09/03/2015
Na nossa América, não existe coincidência, nem acaso na política.
'Criar uma atmosfera tensa favorecendo não apenas um sentimento de oposição, mas de ódio coletivo.' Isso faz parte de um manual golpista. Coincidência?Eric Nepomuceno
Carta Maior - 04/03/2015
Eric Nepomuceno
Além de ser um dos grandes
escritores argentinos da minha geração – basta lembrar de ‘Luna
Caliente’ ou ‘Santo Ofício da Memória’, que levou o mesmo prêmio Rómulo
Gallegos dado anteriormente a Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Ricardo
Piglia e García Márquez –, Mempo Giardinelli é um observador atento e
implacável do panorama de nossos países, e um farejador formidável na
hora de buscar pistas que ajudem a tentar entender o que acontece.
Graças a ele descobri, entre tantas outras coisas nesse mundo, a existência de um cidadão norte-americano chamado Gene Sharp, de folha corrida impressionante e, na hora do mal, capaz de uma eficácia mais impressionante ainda.
Há poucas semanas – na quarta-feira, 21 de janeiro – ele cumpriu 87 anos de uma longa vida dedicada a combater tudo que acha que é ou que parece ser comunismo. Ao contrário de outros doutrinadores de seu país, esse cidadão com sobrenome de televisão prega o combate ao comunismo e vizinhanças de uma forma suave, não-violenta. Muito mais eficiente, diz ele, que canhões, fardas e fuzis, é a batalha pacífica.
Sharp é filósofo e cientista político, mas acima de tudo um elaborador de teses adotadas com devoção pelos que se dizem dispostos a ‘democratizar’ o mundo. Esse critério do que é um Estado democrático, é verdade, costuma atropelar Constituições em vários países, desconsiderar resultados eleitorais e chamar de ditadura tudo que não condiz com o credo extremamente particular dos conservadores, em especial aqueles travestidos de liberais.
Logo em seu livro de estréia, em 1973 (ano da deposição de Allende no Chile e do golpe cívico-militar que fulminou a democracia no Uruguai, entre outras aparentes coincidências), Sharp expôs nada menos que 198 caminhos, ou seja, tipos de ações a serem postas em prática, a partir de três eixos: o protesto aparentemente pacífico, a não aceitação da situação vigente e, enfim, mas somente em casos extremos, a intervenção armada. Seus seguidores dizem que é preciso fazer de tudo para não chegar a esse último passo. Às vezes não dá certo, como na Argentina de 1976, mas esses são casos inevitáveis.
Bem: não é preciso padecer de síndromes persecutórias e delírios de conspiração para ver como o método funcionou no passado e continua funcionando bem, e, aliás, está sendo perfeitamente aplicado, agora mesmo, em pelo menos dois países sul-americanos, a Argentina e o Brasil.
Primeiro, é preciso não reconhecer ou ao menos questionar resultados de eleições presidenciais. Depois, desatar um sem-fim de ações que ponham em dúvida a validade institucional vigente.
Passo seguinte: criar uma atmosfera tensa, polarizada, acusando o adversário de excesso de agressividade, e favorecer um sentimento já não apenas de oposição, mas de uma espécie de ódio coletivo dirigido ao objeto da ação, ou seja, o governo, o partido governante e seus líderes.
Esse ódio deve ser coberto por um véu de oposição pacífica mas defensiva, ou seja, os governos a serem abreviados (ninguém fala em golpe: afinal, trata-se de um método não-violento) devem ser destituídos em defesa da democracia, da moral e da ordem pública. Para isso, é preciso fustigá-los de maneira incessante, despertando uma aversão radical principalmente nas classes médias. Devem ser sumariamente chamados de ditadura, até que essa idéia se aloje nos cidadãos.
São de grande valia os discursos públicos, os abaixo-assinados, a ação de grupos de pressão parlamentar capazes de pôr Congressos em situação de descontrole. São prioritárias as convocatórias para marchas de protesto, além de se produzir denúncias ininterruptas, de preferência relacionadas a atos de corrupção, sobre funcionários. Mas é preciso agir sempre de maneira respeitosa embora enfática, levando na mão a bandeira da defesa do Estado de direito, que tem forte efeito sobre a opinião pública embora nem todos saibam exatamente de que se trata.
