13/08/2018
Mais que 'plano B', comitês de autodefesa civil
Na 5ª maior potência demográfica e eleitoral do planeta, a atividade produtiva hoje garante emprego e salário regular a apenas 32,8 milhões de pessoas
Da Carta maior - 03/08/2018 00:00
Por Saul Leblon
Se a eleição de outubro for apenas uma visita tutelada à urna como planeja o conservadorismo, seu efeito será o de uma retroescavadeira institucional a afundar o abismo econômico, político e humano no qual o Brasil se transformou desde o cerco golpista de 2015.
As consequências podem ser inferidas na assustadora dinâmica do desmanche social e produtivo em marcha na 5ª maior potência demográfica, eleitoral e territorial do planeta.
Com 210 milhões de habitantes, 147 milhões de eleitores, a atividade produtiva hoje no Brasil garante emprego formal e salário regular a apenas 32,8 milhões de pessoas.
Outros 65,6 milhões de homens e mulheres em idade produtiva vegetam à margem do mercado de trabalho; 40% dos ocupados vivem de bico; o desemprego oficial é de 13 milhões. Falta vacina. O nível de investimento não repõe a infraestrutura sucateada. Quatro bancos tiveram no 2º trimestre um lucro equivalente ao dos cinco maiores de Wall Street em igual período. O povo brasileiro está sendo destruído pela guerra das elites; não está apenas empobrecendo, está sendo destruído, biologicamente destruído.
Não há acomodação democrática possível em uma sociedade com um acerto de contas tão explosivo, se não for através de uma repactuação efetiva do desenvolvimento com a democracia social.
É tudo o que as elites corsárias querem impedir com a tutela sobre o voto popular em outubro.
Exigir que o PT indique um candidato alternativo a Lula de modo a legitimar a obra dos coveiros da nação é a mensagem diuturna do aparato midiático e de seus colunistas isentos.
O indefectível Merval Pereira, de O Globo, apresenta-se regularmente como um analista preocupado com a renovação da esquerda’, que ‘o Lula’ bloqueia. O historicamente maleável Elio Gaspari empresta linhas aos ‘ressentidos’, porque ‘o Lula’, sempre ele, coloca o interesse pessoal ‘à frente dos do partido’.
São manifestações comoventes. Uma gente desinteressada irradia grandeza em hora tão difícil da esquerda nacional.
A verdade, porém, é que para eleger um presidente dos mercados hoje, no Brasil, a condição sine qua non é calar a única voz capaz daquilo que a Globo gostaria de fazer sozinha, mas não consegue: falar e ser ouvida pelo povo brasileiro.
A mordaça encomendada ao juiz Sergio Moro talvez tenha sido apressadamente reconhecida como exitosa em silenciar o estorvo.
A história coleciona exemplos de como o encarceramento de grandes líderes populares nunca bastou para revogar sua condição de peça-chave no tabuleiro das disputas políticas.
Foi assim com Getúlio, Perón, Ho Chi Minh, Mao Tsé-Tung, Fidel, Mandela...
A aliança da mídia com a escória, o dinheiro e o judiciário acreditou por um momento que havia conseguido excluir Lula desse panteão.
Sombras ofuscam o brilho da façanha atribuída aos nanocenturiões de Curitiba.
As pesquisas indicam:
a) se a voz de Lula ecoar na campanha, a restauração neoliberal será derrotada pela 5ª vez sucessiva em 2018;
b) sufocada, a eleição –mostram os percentuais de nulos, indecisos etc-- carecerá de legitimidade para reordenar o país, cuja deriva avança em espirais de gravidade e incerteza cada vez mais traumáticas.
O simples fato de que esse horizonte impregne todo o cenário eleitoral, a 6 dias do início da campanha, corrobora a dimensão de uma liderança mais forte do que seus algozes, que fez do cárcere um palanque ensurdecedor.
Moro & Cia podem ter enfiado os pés pelas mãos.
A resistência de Lula apoia-se no legado de uma vida épica colada à sorte do povo brasileiro.
