15/04/2011
Nos negócios da Vale, verificamos a exportação de minério de ferro e a importação de trilhos para as ferrovias do grupo. Pode até fazer sentido na lógica interna da busca da lucratividade a qualquer preço da empresa, mas é péssimo para o País.
Vira e mexe o assunto da Reforma Tributária volta a ocupar os lugares de destaque na agenda política. Em geral, trata-se de alguma grita de setores ou representantes do empresariado contra a suposta elevada carga de impostos em nosso País. Mas quase ninguém se manifesta a respeito da “regressividade” da estrutura dos impostos. Traduzindo o “tributarês”, isso significa dizer que os trabalhadores e as camadas de renda mais baixa pagam, proporcionalmente, mais impostos do que o capital e as camadas de renda mais elevada. Esse tema é um verdadeiro tabu e tido como “imexível” - para as nossas elites, é claro. Essa é uma das razões, provavelmente, pelas quais as propostas de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas (previsto no inc. VII do art. 153 da Constituição) nunca saiu do papel, mesmo depois de tantos anos passados com o Partido dos Trabalhadores no poder.
Mas mesmo que não seja uma reforma que exija emenda constitucional, algumas alterações são possíveis de serem promovidas por meio de um mero projeto de lei, com votação simples. Como sempre, o que falta é a coragem política de promover algum tipo de mudança. E esse é o tema que me proponho a tratar aqui nesta semana. A proposta de um imposto a incidir sobre as exportações brasileiras de minério de ferro.
Os últimos dias têm sido profícuos para o tratamento da Vale pelos grandes órgãos de imprensa. Em primeiro lugar houve a divulgação dos resultados financeiros para o exercício de 2010, quando a antiga empresa estatal - privatizada a preço de banana - apresentou um lucro líquido de R$ 30 bilhões. Um recorde na história das empresas privadas brasileiras. Em seguida, assistimos a toda essa novela em torno da sucessão do presidente do grupo, Roger Agnelli. Ora, o governo e os fundos de pensão ligados às empresas estatais federais detêm a maioria das ações com direito a voto e nada mais fizeram do que valer esse poder para emplacar outro nome, o ex diretor Murilo Ferreira. O engraçado é que quando o governo FHC articulou a favor da entrada de Agnelli, ninguém reclamou.
Agora, quando a equipe da Presidenta Dilma se movimenta para colocar alguém na presidência da Vale mais afinado com suas propostas, aí começa a reclamação contra a suposta “ingerência do governo nos assuntos das empresas privadas”. E, por último, o terceiro fator é a própria viagem de Dilma à China, país que se revela como o maior importador de minério de ferro do mundo e também das jazidas brasileiras. Ou seja, a Vale tem o mercado chinês como seu principal comprador de minério de ferro exportado.
Por outro lado, é necessário ressaltar que a política tributária tem mecanismos e objetivos que vão muito além da simples arrecadação de impostos. Trata-se de um importante instrumento de política econômica, que pode auxiliar – por exemplo – na definição da política industrial de um país ou região. Ou também que pode contribuir na busca de objetivos de política de comércio exterior. Particularmente para o Brasil, um exemplo clássico para o caso da política industrial é a isenção tributária para áreas como a Zona Franca de Manaus ou para setores específicos, como foi o caso do setor automobilístico até alguns meses atrás. Já no caso da política de comércio exterior, pode-se recorrer aos tributos criados pelos Estados Unidos para incidir sobre as importações de suco de laranja e de algodão, que prejudicaram bastante as exportações brasileiras desses itens [1].
Voltemos nossos olhos agora para o setor de minério de ferro. A Constituição trata do assunto em dois momentos:
a) o art. 20 estabelece que “são bens da União: .... IX – os recursos minerais, inclusive os do subsolo; ...”.
b) já o art. 176 determina que “as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.” (gn)
Com isso, percebe-se, claramente, a intenção do constituinte em estabelecer a propriedade da União sobre os recursos minerais e de suas jazidas, inclusive as de minério de ferro. Assim, o que existe é um regime de concessão da exploração, a exemplo do ocorre com a principal atividade da Vale. Ou seja, os recursos exportados não são da Vale, são do Brasil.
