terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Contraponto 15.694 - "Duas ou três coisas sobre Cuba e o reatamento com os EUA

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23/12/2014

Duas ou três coisas sobre Cuba e o reatamento com os EUA

 

Mário Augusto Jakobskind*

Mário Augusto Jakobskind perfil dialogosOs presidentes Barack Obama e Raúl Castro fizeram um pronunciamento oficial do fato que já está gerando inúmeras análises pelo mundo a fora. 


Os dois agradeceram as gestões do Papa Francisco e do governo do Canadá.

Ao mesmo tempo em que isso acontecia, três dos cinco heróis cubanos presos sob a absurda acusação de espionagem nos EUA voltavam para a sua pátria e foram recebidos pelas autoridades e amigos.

 

Os três cubanos soltos

A Telesul divulgou a chegada festiva de Gerardo Hernández, Antonio Guerreiro e Ramon Labañino, este último condenado a duas prisões perpétuas e mais 10 anos. Ou seja, o cidadão cubano teria de cumprir uma prisão perpétua, morrer e depois voltar para cumprir outra do mesmo teor e mais uma vez reviver para cumprir o restante da pena. Cumpriu-se assim a profecia de Fidel Castro anunciada em 2001 de que “eles voltarão”.


Barack Obama e Raúl Castro
 Barack Obama e Raúl Castro

Ao mesmo tempo em que acontecia a libertação dos três, rumavam para os Estados Unidos o norte-americano Alan Gross, que viajou a Cuba, em 2009, a serviço da USAID (Agência Internacional dos EUA), especialista na prática de atos lesivos à soberania de países, e foi condenado a 15 anos de prisão, junto com um cubano, cujo nome não foi revelado, preso há 20 anos por serviços de espionagem prestados a Washington.

Os telespectadores brasileiros só tiveram acesso a imagens de Gross, mas pelo menos até o momento em que estava sendo elaborado este artigo, só foi apresentado um vídeo de cubanos manifestando o seu júbilo pela libertação dos três.

Mídia conservadora manipula

Como não poderia deixar de ser, o fato histórico teve a mais ampla repercussão na mídia nacional e internacional. O jornal O Globo, por exemplo, estampava em sua manchete principal o reatamento diplomático com o complemento de uma fala de Obama segundo a qual o “isolamento não funcionou”.

No texto da primeira página, mais uma vez o jornal da família Marinho, por assim dizer, se traiu ao firmar que “a base da negociação foi à libertação de dois americanos e três espiões cubanos”.

Para os editores do jornal mais vendido do Rio de Janeiro, os dois que foram soltos eram apenas “americanos”. Nem isso um deles era, porque além de Gross o outro solto foi um cubano que prestava serviços de informação aos norte-americanos.

Os demais órgãos de imprensa do Rio e São Paulo também não editaram nada diferente de O Globo, dando sempre a maior ênfase a Obama, mas, claro, não podendo excluir o lado cubano com Raúl Castro.

Parcialidade na mídia eletrônica

Na mídia eletrônica, especialmente no canal a cabo Globonews, foi convocado o colunista internacional que aproveitando o fato decidiu investir furiosamente contra o governo da Venezuela.

O parcial colunista argumentou, entre outras coisas, que a aceitação de Cuba pelo reatamento deveu-se também aos acontecimentos na Venezuela, como se a recente crise derivada da baixa do preço do barril de petróleo, estimulada pela Arábia Saudita, tivesse influenciado a decisão de Havana.

Se as conversações duraram cerca de um ano e meio e a decisão final das partes já tinha sido tomada há pelo menos um mês, por que creditar o que ocorreu ao fato recente em questão?

Esse é um dos aspectos da manipulação da informação, da mesma forma que a informação errada de primeira página sobre “a libertação de dois americanos e três espiões cubanos”.

As repercussões do fato histórico que para muitos analistas representou o fim da Guerra Fria na América Latina continuarão pelas semanas e meses. E, claro, os analistas de sempre vão apresentar Cuba e Venezuela, agora, sobretudo este último país, como se fossem o “inferno na Terra”.

Entulho autoritário que persiste

O reatamento diplomático entre Cuba e Estados Unidos em si foi um passo adiante e uma demonstração de que mais quatro décadas de bloqueio contra a ilha caribenha, além de inócuo quanto aos objetivos estadunidenses de acabar com o socialismo cubano, representou um entulho autoritário.