É essencial utilizar, sempre na maior escala possível, os meios de comunicação, com ênfase nas redes de televisão, jornais, revistas e emissoras de rádio. Esse grande escudo midiático tem papel protagônico, em especial no caso de fragilidade ou desconcerto dos partidos políticos tradicionais de oposição, e deve assumir a vanguarda do movimento.
Basta acompanhar o que acontece principalmente na Argentina e no Brasil hoje mesmo para perceber que na nossa América nada acontece por coincidência, e que nas nossas comarcas o acaso não existe na política.
Claro que cada uma dessas recomendações também serviria pelo avesso, ou seja, poderia se tornar instrumento de defesa de projetos nacionais progressistas e cujo objetivo seja a transformação estrutural de nossas sociedades, buscando desenvolvimento, justiça, diminuição das abissais distâncias e desequilíbrios sociais e econômicos de nossas comarcas. Mas, para isso, seria preciso contar com o tal sólido sistema de comunicação. E não resta um único ingênuo capaz de acreditar que isso seja possível sem que, diante dos grandes meios altamente especializados em manipular informações, seja construído um espaço consistente para vozes alternativas.
É evidente que todos os arautos em defesa da destituição dos presidentes que são alvos claros desse movimento jamais admitirão sequer ter ouvido falar de Gene Sharp, e muito menos de seguir sua cartilha.
Claro que ninguém admitirá jamais que, mesmo sem citar Sharp e seu método, fez outra coisa além de defender e exercer o mui patriótico desejo de defender a democracia, a Constituição, a moralidade.
Supor a existência de algo parecido à irradiação, em nossos países, de semelhante doutrina não passa de nostalgia delirante dos viúvos e viúvas dos tempos da Guerra Fria e da fantasia esquerdista e bizarrices utópicas similares.
Mempo Giardinelli, meu bom amigo, demonstrou seguidas vezes, em seus livros, grande capacidade de elaborar a memória e disparar sua imaginação. Mas, nesse caso, nem ele mesmo seria capaz de imaginar essa explicação para ajudar a entender ao menos uma parte do que vivemos aqui no Brasil e os argentinos vivem na Argentina.
Imaginoso de verdade é esse obscuro cidadão, do qual confesso jamais ter ouvido falar até agora, chamado Sharp. Gene Sharp.
Mas, mesmo ignorando sua existência, minha geração e as gerações anteriores sofreram, na pele e na alma, os efeitos de sua doutrina de ação não-violenta para derrubar governos legítimos e constitucionais.
Então, vale reiterar: na nossa América, há que se desconfiar sempre quando o cenário político der mostras de acasos e coincidências. Sempre.
Graças a ele descobri, entre tantas outras coisas nesse mundo, a existência de um cidadão norte-americano chamado Gene Sharp, de folha corrida impressionante e, na hora do mal, capaz de uma eficácia mais impressionante ainda.
Há poucas semanas – na quarta-feira, 21 de janeiro – ele cumpriu 87 anos de uma longa vida dedicada a combater tudo que acha que é ou que parece ser comunismo. Ao contrário de outros doutrinadores de seu país, esse cidadão com sobrenome de televisão prega o combate ao comunismo e vizinhanças de uma forma suave, não-violenta. Muito mais eficiente, diz ele, que canhões, fardas e fuzis, é a batalha pacífica.
Sharp é filósofo e cientista político, mas acima de tudo um elaborador de teses adotadas com devoção pelos que se dizem dispostos a ‘democratizar’ o mundo. Esse critério do que é um Estado democrático, é verdade, costuma atropelar Constituições em vários países, desconsiderar resultados eleitorais e chamar de ditadura tudo que não condiz com o credo extremamente particular dos conservadores, em especial aqueles travestidos de liberais.
Logo em seu livro de estréia, em 1973 (ano da deposição de Allende no Chile e do golpe cívico-militar que fulminou a democracia no Uruguai, entre outras aparentes coincidências), Sharp expôs nada menos que 198 caminhos, ou seja, tipos de ações a serem postas em prática, a partir de três eixos: o protesto aparentemente pacífico, a não aceitação da situação vigente e, enfim, mas somente em casos extremos, a intervenção armada. Seus seguidores dizem que é preciso fazer de tudo para não chegar a esse último passo. Às vezes não dá certo, como na Argentina de 1976, mas esses são casos inevitáveis.
