15/07/2015
Max Gimenes: Quem tem medo de um papa “reconvertido” ao cristianismo?
Do Viomundo - publicado em 15 de julho de 2015 às 16:54
Quem tem medo de um papa “reconvertido ao cristianismo”?
por Max Gimenes
Uma boa forma de avaliar o potencial de um discurso é observar o modo como se dá a reação daqueles cujos interesses são contrariados por ele.
A atual visita de Jorge Mario Bergoglio, vulgo para Francisco, à América Latina, bem como os discursos que ele tem proferido no decorrer dela, considerados os mais “politizados” de seu pontificado, têm causado certo incômodo em elites e setores conservadores em geral.
Incômodo este que se encontra claramente expresso no afã de separar, via grande imprensa, o que a seus olhos seriam, de um lado, o trigo (certo cristianismo social de bom tom para os tempos modernos, desde que inofensivo) e, de outro, o joio (os presidentes “populistas” do continente, os partidos de esquerda “extremistas” que se postulam como alternativa antiausteridade ao redor do globo e o marxismo como método “ideológico” de entendimento da vida social).
Um exemplo de descarada seletividade crítica da nossa imprensa: a “Folha” noticiou que a tal visita papal exporia “divergências entre papa e Evo”. O vaticínio se fundamenta numa suposta oposição entre a última carta encíclica do papa, de tom ambientalista, e as atuais medidas do governo boliviano, de aumento da exploração de recursos naturais.
Ora, mas a mesma “Folha” noticiou mês passado que, no documento acima mencionado, o papa afirmava categoricamente que “as nações pobres não podem ser penalizadas economicamente por um problema que deriva, em grande parte, da poluição gerada em países ricos”. Desnecessário acrescentar que a Bolívia está entre os países mais pobres de um continente em si mesmo periférico etc.
Um homem de boa vontade poderia então ter a brilhante ideia de financiar a preservação de recursos naturais em países periféricos com algum tipo de fundo internacional mantido por países centrais, grandes empresas e pessoas célebres comprometidos com a causa ambiental, tão na moda.
Poderia não, já teve, e o nome desse “homem de boa vontade” é Rafael Correa, que foi eleito presidente do Equador, assim como Evo Morales no caso da Bolívia, comprometido com a “Pacha Mama” (“Mãe Natureza”, em quíchua). Tratava-se da preservação dos recursos naturais bilionários localizados sob a Reserva Nacional de Yasuní, que de fato ficou seis anos intocada, até meses atrás, quando o presidente Correa se deu conta de que há mais hipocrisia que compromisso efetivo com a natureza entre os poderosos do planeta: a arrecadação, prevista nesse tempo para US$ 3,6 bilhões, chegou só a US$ 13 milhões.
Tudo muito contemporâneo e relevante em relação ao tema tratado pelo papa e à visita justamente a Equador e Bolívia (além do Paraguai, que fecha o tour). Mas, na nossa imprensa, apenas o silêncio, quebrado vez ou outra pelo reiterado e retumbante “cri” dos grilos. E nada mais.
Depois foi a vez da falsa polêmica em torno do presente dado por Evo Morales ao papa: um Cristo pregado a uma cruz em formato de foice e martelo, símbolo do comunismo (mais precisamente, do “marxismo-leninismo”). A peça, esculpida na década de 1970 pelo jesuíta espanhol Luís Espinal, assassinado pela ditadura boliviana em 1980, era aceno ao diálogo, visto com certa frequência à época como necessário, entre cristãos e socialistas, na luta contra o capitalismo e seus aliados, como as ditaduras latinoamericanas.
Que um tal presente seja considerado “esdrúxulo” por colunistas de coisas como “Veja”, nada mais natural. Mas a mesma “Folha” já citada deu espaço a um de seus articulistas para que, fora de sua casinha, ele chamasse o presente de “aberração”.
Em chave distinta, trata-se porém da mesma adjetivação incomodada que vimos quando, na última Parada do Orgulho LGBT em SP, uma transexual, Viviany Beleboni, decidiu representar a Paixão de Cristo. A unir os dois casos igualmente pertinentes, a injustiça do sofrimento infligido a seres humanos inocentes: pela lgbtfobia num caso, pela exploração não inteiramente recompensada da força de trabalho dos trabalhadores da cidade (martelo) e campo (foice) no outro.
A história da Igreja é marcada pela ambiguidade de ora servir de ânimo à luta emancipatória dos povos (com os ideais de fraternidade e justiça encarnados por um Jesus humilde como testemunham os Evangelhos) e ora à justificação da opressão (que legitimação melhor, afinal, para o exercício ilimitado e arbitrário do poder, se não o de fazê-lo na condição de suposto representante terreno de Deus?).
Longe de ser uma instituição que serve unilateralmente a um ou outro desses lados, ela expressa em seu seio, por sua amplitude e complexidade, as contradições da própria sociedade, emprestando-lhes a mediação simbólica do imaginário cristão e da doutrina católica.
A despeito de surpreendente, nada disso que o papa tem dito contra o capitalismo e em defesa de transformações estruturais é propriamente novidade no interior do catolicismo (fora dele, menos ainda). Peguemos o exemplo das três tarefas enunciadas por ele durante o encontro de movimentos sociais em Santa Cruz de la Sierra em que discursou: colocar a humanidade no centro da economia, unir os povos e preservar a natureza.
Tudo isso encontrou pioneira e contundente sistematização ideológica e ativismo social na década de 1940, com o movimento Economia e Humanismo fundado pelo padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret (1897-1966).
O crítico literário Antonio Candido costuma contar que padre Lebret, em uma de suas viagens ao Brasil, confidenciou-lhe que achava que o futuro da humanidade estaria nas mãos dos socialistas independentes e dos cristãos reconvertidos ao cristianismo (mistura de anticapitalismo científico/cognitivo e moral/afetivo que seria explosiva).
A ortodoxia soviética, que meio século atrás parecia inabalável, ruiu em 1989, dando espaço para o “socialismo independente”. E agora, ao que parece, é a ortodoxia católica que vê contados os seus dias com o papado progressista de Jorge Mario Bergoglio. A conjuntura parece nunca ter sido tão favorável à mistura ansiada por Lebret.
Como bem indicou no mesmo encontro já mencionado em Santa Cruz de la Sierra João Pedro Stedile, liderança do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o capitalismo tem muitos representantes internacionais, de Angela Merkel aos mais variados organismos multilaterais, e os trabalhadores, há muito “órfãos”, teriam agora o papa.
Não é propriamente a salvação para o futuro político da humanidade, mas se trata sem dúvidas de uma importante parte do caminho. Ao menos, é claro, para os que preferem um outro projeto de integração mundial, fundamentado na fraternidade e justiça entre homens e mulheres dos mais variados povos, e não na busca desenfreada e cega pelo lucro de alguns em detrimento de todos os outros (os que preferem este último caminho, bom, estes têm agora muito o que temer com o novo papa).
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