Por outro lado, pode-se afirmar que existe um amplo consenso nos meios de economistas, analistas, pesquisadores e políticos a respeito dos riscos que o Brasil incorre ao perpetuar o ciclo que chamei de “pós-neocolonialista” [2] . A velha reprodução da correia da dependência econômica, cujo exemplo característico é a nossa pauta de exportações estar fortemente ancorada em produtos primários (extração mineral e agrícolas) e as nossas importações exibirem maior parte de bens manufaturados. Nos negócios da Vale, em especial, verificamos a exportação de minério de ferro e a importação de trilhos para as ferrovias do grupo. Pode até fazer sentido na lógica interna da busca da lucratividade a qualquer preço da empresa, mas é péssimo para o País. Há fortes indícios, inclusive, de que esse seria um dos argumentos a pesar contra a permanência de Agnelli à frente do conglomerado.
Ora, se o governo pretende contribuir para a mudança desse círculo vicioso da neo-dependência, pode lançar mão de instrumentos de política industrial para tanto. E um deles é justamente a criação de um imposto sobre a exportação de minério de ferro. Medida, aliás, largamente utilizada pelos países exportadores de produtos primários, que buscam com isso gerar, internamente, fundos fiscais a partir da exportação desse tipo de riqueza mineral. Antes que alguém considere a medida como mais um exemplo da “jabuticaba” tupiniquim, adianto que os meios internacionais do ramo estão com a certeza de que a Índia vai aumentar, ainda mais, a alíquota desse tipo de tributo já incidente sobre as exportações de minério de ferro daquele país. Ou seja, os governantes indianos deverão elevá-lo dos atuais 15% para supostos 20% [3].
No nosso caso, inclusive, deveremos até nos beneficiar de tal medida a ser adotada, num primeiro momento, pois a China deverá redirecionar uma parte da sua demanda para países como o Brasil. Mas devemos olhar é para o longo prazo e não ficar tirando proveito de qualquer variação de curto prazo. De todas as maneiras, como a pauta exportadora do minério de ferro representou por volta de 15% do total de nossas exportações de US$ 201 bi, esse item proporcionou ingresso de recursos externos da ordem de US$ 29 bi durante o ano passado. Caso houvesse a incidência de um imposto idêntico ao da Índia, isso teria representado por volta de US$ 4 bi a mais de caixa para o Tesouro Nacional.
Pode-se argumentar que o valor tributário a ser arrecadado não é tão alto assim. É verdade, mas o objetivo mais importante da medida não é tanto pelo lado fiscal, mas sim de política industrial. Trata-se de uma medida que pretende desencorajar a exportação do minério bruto e pode estimular o uso dessa matéria-prima para a produção de bens manufaturados internamente no Brasil. Concretamente, para ficar no exemplo mais rudimentar: reduz-se a exportação de minério de ferro bruto e passa-se a produzir internamente os trilhos agora importados. Isso, sem contar é claro, todo o potencial a partir dos redirecionamentos na área da siderurgia elaborada e da produção de aço de ponta.
Para facilitar a vida de todo mundo, já existe até um Projeto de Lei a respeito da matéria, tramitando no Congresso Nacional. Trata-se do PL n° 6.633/09 [4] , que fixa uma alíquota até mais tímida, de apenas 10%, sobre o valor das exportações e autoriza o Executivo a aumentá-la no futuro, caso seja necessário.
É difícil avaliar, com precisão de valores, um hipotético balanço de perdas e ganhos, com a implantação da medida. Mas alguns movimentos são bastante prováveis. A Vale teria reduzido um pouco o valor obtido com o resultado da exportação de minério de ferro. Mas que nada que afete de maneira significativa sua posição de empresa líder na cena brasileira. O Tesouro Nacional teria reforçado um pouco seu caixa, com mais recursos disponíveis para gastar, de preferência, na área social. Haveria um aumento da demanda interna por bens manufaturados a partir do minério de ferro. Em suma, a economia e a sociedade brasileiras sairiam como as grandes beneficiárias de tal medida.
Por fim, o mais importante é que o nosso País estaria sinalizando para seus cidadãos e para o resto do mundo uma inversão de rota na forma de sua atual inserção na divisão internacional do trabalho. Uma postura mais ativa na defesa de seus interesses, bem como de valorização dos processos produtivos internos geradores de renda, trabalho e valor agregado.
Notas
[1] A pendência foi parar na Organização Mundial do Comércio (OMC) e o Brasil ganhou , após muitos anos, a questão contra os EUA, acusados de praticar “dumping” - uma medida protecionista considerada injustificável no caso.
[2] Ver: http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=4992
[3] Ver: http://in.reuters.com/article/2011/02/28/idINIndia-55213320110228
[4] Ver: http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=464472
*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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