenas o quintal.
* Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais
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