Balzac insistia em que se a imprensa não existisse para bem da sociedade, não deveria ter sido inventada. Na época, o jornalismo tinha pouco a ver com informação. Supunha-se que os jornais devessem servir menos como noticiários, e mais como espaços de opinião. Se alguém encontrar algo de parecido com presente, talvez não seja só uma volta ao passado.
Enio Squeff*
De fato, para os brasileiros que tiveram uma experiência democrática antes dos tempos obscurantistas da Ditadura, deve soar como uma advertência a mudança que houve não só com a nossa imprensa. Até para além da segunda metade do século XX, superados os tempos de Balzac, portanto, os americanos principalmente (sempre eles) descobriram que a notícia custava dinheiro, um bom dinheiro. O jornal que literalmente "furasse" os concorrentes, adiantando-se ao que ninguém tinha dado, era premiado com a compra quase compulsória da sua tiragem inteira por parte dos leitores. Os negócios se faziam, muitas vezes, na contramão dos interesses dos governos e dos grandes conglomerados empresariais. Ganhava a concorrência quem se mostrasse atento às novidades, mesmo que sob a ameaça de perder um ou outro anunciante.
Dizer que, hoje em dia, o silêncio é gritantemente mais lucrativo, parece rebarbativo - mas não deveria ensejar qualquer surpresa. Chega a ser patético: a revista que omite o nome do banqueiro bandido, parece ignorar que o texto do relatório que o incrimina é público. E que as pernas curtas da mentira tropeçam já no dia seguinte, quando a coisa vem a baila trazida ou pela internet. Ou pelo concorrente que muitas vezes até nem gostaria de contar a história toda.
Renato Pompeu, jornalista veterano de larga experiência na imprensa graúda, tempos atrás, definia as coisas da seguinte maneira: na época em que as denúncias, como novidade, valiam mais que o silêncio, como corrupção, o repórter que adentrava a redação, ao ser inquirido pelo editor, normalmente era exaltado e ganhava a manchete de primeira página, se dissesse ; "tenho uma notícia que ninguém deu...". Conforme Pompeu, hoje as coisas se dão forma contrária. Ao repórter que disser ter uma notícia que ninguém deu, quase certamente receberá do editor a advertência de que "se ninguém deu", o fato não tem importância alguma.
Entre o "furo", ou seja, a notícia e o silêncio, vale até muito mais a "barriga", isto é, a mentira. Ou, como dizia Mário Quintana, de forma amena, vale mais a história que se esqueceu de acontecer.
A isso os jornais chamam de direito à "interpretação". Omitir eqüivale quase sempre a mentir - mas isso importa?
Como certas questões são irretorqüíveis, haja prêmio à dubiedade das respostas. Nas últimas semanas, tornou-se insuportável à grande imprensa admitir que, talvez, ("sabrá Dios", como dizia um bolero, no tempo dos boleros), a presidenta Dilma Rousseff seja também "competente", além não fazer uma política muito diferente da de seu antecessor. Para o primeiro caso, a questão se torna premente: se a presidenta fizer uma boa gestão, poderá ensejar o "pior dos mundos" - para eles, naturalmente - e então, poderá vir a ser reeleita. Para o segundo, porém, será a volta do "ogro" - leia-se "Sapo Barbudo". Como se sabe, Lula saiu da presidência com mais de oitenta por cento de popularidade. Fica a questão: precisará sair de casa para ser reeleito uma segunda vez?
Na dúvida, a recorrência a tal ambigüidade é sempre uma boa idéia. Os editores da "Folha", por exemplo, devem ter morrido de rir da manchete - das poucas - que a presidenta mereceu do jornal em sua ida à China. Lá, à parte os bilhões de dólares prometidos, ela teria feito o inevitável, ou seja, como disse o jornalão: "Dilma vende direitos humanos na China". Para o incauto leitor, meia palavra basta: a presidenta conseguiu sim o que queria - mas "vendeu" os direitos humanos no Brasil. "Espera aí" - dirá o autor do título da manchete "não é nada disso: o que a Folha quis dizer é que a presidenta "vendeu" não no sentido em que se pode entender a manchete - mas que agiu como uma publicitária: foi à China e lá expôs o fato positivo de que os direitos humanos são respeitados no Brasil."
Digamos que o verbo "vender" não tinha um sentido que tem: era uma referência ao valor dos "direitos humanos". Já que tudo é negócio, os chineses teriam tido uma informação positiva sobre o estado democrático-"comprável" - do País. Tudo seriam meias verdades. E quanto mais ambígua a notícia, tanto mais os jornalões se livram da pecha de mentir, por omitir.
