24/04/2018
Resistência cresce e anima Lula Livre
Do Brasil 247 - 24 de Abril de 2018
por Paulo Moreira Leite
A luta da humanidade contra as ditaduras do século XX ajudou a construir uma cultura de
resistência com obras memoráveis no teatro, na pintura, no cinema, que se tornaram parte obrigatória de nossa formação. Preso por oito anos num campo de concentração nazista, o pastor luterano Martin Niemoller (1892-1984) deixou linhas memoráveis pela simplicidade e pelo vigor.
São aqueles versos que dizem:"Primeiro, os nazistas vieram buscar os comunistas mas, como eu não era comunista, me calei. Depois, vieram buscar os judeus mas, como eu não era judeu, não protestei". E assim por diante, até a conclusão: "quando vieram me buscar...Já não restava ninguém para protestar".
Esta visão de que homens e mulheres têm destinos entrelaçados pela vida em sociedade, na qual estão condenados a se apoiar nas horas difíceis porque ninguém está a inteiramente a salvo dos tumultos e ditaduras de nossa época, ganhou uma belíssima versão do brasileiro Eduardo Alves da Costa, que seria repetidos nos protestos contra o golpe de 64. Vale a pena citar, por sua beleza refinada: "Na primeira noite eles se aproximam de nosso jardim e roubam uma flor. Não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão e não dizemos nada".
Um pouco mais adiante, o poeta conclui: "Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada".
É certo que no Brasil de 2018 vivemos numa das curvas da história no qual estes versos voltam a fazer parte das conversas e emoções de todas as horas, já que se vive uma situação de incertezas e riscos na qual o silêncio e a omissão podem cobrar um alto preço. O centro da questão envolve a necessária liberdade de Lula, uma missão que não pede atos heróicos mas uma noção básica de justiça. Ali se encontra um limite que separa decência e indignidade, o silencio conformado e a necessidade de luta, a partir da compreensão de que, um dia, "conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta, e já não poderemos dizer nada".
Essa visão está presente no Comitê Lula Livre montado pela Comissão de Fábrica da Ford, no ABC, uma das matrizes do movimento operário do país, nascida há 40 anos. Também apareceu no sorriso da militante da periferia de Rio Branco que venceu o Big Brother Brasil. No "Bom dia, Lula!" de todos os dias no acampamento de Curitiba, nas milhares de cartas que lhe são enviadas por brasileiros e brasileiras agradecidos e que serão mais, muito mais. A necessidade de libertar Lula também alimenta os preparativos do 1o de Maio e as dezenas, possivelmente centenas, de atos de protesto e manifestações que tem ocorrido pelo país afora. Como um ato de casa cheia no Sindicato dos Bancários, na manhã de sábado, 21, quando a voz grave de Cícero do Crato, militante, cantor e violeiro dos bons, produzia esguichos nos olhos de uma platéia comovida em ponto máximo durante "Assum Preto", em particular quando chegava nos versos "talvez por ignorança, ou mardade das pió, furaram o óio do Assum Preto, prá ele assim, ai, cantá mió".
Não há dúvida de que o país está assistindo ao nascimento de uma mobilização decisiva, pois envolve a liberdade de um homem, quando todos sabem -- percebeu Fernando Henrique? - que está em curso um processo que não vai parar nos comunistas, nem nos judeus de que falava o poema.
Luiz Inácio Lula da Silva tem este lugar central essa porque sua biografia única se confunde com o melhor do nosso passado e constitui a melhor esperança disponível de futuro. Se houver projeto melhor, não se apresentou, segue desconhecido da grande maioria.
Trancafiado numa solitária em Curitiba, quando "tudo em volta é só beleza, sol de abril e a mata em flor", há quatro décadas ele enfrentou, também engaiolado, uma situação semelhante, o que sublinha a gravidade da situação de hoje.
Em 1980, quando a ditadura fechou o Sindicato dos Metalúrgicos, prendendo Lula e as principais lideranças do ABC, a parcela democrática do país se mobilizou em sua defesa. Das universidades, escritórios e bairros de classe média, saíram recursos para um fundo de greve destinado a manter a luta dos trabalhadores, além de alimentos para matar a fome das famílias. Numa mobilização social gigantesca, em minha memória, um episódio individual se destacou. O escritor e jornalista Renato Pompeu (1941-2014) homenageou os operários enviando-lhes um salmão inteiro, de cerca de cinco quilos, dizendo que seria indigno oferecer um iguaria menor àqueles homens e mulheres que tanto haviam feito pelo país. Além da gastronomia, aquele gesto simbolizava um fenômeno mais geral. Num país de exclusões, preconceitos e distâncias históricas, era um reconhecimento e aproximação entre uma parcela da classe média e os trabalhadores.
Trinta e sete anos depois, o Lula Livre ocorre num processo de resgate e reconstrução. A reafirmação do Partido dos Trabalhadores como o mais popular partido político do país é parte do processo mas não é só isso. Apesar das desconfianças e desencantos que persistem, os horrores promovidos após o golpe de Temer-Meirelles colocaram a necessidade de uma reação urgente, o que explica os índices de aprovação de Lula. O Brasil está querendo voltar a Lula e por isso quer que ele esteja livre -- o mais cedo possível.
A experiência ensina que nunca é tarde demais para reconhecer fatos relevantes da vida e da história. O mesmo Martin Niemoller que teve tanta clareza para traçar as linhas básicas sobre a necessidade de engajamento contra ameaças a liberdade nem sempre teve a mesma visão das coisas.
Como tantos alemães de sua época, Niemoller chegou a ter atitudes simpáticas ao nazismo nos primeiros anos de Adolf Hitler e só com o tempo, assumiu uma postura de crítica e denúncia. Orador de prestígio numa época em que as pregações religiosas tinham influência política imensa, logo tornou-se alvo de perseguição e, em 1937, chegou a ser preso e internado num campo de concentração, de onde só saiu no fim da Guerra. Hitler lhe devota um ódio particular e usava de seus poderes excepcionais para lhe dar um tratamento excepcional. Quando a sentença dada pela Justiça expirou, Niemoller permaneceu encarcerado como "prisioneiro pessoal" de Hitler.
O núcleo de sua obra, sintetizado na frase " primeiro, os nazistas vieram buscar os comunistas mas, como eu não era comunista, me calei," não é uma observação distante. É um pensamento que tem a gravidade da experiencia vivida.
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Paulo Moreira Leite é colunista do 247, ocupou postos executivos na VEJA e na Época, foi correspondente na França e nos EUA.
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