Jornal GGN - ter, 10/06/2014 - 14:10
Durante a primeira semana de abril, uma delegação da CELAC-Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe, integrada por Cuba, Costa Rica e Equador, teve importantes reuniões em Pequim com o intuito de montar uma agenda, dar conteúdo e projeção ao recém-criado Fórum CELAC-China, que fará sua primeira reunião oficial em julho, no Brasil, logo após o encontro dos BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Quase ao mesmo tempo, aconteceu em Quito o lançamento da Escola Sul-americana de Defesa, com a participação de delegados da Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Peru, Suriname, Uruguai, Venezuela e do próprio Equador, com o objetivo de desenvolver uma visão compartilhada de defesa regional, sem ingerências ou hegemonias externas, em um processo de institucionalização da União das Nações Sul-americanas (UNASUL).
Apesar desses fatos, pessimistas insistem em negar a existência real da América Latina ou consideram ser um “disparate” o incremento dos vínculos entre países do Atlântico e do Pacífico. Atmosfera que leva mais de um jornalista a fazer perguntas como: “Junto com o México, o Peru e a Colômbia, o Chile faz parte da Aliança do Pacífico. Alguns analistas afirmam que o bloco, considerado liberal, surgiu para se contrapor politicamente ao MERCOSUL. É verdade?”.
Certamente, não é verdade. Mas é preciso ratificá-lo com uma visão estratégica clara e contundente. A América Latina está voltada tanto para o Atlântico quanto para o Pacífico, o que é um privilégio no reordenamento mundial que emerge no século XXI.
E, no meio, se encontra esta nossa geografia convocada a ser um todo articulado e coordenado, para aproveitar as diversas oportunidades que se abrem aos nossos países de um lado e de outro. Por uma parte, está a história já secular do Atlântico como polo econômico que nos ligou à África, Europa e ao Mediterrâneo. Por outra, está o Pacífico, onde estão as potências econômicas do Japão, da China, dos membros da ASEAN- Associação de Nações do Sudeste Asiático, bem como da Austrália e da Nova Zelândia.
A América Latina tem uma oportunidade histórica ímpar: estar no centro deste cenário que vai construindo novas correntes entre o Atlântico e o Pacífico. Mas este desafio contemporâneo nos chama a definir — agora, e não mais tarde — uma só voz para falar com ambos os oceanos.
Eis um desafio que nos faz reencontrar uma palavra tantas vezes dita em nossa trajetória de nações independentes: integração. A integração capaz de incorporar e transcender as múltiplas experiências regionais e sub-regionais que acabaram não concretizando todos os objetivos pretendidos. Diferentes atores sociais — empresários, sindicalistas, artistas, estudantes, turistas e outros — foram muito mais rápidos que os governos para se integrarem com seus vizinhos latino-americanos.
Chile, país do Pacífico, é o maior investidor latino-americano no Brasil, país do Atlântico. São mais de 25 bilhões de dólares investidos e dezenas de milhares de empregos gerados em vários estados brasileiros por empreendimentos nas áreas de celulose, eletricidade, tecnologia da informação, química e metais. E, por certo, também se acrescentam as companhias colombianas, peruanas e mexicanas que produzem cada vez mais no Brasil para um mercado interno de 200 milhões de pessoas com grande horizonte de expansão. Da mesma forma, Brasil e Argentina, além dos investimentos recíprocos, demonstram o seu dinamismo em inúmeros projetos industriais e de infraestrutura nos mais diversos países da América Latina, gerando igualmente uma enorme quantidade de empregos locais. Até 2006, apenas duas empresas brasileiras atuavam na Colômbia; hoje, são quarenta. E o mesmo vale para os demais países do Pacífico. No Chile, por exemplo, atuam cerca de 70 empresas brasileiras. No Peru, 44. Sem falar na crescente presença dos países Sul-Americanos na América Central e no Caribe, onde investem em novas plantas industriais e financiam a construção de portos, aeroportos, estradas, metrôs.
A Aliança do Pacífico, que se propõe a ser um acordo econômico e de modernização de relações — e não outra coisa — terá realmente peso e projeção se atuar em uma ligação estreita com o Brasil, a Argentina e as demais nações de vocação atlântica. Do mesmo modo, o peso dos países atlânticos poderá ser ainda mais relevante se eles tiverem uma atuação internacional vinculada aos do Pacífico.
É aí que deve ser fortemente valorizado o papel da UNASUL na integração. Pela sua pluralidade e pela autoridade que já adquiriu, ela pode ser decisiva no enfrentamento de nossas tarefas pendentes, que não são poucas: infraestrutura em malha rodoviária e pontes; integração energética em uma região rica em hidrocarbonetos, recursos hídricos e gás; melhor fluxo de mercadorias por nossas alfândegas, para dinamizar um comércio intra-regional que saltou de US$ 49 bilhões em 2002 para US$ 189 bilhões em 2013, mas ainda não chega a 20% do nosso fluxo total; novas políticas para responder ao fenômeno de migrações e trânsito cada vez maior de cidadãos que estão demandando efetiva liberdade de circulação. E também, como foi dito em Quito, uma política de defesa comum que, dentre outras questões, desenhe estratégias para a defesa dos recursos naturais e consolide toda a América Latina como Zona de Paz.
Além disso, a CELAC deve ser o espaço para debater os grandes temas da política e da economia mundial. Por exemplo, a entidade regional poderia se reunir dois meses antes do G-20, e os países da região poderiam pedir aos três que fazem parte desse fórum global — Argentina, Brasil e México — que sejam portadores de nossas posições sobre mudanças climáticas, migrações, protecionismo, narcotráfico e drogas, nova arquitetura financeira internacional e mecanismos de segurança e paz, entre outros temas debatidos nas Nações Unidas.
Será que os países latino-americanos podem chegar a um acordo para atuarem assim? Vemos sinais e gestos auspiciosos nesse rumo. Como se afirmou recentemente em um seminário do Conselho de Relações Internacionais para América Latina (RIAL), “a integração bem sucedida é aquela onde prevalecem os elementos de cooperação, buscando convergências possíveis, sem a pretensão de eliminar as diferenças, mas fazendo-as gerenciáveis”.
Não é uma informação menos importante que exista um diálogo conjunto com a China através da CELAC, da mesma forma que seguramente existirá com os Estados Unidos e com a União Europeia. Também não é menos importante que a agenda sul-americana esteja sendo reativada com realismo e visão de futuro. A chave em tudo isto é atuar — para dentro e para fora do continente — pensando em nossos cidadãos de hoje que almejam democracias não apenas legais, onde o voto seja o grande instrumento, mas também democracias legítimas, realmente participativas, onde a política saiba interpretar os sinais dos tempos e agir em consequência.
(Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil, que agora trabalha em iniciativas globais com Instituto Lula e pode ser seguido em facebook.com/lula. Ricardo Lagos é ex-presidente do Chile.)
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