04/05/2013
O lugar da maioria
Da Isto É Independente - 4/5/2013
Depois que até o ministro Joaquim Barbosa denunciou a falta de pluralismo da imprensa brasileira e admitiu sua tendência "à direita," os cidadãos detêm mais um argumento para repensar o que se passa no país.
Paulo Nogueira
É preciso ter a coragem de entender que o Brasil ingressou numa fase mais aguda de conflito político, real e duradouro, que irá se prolongar até o final de 2014 e a sucessão presidencial.
E atenção. Caso as urnas confirmem aquilo que dizem as pesquisas de
opinião, hoje, nem mesmo a vontade soberana do eleitorado pode ser
suficiente para resolver esse conflito e garantir o retorno a um
ambiente de paz política e respeito constitucional.
Isso porque assistimos a uma luta que, com o passar dos anos, e
sucessivas derrotas da oposição, transformou-se, mais uma vez, numa luta
contra a democracia. Não vamos nos iludir. As filigranas jurídicas não
estão em debate.
O que se questiona hoje é o lugar da maioria, o direito da grande
massa de brasileiros ter a ultima palavra sobre os destinos do país.
A questão é o Poder de Estado, a possibilidade de retrocesso ou de
novos avanços no lento, modesto mas real processo de mudanças iniciado a
partir de 2003, que envolveu a sexta maior econômica do planeta e o
destino de uma região cada vez mais relevante no planeta, a América do
Sul.
A fraqueza até agora insolúvel da oposição, sua dificuldade em
convencer a maioria da população a lhe dar seu voto explica os
movimentos cada vez mais ousados, as denúncias, os ataques sem fim.
Não é de estranhar uma nova radicalização conservadora nas últimas
semanas, capaz de envolver personalidades com passado democrático, como
Pedro Simon, e mesmo personalidades com um passado digno de um presente
melhor, como Marina Silva, capaz de ir à TV dizer obrigado a Gilmar
Mendes, tornando-se a primeira candidata presidencial a agradecer a um
ministro do STF como se tivesse recebido um favor. (Os grifos em verde negritado são do ContrapontoPIG)
Apesar da agitação em torno de eventuais presidenciáveis, novos,
antigos e velhíssimos, a situação não mudou, pelo menos até agora.
A grande maioria do eleitorado continua dizendo monotonamente que
está satisfeita com o que vê em sua casa e em seu destino. Pode ser tudo
ilusão de ótica. Quem sabe seja puro marketing. Pode ser que tudo fique
diferente até 2014.
Agora, isso não importa.
Os números estão ali, seja nas pesquisas encomendadas pelo governo,
seja naqueles a que tem acesso a oposição. E este é o dado real, que
alimenta cálculos e projetos.
Como uma porta-voz da própria imprensa com tendência “de direita”,
nas palavras de Joaquim Barbosa, já admitiu, em 2010, o que se quer é
dar oxigênio a políticos e concorrentes que não conseguem andar pelas
próprias pernas.
É assim que os lobos vestem elegantes ternos de cordeiro sem que
ninguém se pergunte pelo trabalho dos alfaiates. Mentiras nem precisam
ser repetidas mil vezes para se transformar em verdades. Basta que sejam
embelezadas de modo falacioso e permanente. Basta que o veículo X
repercuta o que disse o Y e que nem A, nem B nem C tenham disposição
para conferir aquilo que disse Z – como é, aliás, tradição da imprensa
brasileira com tendência “à direita” desde 1964, quando jornais e
revistas se irmanaram para denunciar a subversão e a corrupção do
governo Goulart.
E aí chegamos ao calendário atual da crise, ao batimento cardíaco
de maio de 2013.
Ameaçada, pela quarta vez consecutiva, de se mostrar
incapaz de chegar ao governo pelo voto, o que se pretende é uma mudança
pelo alto, sem o povo como protagonista – mas como espectador e sujeito
passivo.
Faz-se isso como opção estratégica, definida, concebida de modo científico e encaminhada com método e disciplina.
Num país onde o artigo 1 da Constituição diz que todo poder emana
do povo, que o exerce através de representantes eleitos ou diretamente,
procura-se colocar o STF em posição de supremacia em relação aos demais
poderes.
Como se sua tarefa não fosse julgar a aplicação das leis, mas
contribuir para sua confecção ou até mesmo para bloquear leis
existentes, votadas e aprovadas de acordo com os trâmites legais.
O STF vem sendo estimulado a tornar-se guardião da agenda
conservadora do país, construindo-se como fonte de poder político,
acima dos demais.
Assume um ponto de vista liberal quando debate assuntos de natureza
comportamental, como aborto e células tronco. Mantém-se conservador
quanto aos grandes interesses econômicos e políticos.
