19/09/2011
A Era Chávez
Da Carta Capital - 19 de setembro de 2011 às 13:16h
O chavismo e a polarização política continuariam na ausência do líder bolivariano? Foto: Bertrand Parres/AFP
A Venezuela antes e depois do surgimento da figura política e da liderança de seu atual presidente
*Emir SaderDepois de um longo perío-do de relativa estabilidade política, com a alternância entre Ação Democrática (partido de orientação social-democrática) e Coppei (de orientação democrata-cristã), a Venezuela entrou em uma fase de turbulência política em 1989, a partir do retorno de Carlos Andrés Pérez à Presidência. De forma similar a outros governantes latino-americanos naquele momento (Carlos Menem, por exemplo), Pérez prometeu um choque produtivo para tentar reanimar a economia venezuelana, mas imediatamente aplicou um duro pacote recessivo, motivador de mobilizações populares. Houve forte repressão e várias centenas de mortes (até hoje não se apurou o número certo), no movimento que ocorreu em Caracas e foi chamado de “caracaço”.
O governo de Pérez sobreviveu com feridas das quais nunca se recuperaria. Um levantamento militar contra ele começou a projetar a figura de Hugo Chávez. Derrotado militarmente, o movimento foi uma vitória política, porque revelou nas Forças Armadas da Venezuela (FFAA) uma liderança contra o projeto neoliberalista de Pérez, derrubado por acusações de corrupção que culminaram em um impeachment e em sua prisão.
O projeto neoliberal de Pérez foi interrompido assim – de forma similar ao de Fernando Collor, no Brasil – e foi seguido pelo retorno de outro ex-presidente, Rafael Caldera, do Coppei, partido opositor. Pressionado pela rejeição do governo de Pérez, Caldera relutou em seguir a aplicação do modelo neoliberal, embora não rompesse com ele. Sob a influência da trajetória de Fernando Henrique Cardoso, Teodoro Petkoff, um ex-esquerdista, que tinha chegado a participar da luta guerrilheira dos anos 60, foi nomeado ministro da Economia. Buscou retomar, ainda que com matizes, o programa neoliberal, mas as condições políticas já não existiam para isso.
O governo de Caldera também fracassou e assim se fechava um ciclo da história política venezuelana, de predominância absoluta dos dois partidos tradicionais, desgastados, a ponto que os candidatos favoritos para as eleições presidenciais de 1998 eram outsiders da política tradicional: uma ex-miss universo, Irene Sáez (ex-prefeita de um bairro chique de Caracas e que prometia levar o estilo de vida daquela região a toda a Venezuela) e o líder militar Hugo Chávez, anistiado da prisão, opositor do regime dos dois partidos tradicionais e agitador dos ideais de Simón Bolívar.
Fim do bipartidarismo
A Venezuela é um dos poucos países petroleiros do mundo, isto é, que move sua economia praticamente de forma exclusiva pelos recursos da exportação do petróleo. Essa imensa riqueza nem se tornou sinônimo de industrialização nem diminuiu a brutal diferença de concentração de renda da sua população. A apropriação do Estado ou suas cercanias era suficiente para compartilhar os dividendos da exportação petrolífera com a empresa estatal do petróleo, a Petróleos da Venezuela (PDVSA-), transformada no grande butim que abastecia as grandes fortunas de uma burguesia com mentalidade de Miami.
Foram consumidos recursos públicos em quantidades gigantescas, apropriadas privadamente, sem que o país- tivesse retornos. O refluxo dos preços do petróleo coincidiu com a crise da dívida e o longo período recessivo pelo qual a América Latina passou.
Esse foi o pano de fundo da crise final do sistema bipartidário venezuelano, que desembocou nas eleições presidenciais de 1998, na qual nenhum dos candidatos dos partidos tradicionais tinha chance de se eleger. Chávez, naquele momento, contava com um grande caudal de votos populares e da classe média. Foi o que lhe garantiu a vitória.