A esse lastro ele adicionou a recusa altaneira em negociar a mitigação de uma pena lavrada em ódio e ganância das elites contra o povo.
O conjunto compõe um esperanto de resistência à opressão.
Universalmente inteligível, popularmente assimilável, o enredo desafia o boicote da rede Globo para falar direto ao imaginário popular e ser inteligível à cumplicidade silenciosa dos humildes.
O drible da vaca de Lula deu transparência vergonhosa a uma nação dividida entre a minoria que se vale de golpes para escalpelar os pobres; e a vasta maioria que deduz o sentido desse banimento a partir do repiquete das velhas carências em sua vida.
O conjunto mantem nas mãos do ex-metalúrgico a régua e o compasso da disputa política nacional.
Um maratonismo judicial tosco, engatado ao exíguo tempo de uma campanha terceirizada ao arbítrio da Globo, está sendo providenciado na tentativa algo desesperada de segregar em tumba de chumbo o líder das pesquisas.
Longe de propiciar conforto aos corsários, o encarceramento do voto popular vai incendiar o ambiente político com jatos inflamáveis de ilegitimidade, rejeição, descrédito, revolta e incerteza.
Não se infira daí tardes amenas ao campo progressista.
Vive-se no Brasil uma guerra de classes. Uma batalha de Leningrado perversa, das elites contra os pobres, mira vinte anos de arrocho (‘teto’) com desdobramentos previsíveis contra seus filhos, os netos e os filhos que um dia eles terão.
A escalada da des-emacipação social saqueia conquistas recentes, arremete contra vigas civilizatórias obtidas desde meados do século passado, revoga a legislação trabalhista do ciclo Vargas, descarna direitos sociais consagrados na repactuação constituinte que sepultou a ditadura de 64.
Um esforço inédito de convergência e organização popular terá que se feito para enfrentar a investida de gravidade só equiparável à espiral que culminou no golpe contra Jango –vitorioso, diga-se, quando a organização popular era superior a atual.
A singularidade extrapola em muito um quadro convencional de antagonismo político em ambiente democrático.
Representantes da agenda derrotada pelo voto popular em 2002, 2006, 2010 e 2014, cuja sorte não seria outra em 2018, houvesse aqui justiça e não tribunais superiores do dinheiro, pretendem empalmar o comando da economia, a vida política e as escolhas estratégicas da nação pelos próximos quatro anos, a bordo de um despudorado déficit de representatividade.
A dissolução institucional grita seus efeitos colaterais em cada esquina, mas não é todo o problema.
Ao eclipse do ciclo político da redemocratização, consagrado na Carta de 88, que o golpe quer revogar, sobrepõem-se os efeitos cumulativos de uma crise global que já dura uma década sem delinear uma retomada efetiva, o que corrói adicionalmente o espaço de acomodação política na oitava maior economia do planeta, porém a mais extremada de todas no ranking da desigualdade global de Thomas Piketty.
É dever de ofício recordar: seis plutocratas golpistas detém aqui fortuna equivalente à soma da renda de cem milhões de pessoas, a metade do país.
É disso que se trata quando as milicianos do jornalismo de economia gritam obsequiosos: ‘equilíbrio fiscal!’.
Elas querem dizer ‘morte ao social’.
A equação da desigualdade brasileira só se ‘equilibra’ com a naturalização do apartheid e o exército na rua enxugando gelo e sangue.
A dinâmica que empurrava o conflito para o campo aberto dos debates, das mobilizações e consultas plebiscitárias, de modo a se repactuar o desenvolvimento em ambiente negociável, foi eviscerada pelo punhal golpista de 2016.
E continua a revirar a lâmina nas entranhas da nação.
Significa dizer que será mais complexo, substancialmente mais conflitivo, a partir de agora, conquistar espaço para se governar em benefício da maioria e da justiça social.
O conjunto dá a medida do quão distante se encontram as margens do rio revolto entre as quais um novo g0verno progressista terá que erguer as linhas de passagem para uma sociedade mais justa.
É imprescindível riscar um norte nesse cipoal.