Bem: não é preciso padecer de síndromes persecutórias e delírios de conspiração para ver como o método funcionou no passado e continua funcionando bem, e, aliás, está sendo perfeitamente aplicado, agora mesmo, em pelo menos dois países sul-americanos, a Argentina e o Brasil.
Primeiro, é preciso não reconhecer ou ao menos questionar resultados de eleições presidenciais. Depois, desatar um sem-fim de ações que ponham em dúvida a validade institucional vigente.
Passo seguinte: criar uma atmosfera tensa, polarizada, acusando o adversário de excesso de agressividade, e favorecer um sentimento já não apenas de oposição, mas de uma espécie de ódio coletivo dirigido ao objeto da ação, ou seja, o governo, o partido governante e seus líderes.
Esse ódio deve ser coberto por um véu de oposição pacífica mas defensiva, ou seja, os governos a serem abreviados (ninguém fala em golpe: afinal, trata-se de um método não-violento) devem ser destituídos em defesa da democracia, da moral e da ordem pública. Para isso, é preciso fustigá-los de maneira incessante, despertando uma aversão radical principalmente nas classes médias. Devem ser sumariamente chamados de ditadura, até que essa idéia se aloje nos cidadãos.
São de grande valia os discursos públicos, os abaixo-assinados, a ação de grupos de pressão parlamentar capazes de pôr Congressos em situação de descontrole. São prioritárias as convocatórias para marchas de protesto, além de se produzir denúncias ininterruptas, de preferência relacionadas a atos de corrupção, sobre funcionários. Mas é preciso agir sempre de maneira respeitosa embora enfática, levando na mão a bandeira da defesa do Estado de direito, que tem forte efeito sobre a opinião pública embora nem todos saibam exatamente de que se trata.
É essencial utilizar, sempre na maior escala possível, os meios de comunicação, com ênfase nas redes de televisão, jornais, revistas e emissoras de rádio. Esse grande escudo midiático tem papel protagônico, em especial no caso de fragilidade ou desconcerto dos partidos políticos tradicionais de oposição, e deve assumir a vanguarda do movimento.
Basta acompanhar o que acontece principalmente na Argentina e no Brasil hoje mesmo para perceber que na nossa América nada acontece por coincidência, e que nas nossas comarcas o acaso não existe na política.
Claro que cada uma dessas recomendações também serviria pelo avesso, ou seja, poderia se tornar instrumento de defesa de projetos nacionais progressistas e cujo objetivo seja a transformação estrutural de nossas sociedades, buscando desenvolvimento, justiça, diminuição das abissais distâncias e desequilíbrios sociais e econômicos de nossas comarcas. Mas, para isso, seria preciso contar com o tal sólido sistema de comunicação. E não resta um único ingênuo capaz de acreditar que isso seja possível sem que, diante dos grandes meios altamente especializados em manipular informações, seja construído um espaço consistente para vozes alternativas.
É evidente que todos os arautos em defesa da destituição dos presidentes que são alvos claros desse movimento jamais admitirão sequer ter ouvido falar de Gene Sharp, e muito menos de seguir sua cartilha.
Claro que ninguém admitirá jamais que, mesmo sem citar Sharp e seu método, fez outra coisa além de defender e exercer o mui patriótico desejo de defender a democracia, a Constituição, a moralidade.
Supor a existência de algo parecido à irradiação, em nossos países, de semelhante doutrina não passa de nostalgia delirante dos viúvos e viúvas dos tempos da Guerra Fria e da fantasia esquerdista e bizarrices utópicas similares.
Mempo Giardinelli, meu bom amigo, demonstrou seguidas vezes, em seus livros, grande capacidade de elaborar a memória e disparar sua imaginação. Mas, nesse caso, nem ele mesmo seria capaz de imaginar essa explicação para ajudar a entender ao menos uma parte do que vivemos aqui no Brasil e os argentinos vivem na Argentina.
Imaginoso de verdade é esse obscuro cidadão, do qual confesso jamais ter ouvido falar até agora, chamado Sharp. Gene Sharp.
Mas, mesmo ignorando sua existência, minha geração e as gerações anteriores sofreram, na pele e na alma, os efeitos de sua doutrina de ação não-violenta para derrubar governos legítimos e constitucionais.
Então, vale reiterar: na nossa América, há que se desconfiar sempre quando o cenário político der mostras de acasos e coincidências. Sempre.
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