Mudanças chavistas
Seu governo quebrava um amplo consenso de governos neoliberais, que ocupavam praticamente todo o continente, da direta à esquerda, do México ao Uruguai, do Brasil à Venezuela, passando pela Argentina e pelo Peru. Chávez foi o primeiro presidente eleito na contramão dessa tendência, eleição que seria seguida pelas de Lula, Néstor Kirchner (Argentina), Tabaré Vásquez (Uruguai), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador), Fernando Lugo (Paraguai), Mauricio Funes (El Salvador) e, mais recentemente, Ollanta -Humala (Peru). Sua eleição, em vez de um caso isolado, prenunciava o novo- –período vivido pela América Latina.
Chávez assumiu duas características diferenciadoras dos seus antecessores: a prioridade dos processos de integração regional e de intercâmbio Sul-Sul, em vez dos tratados de livre-comércio com os Estados Unidos, e das políticas sociais, e não a dos ajustes fiscais.
O fator que lhe deu maior legitimidade e apoio popular foram suas políticas sociais. Foram as chamadas “missões”, organizadas com o apoio de Cuba, que passaram a dar assistência médica direta nas comunidades mais carentes do país e uma campanha que rapidamente terminou com o analfabetismo na Venezuela, baseado no método cubano “Sim, eu posso”. O governo combateu assim a grande dualidade no país entre as elites e a massa da população, vivendo em uma pobreza injustificável para um país exportador de petróleo.
Para realizar tais mudanças, o governo enfrentou grande resistência da direção da PDVSA, que havia praticamente privatizado a empresa. Técnicos e executivos decretaram greve e deixaram o país sem petróleo para o consumo interno. Em resposta, o governo chavista despediu mais de 16 mil empregados e criou um verdadeiro processo de reestatização da empresa, apoderando-se da principal fonte de recursos venezuelana.
Reagindo às medidas, a oposição – centrada no monopólio privado da mídia – organizou abertamente um golpe militar, colocado em prática em abril de 2002. Chávez chegou a ser sequestrado e os próceres da direita (donos das mídias, hierarcas da Igreja Católica, partidos da oposição) ocuparam o palácio presidencial. Um cenário latino-americano de golpe militar, só que dessa vez organizado por órgãos privados da mídia.
Quando os setores populares souberam do golpe, dirigiram-se ao Palácio, ocuparam–no e forçaram o retorno do presidente ao poder. O estilo popular de Chávez e a efetividade de suas políticas sociais revelaram-se instrumentos poderosos para- recompor seu esquema de poder.
Pós-golpe de 2002
Depois de um processo ascendente de conquista de apoio popular, legitimado pela tentativa de golpe da oposição, o governo chavista passou a enfrentar dificuldades. Entre elas: o prolongamento de formas de corrupção, típicas de um país que vive da renda “fácil” da exportação petrolífera, a falta de eficácia na gestão das políticas públicas, em particular aquelas das áreas sociais essenciais para a consolidação do apoio popular ao governo, e a continuidade e intensificação da violência cotidiana. Além disso, problemas de gestão econômica causaram apagões de energia e fizeram com que a Venezuela levasse dois anos a mais que todos os países da região para superar os efeitos da crise internacional de 2008.
No seu conjunto, esses fatores geraram desgastes, que se refletiram na derrota de Chávez no plebiscito sobre o direito à continuidade da apresentação do seu nome à eleição para novo mandato de presidente da República – ele está há 12 anos no poder.
Diante do câncer de Chávez, levantam-se dúvidas não apenas sobre seu real estado de saúde, mas também sobre a possibilidade de sustentabilidade do seu projeto, já que sua liderança é determinante na mobilização popular e nas decisões do governo. De forma quase tão decisiva, no plano latino-americano, o papel de Hugo Chávez mobilizou uma vertente mais radical de governos progressistas sob o signo do bolivarianismo (os de Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador) e formou uma área de colaboração mais estreita de governos – a Aliança Bolivariana para as Américas (Alba). Os problemas internos da Venezuela representaram também graus de desgaste na imagem de sua liderança, com seus efeitos sobre o polo da Alba.
Emir Sader
*Emir Sader é sociólogo e cientista, mestre em Filosofia Política e doutor em Ciências Políticas pela USP - Universidade de São Paulo
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