Quanto vale o silêncio? Para não difundir que o presidente Barack Obama apontou o Brasil como exemplo a ser seguido pelos Estados Unidos, como afirmou o mandatário americano em seu discurso de um mês atrás, talvez o silêncio renda uma boa publicidade dos governos de oposição. Ou, quem sabe (o que é mais razoável) renda o desconhecimento do grande público de que hoje as coisas podem estar melhores do que nunca estiveram. E que, afinal, o Brasil não mudou nada - continua aquela porcaria de antanho; ou como dizia o ex-presidente FHC - aludindo a Nelson Rodrigues -persistiríamos em nossos complexos de "vira-latas".
A questão tem muitas dimensões. O senador Aécio Neves foi flagrado com a carteira de habilitação de motorista já vencida. Um erro grave, mas não imperdoável: todos podemos nos esquecer de que não renovamos a carteira e de que isso implica pontos negativos na nossa condição de motorista. O grave, contudo, foi um senador da República negar-se a fazer o teste de bafômetro. Fica a suposição de que tivesse ingerido bebida alcoólica além da conta. Como tratar a coisa? Dando a notícia, com o direito ao político de se defender. A grande imprensa - uma vez que ele possa vir a ser o futuro candidato da oposição - e uma vez concedendo à notícia - que de resto chegou a ser (pouco) difundida pelas rádios e televisões, - tratou de que a coisa fosse esquecida o mais rapidamente possível.
Acontecesse, porém, com qualquer político da situação, ocupasse ou não um cargo relevante, as manchetes estariam berrando, haveria gritos de toda a ordem ainda hoje a provocar manchetes nos jornais.
Casos do tipo, são tão numerosos, tão flagrantes que nem vale a pena mencioná-los. O pior, contudo, parece ser o silêncio. Vale a velha máxima - se o jornalão não deu, ninguém sabe o que aconteceu. Mas será que ela vale mesmo?
Hoje muito menos. E se a tiragem dos jornais está diminuindo, não é apenas por conta do mercado, além dos jornais e jornalistas. Esses cumprem a sua moda, o corolário da "omertá": o silêncio será sempre inevitável tanto se for para evitar que os governos que eles acham não lhes convir - puder se locupletar e tirar alguma vantagem junto à opinião pública, quanto o contrário: se a discussão sobre as deficiências do transporte público implicar a cobrança da ineficiência de certos governos, "amigos da casa" - instaure-se o silêncio.
Parece ser assim com tudo. Baudelaire, quase ao mesmo tempo que Balzac, assacou uma conclusão interessante a propósito da imprensa da época: ela silenciava sobre o que não era sucesso. Para dizer o óbvio: ela só se permitia a discutir o que ela mesmo incensava. A imprensa só fala sobre o sucesso - constatava o desencantado poeta, como a dizer ser praticamente impossível descobrir ou insistir na novidade. Não naquela com endereço certo, urdida pelo mercado - como o das artes, por exemplo - essa seria sempre louvada. Não foi por acaso, em suma, que o próprio Baudelaire seria combatido e ignorado.
Passados mais de um século, a regra continua. E se a bom tempo a Escola de Frankfurt, sem muitos filosofismos constatou que a indústria cultural exerceria o seu poder, para impor as regras do sistema (leia-se mercado), não é por outra razão que temos uma cultura administrada. O silêncio sobre os artistas que não cumprem a cartilha da academia, faz-se sempre em consonância com os interesses da tal indústria. Continuamos como dantes no quartel de Abrantes. E, no caso, sob a égide de um paradoxo.
De tanto ser xingada por não acolher a vanguarda nas artes, a academia e a indústria uniram-se na consideração de que há uma "vanguarda confiável" - aquela que se define como a "contestadora"a favor" - e que se locupleta por aparecer perante a opinião pública como "enfant térrible", por "ter a coragem" de "arrostar" os governos e as instituições, principalmente se forem comandadas por gente de esquerda.
E que não corre risco algum ao xingar o poder, num país onde, por enquanto, vigem regras democráticas. Ou contra as gentes que os jornalões querem ver longe dos órgãos culturais: eles seriam incômodos por proporem que a vanguarda pode estar do lado do povo e não longe dele, como nas bienais, e salas de concertos. Ou longe dos shows da moda.
