07/04/2014
OS DIREITOS DE DIRCEU E NOSSO CARÁTER
IstoÉ Independente - 6/4/2014
Numa injustiça clamorosa que vai além de qualquer opinião sobre as ideias de José Dirceu, seus direitos como prisioneiro não são respeitados
Paulo Moreira Leite
Há momentos em que a vida política deixa de ser um conflito de ideias e projetos para se transformar numa prova de caráter.
Isso é o que acontece com a perseguição a José Dirceu na prisão.
A defesa dos
direitos de Dirceu é, hoje, uma linha que define o limite da nossa
decência, ajuda a mostrar aonde se encontra a democracia e o abuso, a
tolerância diante do ataque aos direitos elementares de uma pessoa.
Ninguém precisa estar
convencido de que Dirceu é inocente sobre as denuncias da AP 470. Nem
precisa concordar com qualquer uma de suas ideias políticas para
reconhecer que ele enfrenta uma situação inaceitável.
As questões de caráter
envolvem nossos princípios e nossa formação. Definem a capacidade de
homens e mulheres para reagir diante de uma injustiça de acordo com
princípios e valores aprendidos em casa, na escola, ao longo da vida,
como explica Hanna Arendt em Origens do Totalitarismo. São essas
pessoas que, muitas vezes, ajudam a democracia a enfrentar as tentações
de uma ditadura.
Um desses homens, e nós vamos saber
seu nome dentro de alguns parágrafos, “não era herói e certamente não
era um mártir. Era apenas aquele tipo de cidadão com interesse normal
pelos negócios públicos que, na hora do perigo ( mas não um minuto
antes) se ergue para defender o país da mesma forma como cumpre seus
deveres diários, sem discutir.”
A mais recente iniciativa contra os direitos de Dirceu criou um situação nova.
O Ministério
Público pede uma investigação telefônica-monstro envolvendo todas as
ligações de celular – de 6 operadoras -- entre a região do presídio da
Papuda, em Brasília, onde ele se encontra prisioneiro desde 16 de
novembro, e uma região em torno de Salvador, na Bahia. São milhares,
quem sabe milhões de ligações que devem ser mapeadas, uma a uma, e
transcritas – em formato de texto – para exame do ministério público em
Brasília.
Você sabe qual é o
motivo alegado dessa investigação: procurar rastros de uma conversa de
celular entre Dirceu e um secretário do governo de Jaques Wagner.
Detalhe: supõe-se que o telefonema, caso tenha sido feito, teria
ocorrido em 6 de janeiro. Pede-se uma investigação de todas as conversas
por um período de 16 dias.
Você sabe qual será
seu efeito prático: manter a pressão sobre Dirceu e impedir que ele
possa deixar o presídio para trabalhar durante o dia – direito que tem
todas as condições legais de cumprir. Não só obteve uma oferta de
emprego, como tem parecer Psicossocial favorável e também do Ministério
Púbico.
Você pode “achar” –
assim como “achamos” tantas coisas a respeito de tantas pessoas, não é
mesmo? – que ele cometeu, mesmo, essa falta disciplinar, de natureza
grave.
O fato é que desde 6
de janeiro procura-se uma prova desse diálogo e nada. O secretário de
Estado deu uma entrevista a Folha de S. Paulo, dizendo que havia
conversado com Dirceu. Mais tarde, ele se corrigiu e desmentiu o
diálogo. Também confirmou o desmentido em depoimento oficial. Dirceu
sempre negou ter mantido qualquer conversa nestas condições.
A conta telefônica do celular
do Secretário de Estado não registra nenhuma ligação que, em tese,
poderia confirmar a conversa. Uma investigação da policia do Distrito
Federal também concluiu que não há o mais leve indício de que o diálogo
tenha ocorrido.
Conforme todos os indícios disponíveis, portanto, quem mentiu foi o Secretário – não Dirceu.
Você pode continuar
duvidando da inocência de Dirceu, claro. Mas não pode aceitar que seus
direitos sejam subtraídos sem que sua culpa seja demonstrada. Mesmo na
prisão, uma pessoa é inocente até que se prove o contrário.
É verdade que, no
julgamento da AP 470, o ministro Luiz Fux chegou a dizer que cabe ao
acusado provar sua inocência. Mas foi uma colocação tão fora de qualquer
princípio jurídico posterior ao iluminismo que, nos acórdãos, a
declaração foi suprimida.
O pedido para esse
grampo-monstro foi feito pelo Ministério Público em 26 de fevereiro mas
ficou engavetado pelo juiz Bruno Ribeiro por mais de um mês. Quando se
retirou do caso, no fim de março, Bruno enviou o pedido a Joaquim
Barbosa, a quem caberá a palavra final sobre o semiaberto de Dirceu.
Joaquim pode acolher o pedido.
Mas também pode
manter Dirceu em regime fechado enquanto aguarda pelos grampos
Papuda-Bahia. Seria uma nova injustiça, mesmo para quem é favorável a
uma investigação nessa natureza e acha que toda punição a Dirceu será
pouca.
A liberdade de
Dirceu não pode ser diminuída porque os responsáveis pela sua prisão
levaram um tempo absurdo– mais de um mês – para decidir se acatavam a
solicitação ou não.
Ninguém pode ficar preso indevidamente porque o Justiça está “pensando.”
Quando foi preso,
em 15 de novembro, Dirceu tinha direito ao regime semiaberto,
provisoriamente.
Antes que os embargos infringentes tivessem sido julgados, havia a possiblidade de que o Supremo confirmasse a condenação por formação de quadrilha.
