25/10/2009
A busca de uma nova esquerda
Do Nassif Por João Vergílio G. Cuter 25/10/2009 - 14:00
Na minha opinião, essa distinção nunca foi tão viva e tão importante quanto é hoje. Uso um conceito muito simples, muito difundido e bastante operacional. É de esquerda quem defende um uso intensivo e permanente do Estado na correção das distorções geradas pelo capitalismo. A direita pode admitir esse uso, mas de forma episódica, pontual e mínima. Ser de esquerda, portanto, é reconhecer que o capitalismo gera distorções profundas, sistemáticas e contínuas, e que essas distorções têm que ser compensadas por políticas sociais. A direita buscará sempre corrigir essas distorções por meio de políticas econômicas de médio e de longo prazo, com um mínimo de intervenção direta e imediata sobre a renda das pessoas mais pobres. Programas como o Bolsa Família, por exemplo, serão sempre vistos pela direita com certa desconfiança. No fundo, programas assim, de distribuição direta da riqueza do país, serão sempre vistas por eles como contraproducentes. Dirão que, ao invés de corrigir distorções, programas desse tipo tendem a aprofundá-las, gerando acomodação da parte do beneficiários, que já não aceitariam trabalhar pelos preços que o Mercado (esse verdadeiro sucedâneo dos deuses falecidos) determina.
Essa definição de esquerda não se acomoda nada bem a projetos de ruptura, de substituição do capitalismo por regimes de outra natureza. Parte do princípio de que essa simplesmente não é uma alternativa política dentro da democracia. A democracia não se presta a mudanças desse tipo – jamais nos leva a esse tipo de resultado. Rupturas profundas e instantâneas exigem planejamento central, comando único, enfrentamento militar da parte derrotada. A esquerda tradicional, que apostava na ruptura, tinha muita clareza sobre isto. Infelizmente, boa parte das pessoas que se consideram de esquerda, hoje, não tem essa mesma clareza. Muitos dos intelectuais que assinaram o manifesto contra a CPI do MST são desse tipo. Assinaram-no porque vêm no MST um núcleo potencialmente revolucionário, que deve ser preservado exatamente por isso. Essas pessoas vivem hoje uma espécie de esquizofrenia política. Por um lado, não acreditam absolutamente na possibilidade da ruptura. Acham que o capitalismo teve uma vitória definitiva e irreversível. Dizem isso com todas as letras nos artigos que publicam. Por outro, sentem-se na obrigação quase moral de desconfiar de si mesmos, e apostar nos vestígios revolucionários que acreditam identificar na vida social. Se você lhes pergunta “de onde virão as armas?” – pergunta perfeitamente sensata e trivial para a esquerda de quarenta anos atrás – entram em pane, mudam de assunto, ou simplesmente retornam ao ciclo “fatalista” de sua esquizofrenia.
Chávez tornou-se uma figura emblemática para boa parte da esquerda latinoamericana exatamente porque encena a ruptura. É a revolução enquanto farsa. Na substância, um gerenciamente mais ou menos incompetente do capitalismo. No discurso, uma sociedade nova, “bolivariana”, que não faz outra coisa senão implementar reformas com uma retórica desmedida. Lula é um milhão de vezes mais lúcido. Não tem um discurso de ruptura (muito pelo contrário), mas tem absoluta clareza quanto à necessidade de se fazer frente ao desemprego estrutural do capitalismo com programas renda mínima. É o maior líder de esquerda de todo o mundo hoje em dia.
A continuidade a aprofundamento das conquistas do governo Lula dependem, em grande parte, de a esquerda que o sustenta ter essa mesma clareza. Não estamos lutando pelo fim do capitalismo. Estamos lutando para que o Brasil tenha um sistema capitalista forte e competitivo, mas, ao mesmo tempo, queremos avançar muito mais no campo das reformas sociais. Nosso princípio básico é o seguinte: a vida das pessoas, sua sobrevivência, sua dignidade não podem ser parte do jogo de incentivos do capitalismo. Assim como não podemos usar o chicote para forçar as pessoas a trabalharem mais, não podemos usar a miséria. A sociabilidade tem um custo, que deve ser pago com programas de transferência de renda. Sem isso, o bandido está eticamente justificado, e a legalidade passa a ser simplesmente a mobilização cínica do aparato repressor do Estado para manter uma tensão social insuportável sob controle. Ser de esquerda, enfim, é lutar pela justificação do capitalismo e do uso do aparato repressor do Estado nas situações em que isso seja necessário. É lutar para que a legitimidade do uso da força não seja apenas formal (legitimidade que até mesmo o regime nazista estava em condições de proporcionar), mas acima de tudo moral. Enquanto vivermos numa sociedade em que o bandido tem um discurso justificador irretorquível à sua disposição, estaremos mergulhados na barbárie. Pois a barbárie é exatamente isso: o fim de toda e qualquer possibilidade discursiva, e o esvaziamento de fato da dimensão política. Exagero? Deem uma espiada no Rio de Janeiro.
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