11/11/2013
Ironia difícil
Vigora, em diversos meios, a opinião - errada - de que em política as versões são mais importantes do que os fatos
Paulo Moreira Leite

As ironias são um recurso sofisticado da crítica social, mas só
podem ser compreendidas numa sociedade em que os fatos estão bem
estabelecidos e o leitor não tem dificuldade para entender a intenção
real do autor.
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É preciso não ter dúvidas sobre a realidade em que se vive para
compreender um texto cuja graça reside – particularmente – em dizer o
contrário do que se escreveu. A ironia não quer enganar ninguém. Quer
estimular a reflexão de forma divertida, explorando seu próprio
absurdo.
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Muitas vezes, a ironia é uma forma de driblar uma situação de
opressão. Permite ao autor dizer, de forma elíptica, aquilo que não pode
ser dito de forma tão clara.
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Era um recurso comum sob os regimes absolutistas que antecederam a
Revolução Francesa. Mas também fazia escola nos anos 1979 e 1980 na
imprensa sob vigilância da censura do regime militar.
É um exercício intelectual finíssimo, um caminhar sobre o fio de
navalha, e está longe de ser pedante. Basta saber o que “é real e o que é
ficção.” Caso contrário, o feitiço se vira contra o feiticeiro -- como
ocorreu com todas as pessoas que, confundindo fatos com suas opiniões,
imaginaram que o texto de Antonio Prato deveria ser compreendido ao pé
da letra.
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A dificuldade de compreensão do público é uma demonstração do universo em que a sociedade brasileira está envolvida.
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Não acho que o conflito de ideias e opiniões políticas que polariza
o país seja prejudicial. Uma polarização semelhante se verifica em
outras sociedades e ninguém tem problemas para distinguir um texto
irônico de uma argumentação séria. É parte do processo de educação
política da população.
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O problema se encontra em outra camada do conhecimento, mais básica
– os fatos. No Brasil de hoje, está difícil separar os fatos das
opiniões.
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E aí, peço desculpas a meus colegas jornalistas, mas é obvio que
isso tem uma relação direta com o trabalho dos meios de comunicação.
Envolvidos, de forma cada vez mais intensa, num esforço político para
impedir uma nova vitória do condomínio Lula-Dilma em 2014, eles se
encontram numa permanente luta ideológica para criminalizar o governo
federal, fazer denúncias de qualquer maneira e não se importam em
confundir, em vez de esclarecer. Sua cobertura é tendenciosa e facciosa,
até.
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Procura-se confundir, em vez de esclarecer. Abandona-se o
compromisso com a apuração dos fatos, que exige um esforço de
conhecimento, um ato de humildade, para submetê-los a uma opinião
pré-estabelecida.
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Vigora, em diversos meios, a opinião – errada – de que em política
as versões são mais importantes do que os fatos. Este é o melhor caminho
para uma ditadura, alertava Hanna Arendt..
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A visão que submete os fatos às opiniões é puro absurdo. Procura
dar ares legítimos à manipulação e à mentira, formas clássicas de
sabotar um regime democrático.
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Convém lembrar disso esta semana, quando João Goulart, presidente
que foi deposto depois de ter sido vítima de uma campanha sórdida por
parte dos meios de comunicação da época, será exumado.
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A finalidade da exumação é saber se Jango morreu envenenado, como
vítima de uma política de assassinatos de lideranças populares do
Continente, que incluiu casos comprovados como a morte do presidente da
Bolívia, Juan José Torres, do general Carlos Prats e do chanceler
Orlando Lettelier, leais a Salvador Allende.
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A partir de historiadores competentes, bem informados e rigorosos,
como Muniz Bandeira e Jorge Ferreira, simpáticos a Jango e adversários
do golpe que o derrubou, encaro com prudência as denúncias que sugerem
que havia uma conspiração para matar Jango. Convém apurar com cuidado,
sem eliminar qualquer hipótese com antecedência e sem permitir,
tampouco, que interesses da propaganda de qualquer lado submetam a
verdade factual.
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Não há dúvida, no entanto, de que a queda de Goulart foi produzida por uma mentira interesseira.
Seus adversários civis, alinhados em torno dos principais jornais
da época, sustentavam que ele pretendia dar um golpe de Estado e
instalar uma república sindicalista no país. Era uma grande mentira e
foi ela que arrastou uma parcela da classe média para a oposição.
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O que se queria era quebrar a legalidade democrática, que previa a
realização de eleições em 1965 – num ambiente que deixava claro que a
oposição conservadora não tinha a menor chance de uma vitória nas
urnas.
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Este é o perigo de resistir num país onde não se sabe a diferença entre fatos e opiniões.
Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em
Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente
em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o Outro General da Casa"..
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