Mais que empilhar formulas para gargalos infindáveis, o chão firme começa por arguir corajosamente o que se fez , ou se deixou de fazer de tão grave nos últimos anos, para retrocedermos tanto, com a rapidez de ‘vinte anos em dois’
A resistência em torno de Lula cobra esse sentido renovador, indissociável de um aggiornamento de metas e métodos que sacudam a prostração e arrebatem a força e o consentimento necessários a um repto da esperança na democracia e no desenvolvimento, vale dizer, em nós mesmos.
Não se argui a largueza dos avanços econômicos e sociais registrados desde 2003.
Sua relevância histórica se auto-afirma na resiliência imbatível de um ex-presidente encarcerado e impedido de falar ao povo, mas que persiste, ainda assim, como a sua referência mais forte de futuro e dignidade.
Essa aderência que atormenta os planos do conservadorismo, não bastou, todavia, para impedir o assalto golpista de 2016, nem tampouco a virulência regressiva que o sucede em todas as frentes e projetos.
Quando a direita meteu o pé na porta logo após a reeleição de 2014 e a Presidenta Dilma precisou oferecer ortodoxia em troca de indulgência ficou claro que o acervo de avanços registrados entre 2003 e 2014 não se fez acompanhar de um salto equivalente na representação popular, capaz de afrontar o retrocesso na hora da verdade.
Como já observou Carta Maior inúmeras vezes, navegou-se em um bonapartismo do PIB.
Enquanto durou, a maré cheia global encorajou a travessia ao largo das questões políticas cruciais, como se a luta pelo desenvolvimento fosse consenso e não conflito, como se pudesse prescindir de um projeto social que a conduza.
Quando o oceano global refluiu, veio o tsunami.
A aposta em avanços incrementais que se propagariam mecanicamente das gôndolas dos supermercados à correlação de forças da sociedade foi desautorizada, sem um único tiro.
A questão capital está justamente na pergunta da esfinge que hoje nos diz: -- De onde sairá o impulso aglutinador indispensável à sustentação de uma nova vitória mudancista nas urnas?’
Uma elite com a faca na boca, que sentiu o gosto de sangue no poder indiviso para decapitar cabeças e direitos, alienar riquezas e desregular mercados vai renunciar a isso em respeito à soberania da urna?
Ademais de uma eleição em disputa há uma concepção de democracia em causa.
Não se trata de tertúlia acadêmica.
Trata-se de preencher a lacuna, antes desdenhada, entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
A ficha precisa cair: o vagalhão regressivo não será revertido pelo diapasão tecnocrático ou personalista. Não basta talento retórico, números ‘na ponta da língua’, coragem no verbo.
Há método, meta e coerência cumulativa na ofensiva conservadora.
As reformas democráticas dos anos 60 –as reformas de base de Jango— foram respondidas com um golpe de Estado armado de censura, extinção de partidos, prisões, mortes e tortura.
Depois, o aparato público foi desossado, picado, miniaturizado e execrado em praça pública como estorvo da nação: foi o ciclo da privataria entreguista dos anos 90 , com os tucanos e suas agencias reguladoras franqueadas às raposas.
Criou-se assim um sistema público feito para não funcionar.
A gelatina disforme calçou por décadas o martelete midiático diuturno da superior eficiência da livre iniciativa na ‘gestão’ de todas as esferas da nação.
A arremetida atual consiste em promover a ‘desconstitucionalização’.
O termo cunhado pelo formulador da candidatura Alckmin, Pérsio Arida, arranca aplausos das plateias patronais.
O objetivo é desossar a Carta Cidadã 1988 dos direitos tomados pela rua na luta contra a ditadura e substitui-los por serviços particulares vendidos a quem pode pagar.
À implosão do pleno emprego assoma-se assim o escalpo das condições mínimas de sobrevivência.
Obtém-se dessa mistura tóxica uma sociedade de joelhos, ao mesmo tempo extremada, prostrada e violenta, em flerte permanente com a barbárie: um show room do que de pior tem a oferecer a supremacia dos mercados sem lei, cujo nome fantasia é neoliberalismo.