Alguém já desafiou que se encontrassem na grande mídia jornalistas de esquerda. Apostava que isso não existiria. Evidentemente, ninguém topou o desafio. Afora um ou outro cronista, perderia. Como perderia se apostasse em encontrar algum artista de esquerda, ou contra o sistema, a ser festejado como são os de direita. Há sim, os renegados que ainda ostentam a máscara de esquerda, coisas de antanho. Esses são sempre bem vindos, obrigado.
É curioso: nunca a era da informação foi tão pródiga em desinformação. Um exemplo relativamente desimportante, mas que mostra como funciona a coisa, deu-se há pouco em São Paulo. Durante a semana inteira anunciou-se a estréia mundial, pela Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado), de uma peça do compositor Willy Corrêa de Oliveira. É dos poucos artistas brasileiros que não compõem as panelas acadêmicas - embora tenha sido professor na USP. E é dos raros, igualmente, que não se considera apartado da política em qualquer sentido. Não se define como um saudoso do estalinismo, mas é um anti-capitalista com todo o alarde que isso possa comportar num mundo onde - máxime - não ser neoliberal, já o colocaria como "avis rara" entre seus iguais. Por motivos entre os quais ele alinha a certeza de que sua obra não seria bem executada pela orquestra, já que a sua partitura é de difícil execução, ele cobrou a promessa explícita, de que a orquestra a ensaiasse bastante. Para tanto, combinou com o maestro Isaac Karabtchevsky encontrá-lo, dias antes, do início dos ensaios, justamente para alertá-lo sobre alguns procedimentos a serem seguidos pela orquestra, e que não estão tão claros na partitura que escreveu.
Como o encontro não se realizou; e a orquestra faria apenas três ensaios para executar a peça, Willy Corrêa de Oliveira pediu que retirassem a obra do concerto. Para o mundo restrito da música clássica, em outros tempos, seria uma notícia quase bombástica: sugere-se (e é sempre verdade), que quando uma orquestra leva a sério o compromisso de tocar bem, que um compositor se sinta honrado de ter sua música executada por um conjunto tão bom quanto a Osesp. Mas a possibilidade de que mesmo uma orquestra da sua qualidade, muito dificilmente tocaria a contento a partitura, o compositor desistiu de contar "como glória", de ter a estréia mundial de sua peça pela Osesp.
O que se quer dizer é que, no frigir dos ovos, brigas de compositores com regentes, ou com orquestras, não são tão freqüentes para serem ignorados. No dia do concerto, porém, preferiu-se não se contar aos ouvintes e aos leitores, uma história, afinal, no mínimo, polêmica. No entanto, o jornalista indicado pela "Folha" para escrever sobre o concerto, simplesmente omitiu o fato. Preferiu fazer uma matéria toda em torno da nona sinfonia de Gustav Mahler - compositor consagrado de quem a orquestra já tocou quase toda a obra orquestral, ao longo de sua existência mais que cinqüentenária. E suma: ao lugar-comum repetido à exaustação nas escolas e nas redações, de que notícia é o homem morder o cachorro, preferiu-se o absolutamente convencional de anunciar, pela undécima vez, que a orquestra iria tocar uma obra conhecida de um compositor consagrado, com descrição até bem feita sobre as observações do maestro nos ensaios. Mas nada sobre a proibição da orquestra de tocar a peça do Willy.
O que fica do episódio, enfim, é que, para os jornalões, conforme a conveniência, a notícia, a grande notícia, é o cachorro morder o homem.
Por que omitir uma história em tudo interessante? Certamente porque a direção da orquestra não quis. E porque assim ninguém dá a noticia que ninguém deu. É essa a lógica.
Mas é essa a lógica para tudo mais. A fim de não informar que o presidente Osni Mubarack foi tirado do hotel em que se auto-exilou pela mesma multidão que o apeou do poder, um mês antes, a grande imprensa seguiu a cartilha imposta desde fora, do monopólio das agências de notícias, de que já não há mais nada no mundo árabe, fora da Líbia e da Síria, que possa interessar. Para os leitores ocidentais, em suma, faz de conta que o movimento das massas egípcias já não existe. Que o mundo árabe voltou a estaca zero. Que as forças armadas é que mandam e fazem, de novo, no Egito, como a sra. Hilary Clinton gostaria que acontecesse, já que não pode evitar a queda de Osny Mubarack.
Parecerá relevante constatar que de Seca a Meca é assim, hoje, não só no Brasil? Deixemos aos leitores meditarem sobre as considerações do velho Balzac.
*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
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