Sua agenda dos próximos meses envolve muitas matérias de natureza
econômica e o papel do Estado na economia. Até uma emenda
constitucional que cria subsídios ao ensino privado já chegou ao
tribunal. A técnica sem-voto é assim. Já que não se tem força para
chegar ao Planalto nem para fazer maioria no Congresso, tenta-se o STF –
e azar de quem tem voto popular. A finalidade é paralisar quem fala
pela maioria.
No debate sobre royalties do petróleo, que, mesmo de forma
enviesada, traduzia uma forma de conflito entre estados ricos e estados
pobres, impediu-se o Congresso de exercer suas funções constitucionais.
No debate sobre fundo partidário e tempo na TV, o risco de deixar a
oposição sem um terceiro nome para tentar garantir o segundo turno
inspirou o PSB, oposicionista, a pedir uma liminar que impede a votação
de uma lei que cumpria absolutamente todas as exigências legais para ser
debatida e votada. Concordo que a lei em questão pode ser chamada de
casuística. Sou contra restrições à liberdade de organização de
partidos políticos, ainda que possa lembrar que o debate, no caso, não
envolve risco de prisão para militantes de partidos não autorizados,
como no passado, mas TV e $$$ público, mercadorias que não caem do céu.
Sem ser ingênuo lembro que nessa matéria o ponto de vista contrário também está impregnado do mesmo defeito.
A liminar beneficia a oposição em geral e uma presidenciável em
particular, que tenta encontrar-se num terceiro partido político em
menos de uma década. Até agora nem conseguiu o numero de mínimo de
filiados para montar a nova legenda. Jornais informam que está
recorrendo a políticos de outros partidos que, aliados no vale-tudo para
o segundo turno, tentam dar uma mãozinha emprestando eleitores de seu
próprio curral. Não é curioso?
O que se quer é atribuir ao Supremo funções que estão muito além de
sua competência nos termos definidos pela legislação brasileira. Não
adianta lembrar de países desenvolvidos como se eles fossem a solução
para todos os males.
Até porque isso não é verdade. Para ficar num exemplo recente e
decisivo. Ao se intrometer nas eleições de 2000 nos EUA, impedindo que
os votos no Estado da Florida fossem recontados e conferidos pelos
organismos competentes, a Suprema Corte republicana deu vitória a George
W. Bush – empossando, com sua atitude, o pior governo norte-americano
desde a independência, em 1776.
Inconformado com a decisão da Suprema Corte, o democrata Al Gore
chegou a resistir por vários dias, recusando-se a reconhecer um
resultado que não refletia a vontade popular. Acabou pressionado a
renunciar e retirou-se da cena política. Alguém pode chamar isso de
vitória da democracia? Exemplo a ser seguido?
Em situações como a do Brasil de hoje, a atuação dos meios
comunicação ajuda a criar mocinhos e bandidos, permite desqualificar o
adversário e impedir que todas as cartas sejam colocadas à mesa.
O vilão da vez, como se sabe, é o deputado Nazareno Fontelles, do
PT do Piauí, autor da PEC 33, que, com base na soberania popular,
garante ao Congresso a ultima palavra sobre as leis que vigoram no país.
Fonteles já foi chamado de “aloprado” e até de ser um tipo que faz
“trabalho sujo”, além de outras barbaridades feias e vergonhosas, que
servem apenas para abafar o debate político e esconder pontos
importantes – a começar pelo fato de que o relator da PEC 33 foi um
deputado tucano. (Este seria o que?)
Desmentindo outra mitologia sobre o tema, de que Fonteles produziu
uma resposta ao mensalão, evita-se lembrar que o texto é de 2011, quando
o julgamento sequer havia começado.
Conheço juristas de peso que têm críticas a PEC 33. Outros lhe dão sustentação integral.
O debate real é a soberania popular. E é desse ponto de vista que a discussão sobre a PEC 33 deve ser feita.
A pergunta, meus amigos, é simples. Consiste em saber quem deve ter
a palavra final sobre os destinos do país. Vamos repetir: a
Constituição diz, em seu artigo 1, que todo poder emana do povo, que
exerce através de seus representantes eleitos ou mesmo diretamente.
Até os ministros do Supremo são escolhidos por quem tem voto. O
presidente da República, que indica os nomes. O Senado, que os aprova.
Quem não gosta deste método de decisão deveria comprar o debate e convencer a maioria, concorda?
Paulo Moreira Leite. Desde janeiro de 2013, é diretor da
ISTOÉ em Brasília. Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA,
correspondente em Paris e em Washington. É autor dos livros A Mulher que
era o General da Casa e O Outro Lado do Mensalão.
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