22/04/2018
Lembranças de outro país
Da Carta Capital — publicado 18/04/2018 00h10, última modificação 17/04/2018 14h37
Com Lula, o Brasil andava de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem subserviência
Para surpresa geral, Lula e Bush estabeleceram relação cordial
Hoje quero fazer a minha pequena homenagem ao ex-presidente Lula. Muitos já se manifestaram sobre ele, nos últimos dias, em textos e depoimentos emocionados e emocionantes. O que poderia eu acrescentar a tudo que foi dito? Talvez relatar brevemente episódios que testemunhei e que revelam algumas das muitas qualidades de Lula.
Um desses episódios ocorreu em 2009, quando Lula resolveu emprestar dinheiro ao FMI, algo sem precedentes para um país como o nosso. Na época, eu era diretor-executivo pelo Brasil e outros países no fundo. Desde 2006, o Brasil acumulava reservas internacionais em ritmo acelerado e estava em posição forte.
Graças a isso, o País conseguiu atravessar com relativa tranquilidade a aguda crise que irrompeu em 2008 nos sistemas financeiros dos EUA e da Europa. Os países desenvolvidos, apavorados com a instabilidade financeira, queriam reforçar rapidamente o poder de fogo do FMI, criando substanciais linhas de crédito para a instituição. Pediram aos países emergentes mais fortes, inclusive o Brasil, que ajudassem na mobilização de recursos.
O problema é que aportar recursos dessa forma não daria poder de voto adicional ao Brasil no FMI. A reforma da instituição caminhava devagar. Havia sido aprovada a reforma de quotas e governança de 2008, que melhorara um pouco a posição relativa do Brasil e de outros países em desenvolvimento em termos de poder de voto. Mas a segunda etapa da reforma, que prometia avanços mais expressivos, estava ainda em negociação.
Manifestei ao governo brasileiro a minha avaliação de que seria melhor obter avanços em termos de reforma da governança do FMI antes de fazer qualquer empréstimo. O presidente Lula não aceitou as minhas ponderações e autorizou a abertura de uma linha de crédito de 10 bilhões de dólares ao fundo.
Não demorou muito para que ficasse claro para mim que ele estava certo e eu errado. O tino político do presidente valeu mais do que os cálculos do economista. O impacto da decisão foi enorme, tanto fora quanto especialmente dentro do País. O Brasil, devedor contumaz, e às vezes relapso, estava agora na condição de credor da mais importante instituição financeira multilateral. Foi um verdadeiro tiro de canhão no nosso proverbial complexo de vira-lata.
Além disso, a operação se revestia de características especiais. O FMI é um risco de crédito sólido, a remuneração não era muito inferior à rentabilidade média das nossas reservas internacionais e qualquer desembolso feito ao abrigo da linha de crédito tinha liquidez total assegurada pelo FMI e poderia, portanto, continuar a ser contabilizado como parte das reservas brasileiras. Mudava a composição, não o nível das reservas.
Esse episódio com o FMI insere-se em um movimento mais amplo de fortalecimento da posição internacional do Brasil, iniciado por Lula no seu primeiro mandato. Desde o início, ele revelou um talento especial para a articulação internacional. Em poucos anos, ele se tornou conhecido e respeitado no mundo inteiro por governos das mais variadas tendências.
Para a surpresa geral, estabeleceu por exemplo uma relação cordial com o presidente dos EUA, George W. Bush. Isso permitiu que Lula desempenhasse um papel-chave na transformação do G-20 – que inclui os principais países emergentes – no principal foro para cooperação econômica internacional em substituição ao G-7, composto exclusivamente pelos principais países desenvolvidos. Desde a primeira reunião de líderes do G-20, em Washington, no fim de 2008, Lula foi uma presença marcante, verdadeiro orgulho para os brasileiros que, como eu, acompanhavam de perto a sua atuação.
Quando me lembro dessa época, leitor, fico com a sensação de estar tratando de outro país, não deste em que hoje vivemos. Com Lula, o Brasil andava sempre de cabeça erguida. Sem arrogância, sem bravatas, mas sem a subserviência que caracteriza o comportamento de grande parte da elite brasileira.
Outro traço notável de Lula: o poder nunca lhe subiu à cabeça e nunca o afastou das suas raízes. Passei os últimos dez anos no exterior, primeiro em Washington e depois em Xangai, mas sempre que vinha ao Brasil procurava fazer uma visita a ele. Numa dessas visitas, aconteceu algo curioso.
Ao final do nosso encontro, ele me perguntou se eu não gostaria de participar da próxima reunião na sua agenda, que era com as lideranças de catadores de lixo. Aceitei e acabei presenciando um diálogo muito interessante. Vieram lideranças do Brasil inteiro, homens e mulheres, pessoas articuladas e inteligentes, representantes de um movimento social organizado. Lula conhecia todo mundo e mostrou impressionante domínio dos detalhes do trabalho dos catadores, da história do movimento e das suas reivindicações.
O que mais me ficou na lembrança foi, porém, a natureza da relação entre Lula e as lideranças de um movimento popular. A relação era de respeito, mas não de veneração e muito menos adulação. As lideranças questionavam, sem constrangimento, algumas das afirmações de Lula, que aceitava as contestações com toda naturalidade. Era o diálogo franco e substantivo de um líder político natural, autenticamente democrático, com integrantes da sua base social.
Saí dali energizado, confiante de que o Brasil estava entrando em nova etapa da sua história.
Paulo Nogueira Batista Jr. Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países.
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