Apesar da mídia de mercado e do Departamento de Estado norte-americano, o povo cubano resistiu heroicamente ao bloqueio, que resultou em perdas, contando por baixo, segundo fontes oficiais, superior a 89 bilhões de dólares.

O embargo em época de paz é considerado pela legislação internacional como um genocídio e já foi condenado mais de 20 vezes nas Nações Unidas. Na última votação nesse sentido foram favoráveis ao bloqueio econômico e financeiro contra Cuba o próprio Estados Unidos e Israel.

Agora, a revogação não depende do Executivo, mas do Legislativo, onde Obama está em maus lençóis. Mas já há quase um consenso popular nos Estados Unidos, segundo indicam as pesquisas, pelo fim do bloqueio.

Só trogloditas políticos condenam   

Na área política, a possível candidata pelo Partido Democrata à sucessão de Obama, a ex-Secretária de Estado, Hilary Clinton, já se manifestou agora contra o bloqueio e sugeriu ao atual Presidente para se empenhar nesse sentido. O mesmo posicionamento teve o ex-Presidente Jimmy Carter.

Só mesmo trogloditas políticos do Partido Republicano, entre os quais o Senador Marco Rubio, filho de exilados cubanos, e John McCain criticaram o reatamento de relações e garantiram que se empenharão a favor da manutenção da medida genocida em tempo de paz que representa o embargo norte-americano a Cuba, vale sempre repetir.

Lição do Porto de Mariel

O anúncio do reatamento também coloca uma questão que remete a debates aqui no Brasil durante a campanha eleitoral. O candidato Aécio Neves em várias ocasiões posicionou-se de forma veementemente contra a participação do Brasil na construção do Porto de Mariel.

Analistas desde já admitem que o referido porto ganhe ainda maior dimensão com uma possível retomada comercial cubano-norte-americana, que de alguma medida pode não depender do fim do embargo. Mariel é um porto estratégico e trará ainda maiores dividendos para o Brasil quando estiver funcionando a todo vapor, inclusive pelo fato de estar localizado a cerca de 100 quilômetros da Flórida.

Aécio Neves, um político sectário em suas posições não viu, e não vê nada disso, muito pelo contrário. Absorveu o ideário do senso comum e não reconhece o erro de avaliação.

Cabe então uma pergunta: o que tem a dizer Aécio Neves e seus seguidores políticos, que até agora não admitiram a derrota na eleição presidencial do segundo turno?

Marco histórico na América Latina

Mas, em suma, querendo ou não os republicanos e os seguidores de Aécio Neves, Cuba é um marco na América Latina. Na área médica, por exemplo, até mesmo o atual Secretário de Estado norte-americano, John Kerry teve de dar o braço a torcer ao elogiar a medicina cubana. Ele assim se pronunciou depois do anúncio segundo o qual médicos cubanos foram deslocados para países africanos para ajudar no combate ao ebola.

É claro que não é de hoje o internacionalismo humanitário dos cubanos. No Haiti, enquanto alguns países oferecem contingentes militares para as chamadas forças de paz da ONU, médicos cubanos, bem antes da tragédia do terremoto, estavam por lá atendendo o povo necessitado.

Internacionalismo humanitário

E esse tipo de procedimento aconteceu em várias partes do mundo, inclusive com ofertas de ajuda aos EUA, quando do furacão Katrina, que devastou New Orleans.

O Estado socialista cubano parte da premissa de que ajuda humanitária independe de regimes vigentes, pois o principal é o ser humano. Daí na ocasião terem oferecido os préstimos aos Estados Unidos, o que foi recusado pelo então Presidente George W. Bush.

Além disso, graças ao método cubano de alfabetização, também conhecido como Yo si Puedo (Eu posso sim), a Bolívia e a República Bolivariana da Venezuela erradicaram o analfabetismo, fato reconhecido oficialmente pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).

E isso tudo acontece, apesar do bloqueio genocida, sempre defendido pelos republicanos apegados ao passado e outros políticos do mesmo naipe.

Resta agora aguardar mais tempo para se ter uma ideia precisa do que o reatamento de relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos provocará na América Latina.

O fato de o Presidente Obama ter dado um passo corajoso não elimina a premissa segundo a qual o país que ele governa continua sendo imperialista e almeja que o continente latino-americano volte a ser “o pátio traseiro” ou o “quintal” dos EUA, como já disse recentemente o Secretário de Estado John Kerry.


* Mário Augusto Jakobskind é colaborador da Revista Diálogos do Sul
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