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20/11/2013
Da relação direta entre ter de limpar seu banheiro você mesmo e poder abrir sem medo um Mac Book no ônibus
Excelente texto extraído do blog de Daniel Duclos, brasileiro que atualmente mora na Holanda. De uma lucidez impressionante.
A sociedade holandesa tem dois pilares
muito claros: liberdade de expressão e igualdade. Claro, quando a teoria
entra em prática, vários problemas acontecem, e há censura, e há
desigualdade, em alguma medida, mas esses ideais servem como norte na
bússola social holandesa.
Um porteiro aqui na Holanda não se acha
inferior a um gerente. Um instalador de cortinas tem tanto valor quanto
um professor doutor. Todos trabalham, levam suas vidas, e uma profissão é
tão digna quanto outra. Fora do expediente, nada impede de sentarem-se
todos no mesmo bar e tomarem suas Heinekens juntos. Ninguém olha pra
baixo e ninguém olha por cima. A profissão não define o valor da pessoa –
trabalho honesto e duro é trabalho honesto e duro, seja cavando fossas
na rua, seja digitando numa planilha em um escritório com ar
condicionado. Um precisa do outro e todos dependem de todos. Claro que
profissões mais especializadas pagam mais. A questão não é essa. A
questão é “você ganhar mais porque tem uma profissão especializada não
te torna melhor que ninguém”.
Profissões especializadas pagam mais,
mas não muito mais. Igualdade social significa menor distância social:
todos se encontram no meio. Não há muito baixo, mas também não há muito
alto. Um lixeiro não ganha muito menos do que um analista de sistemas. O
salário mínimo é de 1300 euros/mês. Um bom salário de profissão
especializada, é uns 3500, 4000 euros/mês. E ganhar mais do que alguém
não torna o alguém teu subalterno: o porteiro não toma ordens de você só
porque você é gerente de RH. Aliás, ordens são muito mal vistas. Chegar
dando ordens abreviará seu comando. Todos ali estão em um time, do qual
você faz parte tanto quanto os outros (mesmo que seu trabalho dentro do
time seja de tomar decisões).
Esses conceitos são basicamente inversos
aos conceitos da sociedade brasileira, fundada na profunda
desigualdade. Entre brasileiros que aqui vêm para trabalhar e morar é
comum – há exceções - estranharem serem olhados no nível dos olhos por
todos – chefe não te olha de cima, o garçom não te olha de baixo. Quando
dão ordens ou ignoram socialmente quem tem profissão menos
especializadas do que a sua, ficam confusos ao encontrar de volta
hostilidade em vez de subserviência. Ficam ainda mais confusos quando o
chefe não dá ordens – o que fazer, agora?
Os salários pagos para profissão
especializada no Brasil conseguem tranquilamente contratar ao menos uma
faxineira diarista, quando não uma empregada full time. Os salários
pagos à mesma profissão aqui não são suficientes pra esse luxo, e é
preciso limpar o banheiro sem ajuda – e mesmo que pague (bem mais do que
pagaria no Brasil a) um ajudante, ele não ficará o dia todo a te seguir
limpando cada poerinha sua, servindo cafézinho. Eles vêm, dão uma
ajeitada e vão-se a cuidar de suas vidas fora do trabalho, tanto quanto
você. De repente, a ficha do que realmente significa igualdade cai: todos se encontram no meio,
e pra quem estava no Brasil na parte de cima, encontrar-se no meio quer
dizer descer de um pedestal que julgavam direito inquestionável (seja
porque “estudaram mais” ou “meu pai trabalhou duro e saiu do nada” ou
qualquer outra justificativa pra desigualdade).
Porém, a igualdade social holandesa tem
um outro efeito que é muito atraente pra quem vem da sociedade
profundamente desigual do Brasil: a relativa segurança. É inquestionável
que a sociedade holandesa é menos violenta do que a brasileira. Claro
que aqui há violência – pessoas são assassinadas, há roubos. Estou
fazendo uma comparação, e menos violenta não quer dizer “não violenta”.
O curioso é que aqueles brasileiros que
queixam-se amargamente de limpar o próprio banheiro, elogiam
incansavelmente a possibilidade de andar à noite sem medo pelas ruas,
sem enxergar a relação entre as duas coisas. Violência social não é
fruto de pobreza. Violência social é fruto de desigualdade social. A
sociedade holandesa é relativamente pacífica não porque é rica, não
porque é “primeiro mundo”, não porque os holandeses tenham alguma
superioridade moral, cultural ou genética sobre os brasileiros, mas
porque a sociedade deles tem pouca desigualdade. Há uma relação direta
entre a classe média holandesa limpar seu próprio banheiro e poder abrir
um Mac Book de 1400 euros no ônibus sem medo.
Eu, pessoalmente, acho excelente os dois
efeitos. Primeiro porque acredito firmemente que a profissão de alguém
não têm qualquer relação com o valor pessoal. O fato de ter “estudado
mais”, ter doutorado, ou gerenciar uma equipe não te torna pessoalmente
melhor que ninguém, sinto muito. Não enxergo a superioridade moral de um
trabalho honesto sobre outro, não importa qual seja. Por trabalho
honesto não quero dizer “dentro da lei” - não considero honesto matar,
roubar, espalhar veneno, explorar ingenuidade alheia, espalhar ódio e
mentira, não me importa se seja legalizado ou não. O quanto você estudou
pode te dar direito a um salário maior – mas não te torna superior a
quem não tenha estudado (por opção, ou por falta dela). Quem seu paí é
ou foi não quer dizer nada sobre quem você é. E nada, meu amigo, nada te
dá o direito de ser cuzão. Um doutor que é arrogante e desonesto tem
menos valor do que qualquer garçom que trata direito as pessoas e não
trapaceia ninguém. Profissão não tem relação com valor pessoal.
Não gosto mais do que qualquer um de
limpar banheiro. Ninguém gosta – nem as faxineiras no Brasil,
obviamente. Também não gosto de ir ao médico fazer exames. Mas é parte
da vida, e um preço que pago pela saúde. Limpar o banheiro é um preço a
pagar pela saúde social. E um preço que acho bastante barato, na
verdade.
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