domingo, 9 de agosto de 2009

Contraponto 72 - Dia dos Pais

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Os Braços de Meu Pai

por Raimundo Girão* escrito em 1955 no aniversário de 10 anos da morte de seu pai Souza Girão.

"Vi-os sobre o seu corpo no caixão funéreo. Nunca os vira assim imóveis, inertes, impo­tentes. Faz dez anos, hoje.

Os braços que ali estavam não eram mais os braços de meu pai, antes nem um só momento repousantes, quedos, em descanso. Sempre os vira em movimento, como que esgrimindo e na verdade lutando, construindo na ânsia de trabalhar, no insofrido, impaciente, incontido desejo de não parar.

Nas madrugadas aurorais do sertão já estavam a mover-se empenhados nas labutas suarentas do campo, que ele era do sertão, fundamente campônio, integrando-se no amanho difícil da terra e no pastoreio perigoso dos gados nas caatingas. E os dias todos, as horas todas, os minutos todos, aqueles braços másculos não cessavam de agitar-se como braços de guerreiros lendários em duelos renhidos.

Mas as maldades da politicagem forçaram-no a emigrar de lá, de sua fazenda, do seu chão nativo, do seu rio decantado - o Banabuiú de Morada Nova, "Deus magnífico, protetor das plantas e dos animais, bendito pelas estrelas nas alturas, e a quem, na imponente nave da terra, os ventos entoam exaltações, vibrando, festivos e farfalhantes, nos vastos carnaubais", - e o trouxeram para outro cenário todo diverso, o da serra, em Maranguape, o cenário alto de um sítio ali, no mais alto da montanha, adquirido quase em abandono, o mato tomando conta de tudo. E ei-lo com os seus braços, eis os braços de meu pai a por as coisas em febril apresto para a transformação produtiva - as laranjeiras carcomidas mudadas em laranjais, pomosos, os velhos cafeeiros, agora, feitos cafezais em flor, os roçados sáfaros estuando em bananais abundantes.

E os braços não tinham sossego, de manhã até noite, fazendo, refazendo e plantando e regando podando e colhendo, ajudados pelos meus doze anos a os dez do Raul, anos de recordações já distantes, ajustados nós ambos por força do exemplo e da necessidade ao ritmo de trabalho daqueles braços. Dobravam os nossos ombros de menino o peso dos fardos de frutas e ao da gravidade, puxando para baixo, nas ladeiras íngremes, desde que o sol se anunciava, rasgando o nevoeiro denso e aliviando um tanto o frio da serra, dilacerantemente frio, e até que resolvia esconder-se, tarde triste, nas quebradas do poente, onde reboavam os retinidos metálicos das minúsculas arapongas, como que saídos da bigorna de ferreiros coléricos e invisíveis.

E os braços de meu pai refizeram o desgosto da saudade do sertão, da pobreza com que o exílio o feriu. Recuperaram o sítio, refizeram o pão de cada dia, refizeram a roupa da família, amenizaram os sacrifícios de minha mãe, na solicitude de cada instante, maternalmente santa no auxílio que nos dava, resignada e forrada de ânimo, fabricando doces e bolinhos que vendia vintém a vintém, para jogar no mealheiro das despesas a sua admirável, sagrada contribuição.

Depois, veio o Sousa para a Capital, atraído por mão amiga, para os misteres de uma escrivania do foro, que encontrou em desmantelo e desordenado atraso, tal como o sítio da serra. E os braços de meu pai transplantaram-se para nova lida diferente, toda outra, e consertaram o cartório e deram marcha aos processos, garantiram a confiança das partes, conquistaram a estima dos magistrados - os sacerdotes daquele buliçoso templo da Justiça.

Não estancaram de um segundo sequer aqueles braços de coragem e de fé, escrevendo com letra firme e cheia de tinta e dignidade, as peças processuais, as certidões, os mandados, os depoimentos e - o que ele fazia com maior contentamento - os alvarás de soltura de culpados que a ignorância e a crueldade da sorte haviam empurrado às desgraças e agruras das prisões.

E o Sousa Girão fez-se o serviçal do templo, multiplicando favores a dando asos à sua bondade desafetada, à sua obsequiosidade que não pretendia volta, nem uma vez negando ou se excusando, antes sempre compreensiva, indulgente,tolerante para quantos a solicitavam - advogados, juizes, litigantes e réus, misturados no afã das defesas a das acusações, dos despachos e das sentenças.

Durante mais de trinta anos praticou o bem e foi útil, servindo com desinteresse, dando de si cordial e satisfeito, espontâneo e simples, na sua função pública e nos deveres do seu CONSULADO de mil providências em benefício de parentes e estranhos, sempre com os seus braços que os meus olhos fitavam agora sobre o corpo, sobre o peito com um coração sem sangue a sem calor, não mais a pulsar, como tanto pulsara dantes, pelos bons intentos, pelas probas atitudes sem qualquer mácula de ódio ou malquerença.

A morte prostrara os braços vigorosos de meu pai naquele silencioso adormecimento, que a dor dos filhos e da segunda esposa haviam enfeitado de flores, e nunca mais havia de ver fortes, diligentes, lestos, operantes, paternais, acolhedores, nunca mais havia eu de os ver fazendo, desfazendo, refazendo.

Os braços de meu pai não eram mais os braços de meu pai."


* Raimundo Girão, historiador cearense (1900-1988) .
Ver site sobre o historiador Raimundo Girão.
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2 comentários :

  1. Esse texto é mesmo de arrepiar.
    Demonstra todo respeito admiração e afeto de um filho por seu pai.
    Eu, mesmo não tendo o talento de de um Raimundo Girão (Vovô) para escerever, ou o seu para compor, registro por meio de um beijo eletrônivo e um abraço virtual, o amor infinito que tenho por você , meu pai...(célvio)
    Régis Coe Girão

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