Antes que os embargos infringentes tivessem sido julgados, havia a possiblidade de que o Supremo confirmasse a condenação por formação de quadrilha.
Mas o STF derrubou a condenação, o que confirmou o semiaberto.
Assim, do ponto de vista de seus direitos, Dirceu perdeu perdeu quatro mees de liberdade.
Se o apreço abstrato do caro
leitor pela liberdade dos indivíduos não lhe permite avaliar o que isso
significa, sugiro uma experiência concreta.
Peça a um amigo trancar a porta
de seu quarto por um dia e faça um diário sobre o que fez e viu.
Evite ligar a TV, porque ela só é autorizada a quem tem bom comportamento – e ninguém sabe se você merece isso. Não leia jornais nem revistas. Limite a leitura aos livros mas apague a luz às 22 horas. Desligue o telefone, não atenda a campainha e, se sentir fome, peça um resto de geladeira para aquecer em banho-maria. Pode ser qualquer coisa que sobrou da véspera mas lembre-se de que, comparado com o que se oferece na Papuda, sempre será um privilégio.
Evite ligar a TV, porque ela só é autorizada a quem tem bom comportamento – e ninguém sabe se você merece isso. Não leia jornais nem revistas. Limite a leitura aos livros mas apague a luz às 22 horas. Desligue o telefone, não atenda a campainha e, se sentir fome, peça um resto de geladeira para aquecer em banho-maria. Pode ser qualquer coisa que sobrou da véspera mas lembre-se de que, comparado com o que se oferece na Papuda, sempre será um privilégio.
E se você achar que é inocente,
e não fez nada para merecer o que está acontecendo, só quis passar por
uma experiência existencial, lembre-se: esse pensamento só é válido para
quem acredita que toda pessoa é inocente até que se prove o contrário.
Esse é o princípio que garante nossa liberdade.
Também é o princípio que
deveria definir a situação de Dirceu. Ele passou oito anos sendo acusado
como chefe de quadrilha e era este ponto – a quadrilha – que poderia
manter seu regime fechado.
Depois que a acusação de quadrilha caiu ele é chefe de que mesmo?
E aí podemos falar do
personagem a que Hanna Arendt se refere. Ela está falando de George
Picquard, major do Exército francês, que teve um papel decisivo no
reestabelecimento da verdade no caso do capitão Alfred Dreyfus,
condenado em 1894 à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana
Francesa, com bom base em provas falsas.
“Embora dotado de uma boa formação católica,” e, como Arendt sublinha para registrar os preconceitos da época, " ‘adequada’
antipatia pelos judeus, ele ainda não havia adotado o princípio de que o
fim justifica os meios. ” Ela recorda que “esse homem, completamente
divorciado do classicismo social e da ambição profissional, espírito
simples, calmo e politicamente desinteressado” iria mostrar que havia
encontrado provas que apontavam para outro culpado, sugerindo que o caso
fosse reaberto.
Picquard acabou
processado e perseguido, a ponto de enfrentar uma condenação num
tribunal militar e deixar um posto confortável em Paris por um posto sem
perspectiva na África colonial. Mas cinco anos depois de condenado,
Dreyfus acabou recebendo indulto presidencial, depois de enfrentar um
segundo julgamento – que perdeu, mais uma vez.
A campanha pela
libertação de Dreyfus não passou pelo parlamento, que rejeitou seguidos
pedidos de um novo exame do caso. Foi fruto de uma movimentação da
sociedade civil, a margem dos principais partidos políticos.
Mesmo os socialistas temiam
perder votos se colocassem o assunto nos debates eleitorais. Atribui-se
uma derrota de um de seus líderes históricos, Jean-Jaurés, hoje nome de
boulevard em Paris, ao empenho a favor de Dreyfus. Ninguém recorda o
nome dos que se omitiram.
O alto comando
militar, responsável pela condenação de Dreyfus e, mais tarde, pela
manutenção da farsa, alimentava a imprensa suja de Paris. Numa
avaliação que nos ajuda a entender que a realidade que hoje se vê nos
trópicos brasileiros tem muito a dever às asneiras cometidas na capital
francesa daquele tempo, Arendt analisa o mais duro dos jornais contra
Dreyfus para dizer: “direta ou indiretamente, através de seus artigos e
da intervenção pessoal de editores, mobilizou estudantes, monarquistas,
anarquistas, aventureiros e simples bandidos, e atirou-os nas ruas.”
Essa turba espancava defensores de Dreyfus na rua e por várias vezes
apedrejou as janelas de Emile Zola depois de seus artigos e conferencias
mais contundentes.
Julgado pelo Eu Acuso, Zola
recebeu pena máxima. Foi um alivio, pois se fosse absolvido “nenhum de
nós sairia vivo do julgamento” recordou Georges Clemenceau, dono do
jornal que publicou o artigo, L ‘Aurore.
Em 1975, em São
Paulo, o rabino Henry Sobel deu uma demonstração de caráter semelhante.
Ele sequer era o rabino principal da comunidade paulistana. Apenas
substituía o rabino principal, que se encontrava em viagem.
Norte-americano de nascimento, Sobel admirava John Kennedy e nunca teve
simpatias pelo Partido Comunista.
Mas, quando foi informado que o
corpo do jornalista Vladimir Herzog apresentava sinais de tortura,
como fora percebido pelos funcionários do cemitério judeu que o
preparavam para o enterro, Sobel tomou uma decisão de acordo com sua
formação e suas convicções.
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Paulo Moreira Leite. Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
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