26/06/2014
DERROTA DE UMA VERGONHA
Vitória de Dirceu deve ser comemorada mas derrota de Genoíno mostra que não é preciso exagerar nos festejos
Paulo Moreira Leite
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Deve-se comorar a votação
de 9 a 1 que garantiu a José Dirceu o direito de trabalhar fora da
Papuda. Quem ainda não perdeu a capacidade de reconhecer o valor da
liberdade e a importância da Justiça, deve sentir-se um pouco mais feliz
desde ontem. Respire: há oxigênio no ar.
Não se deve exagerar nos
festejos, porém. Basta recordar a derrota de José Genoíno em seu pedido
de prisão domiciliar para compreender isso.
Ontem, o STF garantiu o
acesso de Dirceu – e de outros presos em situação semelhante – a uma
jurisprudência firmada há quinze anos pelo Judiciário brasileiro. Tem
garoto que poderá votar em outubro e era um bebê de colo e mamadeira
quando isso já funcionava.
Os ministros não definiram
uma nova garantia, nem esclareceram uma dúvida. Nada inventaram. Nada
descobriram. Corrigiram uma situação vergonhosa, que estava diante do
nariz do país inteiro desde 15 de novembro, quando um avião da Polícia
Federal levou os prisioneiros para Brasília.
Troféu da AP 470, Dirceu
ficou trancafiado na Papuda por sete meses quando tinha, desde o
primeiro dia, direito a regime semi-aberto, definido no momento em que
sua sentença transitou em julgado. Esse direito até foi confirmado em
fevereiro, mais tarde, quando o STF concluiu que não havia provas para
sustentar a condenação por quadrilha. E mesmo assim Dirceu só teve o
direito assegurado ontem. Deve começar a trabalhar na segunda-feira.
Terá tranquilidade quando
sair à rua? Irá enfrentar repórteres hostis, cidadãos insuflados, a
turma do VTNC? Vamos ver. A prisão injusta, o desrespeito aos direitos
de um cidadão não constiituem fatos isolados. Criam intolerâncias,
estimulam posturas inadequadas e mesmo violentas. A historiadora Lynn
Hunt explica que o espírito democrático e o respeito dos direitos
humanos são uma invenção belíssima do seculo XVIII. Mas só funciona em
sociedades onde homens e mulheres são ensinados a respeitar os direitos
do outro, a sentir empatia – que é diferente de concordância – por eles.
Ministro do
governo Lula, um dos principais arquitetos do Partido dos Trabalhadores,
adversário da ditadura desde os tempos de estudante da PUC paulista,
Dirceu passou sete meses na condição de perseguido político.
Como foi demonstrado por
Ricardo Lewandowski, e admitido de viva voz pelo presidente do tribunal,
Joaquim Barbosa, Dirceu fez parte da lista de réus que teve a pena
agravada artificialmente e assim foi trancafiado, como um pária, um
marginal, um criminoso que representa perigo para a sociedade.
Condenado por chefiar uma ex-quadrilha, foi o alvo principal das
grandes aberrações do julgamento. Também era a motivação maior para
denúncias que seriam risíveis, se não fossem trágicas, de contar com
privilégios e regalias na cadeia.
Ao longo da AP 470,
Dirceu foi o protagonista do teatro do mensalão sem que se pudesse
demonstrar – juridicamente – seu papel no enredo. A teoria do domínio do
fato entrou na denúncia para que pudesse ser condenado. O fatiamento da
denúncia serviu para que a acusação pudesse ligar Dirceu a cada um dos
réus. O desmembramento não podia ser aceito porque iria permitir a
Dirceu ser julgado de acordo com a Constituição: como um réu comum, sem
privilégios que, usados de forma perversa, permitiram que fosse
condenado sem recurso. (Quando não foi impedido de recorrer, ganhou).
Ao recusar o
direito de José Genoíno cumprir sua pena sob regime domiciliar, o STF
tomou uma decisão política. Poucos ministros, ao longo do processo,
deixaram de pronunciar palavras bonitas para homenagear Genoíno – o que
ajuda a lembrar que a Justiça não precisa de sentimentalismo, nem de
frases grandioloquentes, mas de firmeza em relação a princípios e
direitos.
Num processo de corrupção, o
sobrado onde Genoíno mora com a família, comprado a prestações na Caixa
Economica, é a contra-prova de uma existência dedicada à luta honesta
por suas convicções. A tentativa de criminalizar empréstimos tomados
pelo PT, que ele assinou na condição de presidente da legenda, ficou
desmoralizada quando a própria Polícia Federal provou que eram
empréstimos autênticos, que sairam do banco para pagar despesas do
partido.
Se foi absurdo condenar
Genoíno, em 2012, a maioria formada para negar seu pedido de prisão
domiciliar, ontem, não faz bem ao STF. Mostrou que, mesmo ausente do
plenário, a caminho da aposentadoria, Joaquim Barbosa e aquilo que
representa -- o apoio incondicional dos meios de comunicação -- tem
seu lugar no tribunal.
Os sucessivos laudos
assinados depois que Genoíno foi preso mostram que os médicos estão
divididos e, sem pretender apostar na avaliação de X, Y ou Z, a
prudência e o espírito de Justiça recomendam que, em dúvida, decide-se a
favor do réu. Juizes tomam partido num debate médico?
Confesso que é natural
ouvir juizes falarem de legislação e jurisprudência. Explicarem a
constituição, a lei ordinária. Mesmo assim, não é fácil.
O próprio barroquismo da linguagem da maioria dos atestados mostra o tamanho da dúvida dos próprios doutores.
Os médicos da Câmara de
Deputados produziram dois laudos. Um resumido, ótimo para ser lido na
TV, desfavorável a Genoíno. Outro, completo, com ponderações que
favoreciam o regime domicilar. Até a primeira junta médica montada por
Joaquim Barbosa, para responder ao médico particular que examinou o
prisoneiro após sua chegada a Papuda, também fez diversas ressalvas.
Arte e ciencia
da vida de todos nós, a medicina não costuma ficar melhor quando é
atingida por pressões políticas – como recordam estudiosos do ciclo
militar, quando doutores eram convocados para assinar falsos atestados
de óbito e até para examinar as condições de um prisioneiro depois da
tortura.
Não. Estamos muito longe disso. O país vive outro tempo.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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