29/03/2017
TSE avança para vexame provável

Paulo Moreira Leite

Embora Gilmar Mendes tenha marcado o início do julgamento para terça-feira que vem, o que tem levado muitos observadores a imaginar um desfecho para breve, até o momento falta conhecer o principal: quais serão os fundamentos jurídicos de uma decisão que terá impacto imenso sobre os destinos de uma nação de 200 milhões de pessoas, líder da América do Sul e uma das dez maiores economias do planeta.
A julgar pelo que se viu até aqui, o fundamento jurídico é nada. Já a política -- no sentido partidário, de preferência e alinhamento -- é tudo. O saldo? Um vexame.
Começando pela discussão mais recente, que envolve o voto dos ministros Henrique Neves e Luciana Lossio. Em abril, expira o mandato de Henrique Neves, que será obrigado a deixar o tribunal. Em maio, é a vez de Luciana Lóssio ir embora. O debate é saber se os dois poderão ou não antecipar o voto antes de partir. Num plenário com sete votos, é uma questão obviamente relevante.
Não se trata de uma discussão jurídica mas política. Tudo se resume ao fato de que os dois ministros são considerados juristas não-alinhados com a preservação do mandato de Michel Temer, que tem interesses ululantes em ocupar suas vagas (e seus votos) com ministros de sua confiança e assim permanecer no Planalto até 2018.
O problema é que, do ponto de vista jurídico, o debate é outro -- num universo onde as togas negras deveriam ter prioridade sobre as preferências partidárias.
Basta recordar o julgamento da AP 470 para confirmar que essa discussão nem deveria existir. Em agosto 2012, o ministro Cezar Peluso, um adversário duro do PT, mas que poderia ficar de fora da decisão em função da aposentadoria -- na época, fixada em 70 anos -- foi autorizado a antecipar seus votos. Medida excepcional, mas legal, o voto fora de calendário de Peluso foi autorizado pelo então presidente do Tribunal, Ayres Britto. O ministro Peluso não decepcionou: "como poucos, usou palavras duras para rebater os argumentos da defesa," disse, em tom elogioso, editorial da Folha de S. Paulo, que também afirmou que o ministro: "encerrou sua participação com um voto rigoroso, como temiam os réus do mensalão, e foi homenageado pelos colegas, pelo procurador-geral da República e por advogados. " Em determinado momento, para referir-se aos argumentos do ex-deputado João Paulo Cunha, o ministro Supremo fulminou: "o réu mentiu."
O esforço para assegurar o voto -- previsível -- de Peluso se explica pelo prognóstico difícil daquele julgamento. Estava claro que havia uma maioria contra os réus do PT no STF. Mas considerava-se que, num caso daquela envergadura, era importante obter uma vantagem arrasadora, para evitar dúvidas e recursos futuros, que necessitam de uma base mínima de votos contrários para serem considerados. Era uma argumentação politica, um cálculo de resultados. Havia, no entanto, uma base jurídica para a antecipação e por isso ela não foi questionada.
Em março de 2017, a decisão no TSE ocorre em outro momento da conjuntura e da História, quando a contaminação do Judiciário pelos interesses políticos -- no sentido partidário -- ameaça criar um ambiente disfuncional.
Os dois ministros são questionados por sua visão política. Ao se fazer isso, considera-se que não têm capacidade para distanciar-se de suas opções -- presumidas -- para agir de acordo com sua formação e as convicções de profissionais do Direito.
O problema dessa situação é que a política sobrevive em outro universo. É feita por cidadãos que tem um projeto de poder e lealdades a respeitar. A base, numa democracia, é o voto popular.
Quando estes mundos com códigos paralelos e muitas vezes opostos se misturam, o produto são várias distorções acumuladas.
Para começar, os vazamentos, que deveriam ser um acidente, e até motivo de investigação, se transformam em instrumento regular de pressão e confronto. Um candidato tem o direito e mesmo a obrigação de anunciar, com antecedência, as medidas que pretende tomar no exercício de suas funções. Um juiz fala pelos autos e não deve antecipar suas sentenças. Na justiça, todos têm direito a um tratamento igual. Na política, cada um tem suas prioridades -- e vai à luta atrás do voto do eleitor.
Num julgamento normal, nem haveria o que discutir sobre o destino de Michel Temer, diante da abundância de provas -- já conhecidas -- apuradas pelo incansável relator Herman Benjamin. No TSE, a questão é contar votos. A situação lembra o processo das reformas no Congresso. Não se entra no mérito da reforma da Previdência, nas consequências nefastas da terceirização e da emenda dos gastos. A questão é poder e força.
É assim que chegamos a um debate inevitável do julgamento da chapa Dilma-Temer, que envolve o ponto essencial: a punição reservada aos dois, na hipótese de uma condenação. Apesar do sigilo, sabemos hoje que o procurador eleitoral Nicolau Dino deve pedir a cassação de Michel Temer e a inelegibilidade de Dilma, já cassada pelo Senado. É uma visão curiosa pelo mérito, já que permitiria, em tese, que Temer perdesse o mandato de 2014 mas pudesse se candidatar -- e até ser eleito -- por via indireta através do Congresso.
Mas é um voto problemático -- do ponto de vista jurídico -- quando se recorda que o presidente do TSE, Gilmar Mendes, já formulou e divulgou sua própria opinião a respeito. A proposta de Nicolau Dino vai na linha da decisão do Senado Federal, que cassou o mandato de Dilma Rousseff. Num dos vários capítulos de suas disputas públicas com Ricardo Lewandowski, que presidiu o julgamento no STF, Gilmar foi simples e claro sobre a proposta. Disse que não passava de uma decisão "bizarra", que “não passa na prova dos noves do jardim de infância do direito constitucional”
O ambiente em que o TSE irá tomar uma decisão crucial como deliberar quem irá ocupar o Palácio do Planalto até 2018 é fruto de um processo de ocupação dos espaços da política -- e do voto popular -- pelo judiciário. Iniciado na AP 470, prosseguido na Lava Jato, atingiu o ponto máximo no impeachment sem crime de responsabilidade que afastou Dilma Rousseff e empossou Michel Temer. Este é o ponto de ruptura.
A experiência ensina que, em situações de impasse como aquele que se avizinha a partir de terça-feira, a Justiça brasileira possui um arsenal de recursos regimentais -- a começar pelos pedidos de vista -- para adiantar, atrasar ou simplesmente paralisar uma decisão, de modo a prolongar uma situação em vigor, em benefício daqueles que tem interesse em manter tudo como está. Esta é a aposta de Michel Temer. Em vez de ganhar e não levar, seus aliados calculam que poderia levar -- mesmo sem ganhar.
Esta é a questão real as vésperas do julgamento do TSE: ganhar tempo.
Desmascarado pelas peripécias vergonhosas de seus maiores beneficiários, o falso moralismo da coalizão golpista tornou-se o menor dos problemas. As aparências pouco importam.
Vivemos aquela hora da festa em que a banda parou de tocar, os garçons suspenderam a passagem de bandejas de comida e bebida, os convidados importantes trocam olhares interrogativos perguntando se não é hora de ir embora -- enquanto a maioria dos presentes começa a identificar sinais de um logro inaceitável.
Esta é a grande novidade, cada vez mais evidente.
A beira de um abismo econômico de dimensão histórica, a situação do país não produz conformismo nem passividade mas resistência e espírito de luta.
Paulo Moreira Leite. Jornalista e escritor, diretor do 247 em Brasília.
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