O que está em marcha no atual arremate do demanche, com aromas de ‘ajuste modernizante’, é ‘abater’ a expansão do gasto fiscal de nove pontos do PIB ocorrida entre 1991 a 2016, que o conservadorismo atribui à implementação dos direitos e benefícios instituídos pela Constituinte (mas que soma também o regime anômalo de aposentadoria dos militares, por exemplo).
Fica claro que a disjuntiva ‘Lula ou Plano B’ passa ao largo das questões decisivas para a sorte do desenvolvimento e o destino da sociedade brasileira no século XXI.
E não apenas na economia.
É forçoso lembrar: nunca se precisou tanto de coordenação e soberania do interesse público na condução da sociedade como nestes tempos trumpinianos.
Nunca o martelete dos livres mercados foi tão antagônico à sobrevivência da humanidade e da civilização numa quadra em que o aquecimento global já não distingue latitudes ou hemisférios.
Breve recapitulação de notas esparsas no jornalismo preocupado com o doutor Bumbum: ao redor do globo, temperaturas bateram recordes, do Japão ( 41° Celsius) ao Texas (45,5° C).
Na Lapônia, em pleno Círculo Polar Ártico, o Mar Báltico registrou 8° C acima da média, chegando a 32° C.
Em Ouargla, na Argélia, os termômetros riscaram 51° C, o ápice dos registros na África...
Em Lisboa, entidades especializadas no controle climático, lançou nota hoje (3/8/2018) informando que: “com as condições climatéricas previstas até dia 6 de agosto, com temperaturas bastante elevadas, é provável que haja excedências e em quantidade dos limiares horários do ozono “.
Segunda a mesma fonte: “ a exposição de curto prazo a elevadas concentrações de ozono pode causar danos irremediáveis nos pulmões e inflamação das vias respiratórias”.
No entorno de Atenas incêndios florestais deixaram dezenas de mortos e na Califórnia, de acordo com a especialista Noah Diffenbaubh, da Universidade Stanford (EUA), as consequências serão “particularmente fortes”.
Vai por aí a coisa.
O imbróglio aterrador de um capitalismo que dá nó nas próprias tripas pode ser condensado em um paradoxo: até 2050, a indústria global prevê vender cinco bilhões de unidades de ar condicionado para mitigar ondas de calor cada vez mais intensas.
Os cientistas advertem: o uso maciço desses aparelhos redundará na liberação de mais 1 bilhão de toneladas de CO2 na atmosfera agravando o aquecimento global como se uma nova África de emissões fosse acoplada ao planeta.
Soa sensato delegar à ‘livre iniciativa’ a solução para desequilíbrios gerados pela própria ganância tóxica dos mercados desregulados?
O verdadeiro ‘Plano B’ de que se ressente a encruzilhada brasileira é indissociável das respostas a esse divisor da civilização em nosso tempo.
O que se reclama não é apenas um nome de candidato, é o desassombro de um discernimento histórico.
O que a hora urge é um protagonista coletivo e organizado, capaz de garantir o passo seguinte da luta pelo desenvolvimento, que só terá futuro se for justo e sustentável.
O colunista conservador, autor da hagiografia de cinco tomos sobre a ‘ditadura branda’ de Geisel, desprovida de uma única linha sobre o comitê da morte dirigido pelo próprio general, que decidia quem deveria viver ou ser assassinato nos cárceres da repressão – segundo informam os arquivos da própria CIA - afirma que convocar plebiscitos revogatórios depois das eleições é golpe.
O toque de prontidão de quem acumula notória experiência no ramo dá a temperatura nas estrebarias onde escoiceiam os cascos do cerco reservado a um eventual presidente determinado a governar para o povo.
Será preciso fazê-lo com o povo, se não quiser sucumbir.
Chame-se ele Lula, Haddad, Ciro, Josué ou Joaquim.
Ou se convoca o eleitor para ser o fiador organizado do próprio voto, já a partir da campanha, em comitês de autodefesa civil, ou dificilmente o eleito terá melhor sorte que a de Dilma, Jango e Vargas.
Esse é o jogo e o juiz é deles.
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